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A (in)constitucionalidade da criminalização das drogas

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18/03/2013 às 16:01
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2 CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS E LESIVIDADE

Seguindo a linha de raciocínio exposta no capítulo anterior, insta salientar que a CRFB também contemplou o princípio da lesividade ou ofensividade, no inciso XXXV de seu art. 5º, ao assegurar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Ou seja, a tutela jurisdicional somente pode ser invocada quando um direito, individual ou coletivo, for lesado ou concretamente ameaçado.[17] Dessa forma,

[...] juntamente com o princípio da inafastabilidade da apreciação judicial, a Carta Maior dispõe que a exigência da submissão de fatos ao exame judicial se faça relativamente a uma lesão efetiva a um bem, ou a uma ameaça a direito. [...] o disposto no art. 5º, XXXV, da Constituição Federal, indica como juridicamente relevante a causação de lesões efetivas ou ameaças a direitos, só podendo ser entendidas, como verdadeiras ameaças, as que sejam concretas, pois ameaças abstratas simplesmente inexistem.[18]

Em âmbito penal, a máxima expressão garantista e material do princípio da ofensividade traduz-se na definição de que “unicamente o fato ofensivo – lesivo ou concretamente perigoso – a um bem jurídico importante pode ser objeto de criminalização e de sanção penal”.[19] Inclusive, a teoria geral do Direito Penal brasileiro tem o referido princípio como parâmetro para esclarecer quais as condutas que devem ou não sofrer os rigores da lei penal.

Posto isso, é imprescindível analisar a criminalização das drogas também em relação ao princípio da lesividade, pois “[...] nenhum sistema penal está legitimado a ‘sacrificar’ a liberdade individual senão quando incrimina fatos significativamente ofensivos a bens jurídicos de relevância (pessoal) indiscutível”.[20] Por isso, se determinada conduta não lesionar, oferecer risco real ou perigo concreto de dano a bem jurídico de terceiro tutelado pelo Direito Penal, não deve ser criminalizada.

No entanto, não é isso que vem sendo observado pelo Estado ao determinar o seu âmbito de atuação. Todas as características até agora evidenciadas da política criminal de drogas no Brasil revelam não mais do que um verdadeiro “direito penal contra o inimigo”, o qual se baseia em uma espécie de “criminalização antecipada”, fundamentalmente reconduzível a:

(1) tutela marcada, e intencionalmente antecipada, de bens jurídicos [...]; (2) centralidade do paradigma do crime de perigo indirecto, de forma a possibilitar a incriminação de condutas que, em abstrato, se revelam inidôneas e desadequadas para criar aquelas situações de perigosidade legitimadoras de antecipação de intervenção penal; (3) formulação estrutural dos pressupostos incriminadores com especial subvaloração dos pressupostos objectivos essenciais do direito penal [...]; (4) inversão do onus probandi, atenuando a presunção de inocência do argüido; (5) radicalização da pena de prisão nos seus limites máximos e mínimos, e intensificação do rigor repressivo nas várias modalidades de execução de penas, acompanhada de bloqueio a políticas criminais alternativas.[21] (grifo nosso)

Tão logo esclarecido que é imprescindível que a lesividade seja utilizada para pautar uma ordem jurídica de cunho garantista, convém destacar que o referido princípio, segundo esclarece Nilo Batista[22], possui determinadas funções perante o Direito Penal brasileiro.

Em primeiro lugar, o princípio da lesividade visa proibir a incriminação de uma atitude interna, pois somente pode ser punido um ato contra terceiro que foi externalizado. Ou seja, “ninguém pode ser punido por aquilo que pensa ou mesmo por seus sentimentos pessoais [...] se tais sentimentos não forem exteriorizados no sentido de que produzam lesão a bens de terceiros”.[23]

Em segundo lugar, esse princípio visa proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito próprio do autor, como, por exemplo, a tentativa de suicídio e a autolesão. Nota-se aqui o principal ponto de contato entre o princípio da lesividade e o posicionamento deste estudo quanto à legalização das drogas. Já desde uma das primeiras leis de combate às drogas no Brasil – Lei n. 6.368/1976 – debatia-se que a mencionada legislação incriminava o uso de drogas em clara oposição ao princípio penal da lesividade e às mais recentes recomendações político-criminais, conforme defendia Nilo Batista[24] em suas críticas.

Em terceiro lugar, o referido princípio objetiva proibir a incriminação de simples estados ou condições existenciais, como ocorreu nos EUA quando mulçumanos que estavam no território do país foram vistos, indiscriminadamente, como inimigos terroristas. Logo, o agente não deve ser punido por aquilo que ele é, mas sim pelo que ele fez, a fim de que não seja erigido um autêntico direito penal do autor, já que cabe ao Direito regular condutas humanas.[25]

Acontece que, conforme já explanado no capítulo anterior, na “guerra às drogas”, o aparato estatal não se volta propriamente contra a existência de tais substâncias, mas sim contra as pessoas que usam, produzem ou comercializam esse tipo de produto. Como acontece em qualquer manifestação do poder punitivo estatal, os mais atingidos pela repressão são – e sempre serão – aqueles mais vulneráveis econômica e socialmente. São pessoas pobres e/ou negras, indivíduos enquadrados pelo sistema penal como traficantes na quase totalidade dos casos, e não como meros usuários. Sobre essa frágil questão, Maria Lúcia Karam lembra muito bem que

No Brasil, os mais atingidos são os muitos meninos, que, sem oportunidades e sem perspectivas de uma vida melhor, são identificados como “traficantes”, morrendo e matando, envolvidos pela violência causada pela ilegalidade imposta ao mercado onde trabalham. Enfrentam a polícia nos confrontos regulares ou irregulares; enfrentam os delatores; enfrentam os concorrentes de seu negócio. Devem se mostrar corajosos; precisam assegurar seus lucros efêmeros, seus pequenos poderes, suas vidas. Não vivem muito e, logo, são substituídos por outros meninos igualmente sem esperanças. Os que sobrevivem, superlotam as prisões brasileiras.[26]

Em quarto e último lugar, esse princípio visa proibir a incriminação de condutas consideradas “desviadas” que não afetam qualquer bem jurídico de terceiros, pois não se deve punir determinado indivíduo por uma conduta considerada “imoral” que não lesione o direito de outrem, como, por exemplo, a decisão de comprar determinada droga e fazer uso dela. Tais condutas, ainda que a sociedade as trate com certo desprezo, ou mesmo repulsa, e as veja com reprovação sob o aspecto moral, por agredirem o seu senso comum, não repercutem diretamente sobre qualquer bem de terceiro, não podendo ser proibidas pelo Direito Penal.[27] (grifo nosso)

Inclusive, tal função do princípio da lesividade baseia-se em outro princípio inerente ao Direito e ao Processo Penal do Estado Democrático de Direito: a secularização, que consiste na separação entre Direito e Moral, de modo que o Estado "não deve se imiscuir coercitivamente na vida moral dos cidadãos e nem tampouco promover coativamente sua moralidade, mas apenas tutelar sua segurança, impedindo que se lesem uns aos outros”.[28]

Nesse diapasão, Carvalho e Bueno propõem que haja uma espécie de “retrocesso” ao estado de natureza, em que cada indivíduo é juiz em causa própria[29], isto é, decide pelo próprio modo de ser e de viver. Assim, veda-se que este Estado de Direito constitucional[30] lance mão da tutela jurisdicional sobre qualidades do ser, inclusive prevendo condutas criminosas considerando-se apenas o aspecto moral.

Levando-se em consideração os aspectos acima apresentados, é válido aqui salientar novamente a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo citada no tópico anterior. O relator, no exercício de sua função jurisdicional, sabiamente corrigiu o desvio legislativo e objetivou harmonizar o sistema jurídico com os ditames emanados da CRFB, já que

[...] quando o legislador, no exercício de sua função legislativa, criminalizar condutas ignorando a necessidade de possuírem conteúdo lesivo, como exige o princípio em exame, essa omissão deve, necessariamente, ser suprida pelo juiz ou intérprete. Com efeito, como essa atividade parlamentar pode apresentar-se de forma incompleta ou imperfeita ou, por alguma razão, mostrar-se insatisfatória, vaga, exageradamente extensa ou inadequada no âmbito de um Estado Democrático de Direito, o juiz, no exercício de sua função jurisdicional, deve corrigir eventual imperfeição da norma legislativa para adequá-la aos princípios norteadores dessa modalidade de Estado de Direito.[31]

Passa-se, então, a destacar os seguintes trechos do voto do relator no que diz respeito à violação ao princípio da lesividade no caso em questão:

[...] os elementos de prova produzidos nesta ação penal são suficientes, apenas e tão somente, para afirmar que o recorrente estava portando 7,7g de cocaína para consumo próprio e que, em conseqüência, a sua conduta seria subsumível ao tipo do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006.

Todavia, a criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque não há tipificação de conduta hábil a produzir lesão que invada os limites da alteridade [...].

Como observa Salo de Carvalho, “a permanência da lógica bélica e sanitarista nas políticas de drogas no Brasil é fruto da opção por modelos punitivos moralizadores e que sobrepõem a razão de Estado à razão de direito, pois desde a estrutura do direito penal constitucional, o tratamento punitivo ao uso de entorpecentes é injustificável”. [CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 253].

O argumento de que o artigo 28 da Lei n. 11.343/2006 é de perigo abstrato, bem como a alegação de que a saúde pública é o bem tutelado, não é sustentável juridicamente, pois contraria inclusive a expressão típica desse dispositivo criminalizador, lavrado pela própria ideologia proibicionista, o qual estabelece os limites de sua incidência pelas elementares elegidas, que determinam expressamente o âmbito individualista da lesividade e proíbem o expansionismo desejado.

Basta ler o tipo penal em menção, que descreve, para a incidência da conduta que pretende criminalizar, exclusivamente aquela de quem adquire, guarda, tem em depósito, transporta ou porta, “para consumo pessoal”, drogas proibidas. O elemento subjetivo do tipo, evidenciado pela expressão “para consumo próprio”, delimita com exatidão o âmbito da lesividade e impede qualquer interpretação expansionista que extrapasse os lindes da autolesão.

Com efeito, como assevera Maria Lúcia Karam, “é evidente que na conduta de uma pessoa, que, destinando-a a seu próprio uso, adquire ou tem a posse de uma substância, que causa ou pode causar mal à saúde, não há como identificar ofensa à saúde pública, dada ausência daquela expansibilidade do perigo (...).

Nesta linha de raciocínio, não há como negar incompatibilidade entre a aquisição ou posse de drogas para uso pessoal – não importa em que quantidade – e a ofensa à saúde pública, pois não há como negar que a expansibilidade do perigo e a destinação individual são antagônicas. A destinação pessoal não se compatibiliza com o perigo para interesses jurídicos alheios.

São coisas conceitualmente antagônicas; ter algo para difundir entre terceiros, sendo totalmente fora de lógica sustentar que a proteção à saúde pública envolve a punição da posse de drogas para uso pessoal”. [KARAM, Maria Lúcia. De crimes, penas e fantasias. Rio de Janeiro: Luam, 1993.            p. 126].

É por isso que Alexandre Morais da Rosa afirma que “no caso de porte de substâncias tóxicas inexiste crime, porque, ao contrário do que se difunde, o bem jurídico tutelado pelo artigo 16 da Lei n. 6368/76 é a integridade física e não a incolumidade pública”. [ROSA, Alexandre Morais da. Direito infracional: garantismo, psicanálise e movimento antiterror. Florianópolis: Habitus, 2005. p. 217].

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Assim, transformar aquele que tem a droga apenas e tão-somente para uso próprio em agente causador de perigo à incolumidade pública, como se fosse um potencial traficante, implica frontal violação do princípio da ofensividade, dogma garantista previsto no inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal.

[...]

É por isso que somente é admissível a criminalização das condutas individuais que causem dano ou perigo concreto a bens jurídicos de terceiros, o que não acontece com a conduta descrita no tipo do artigo 28 da Lei n. 11343/2006.

[...]

Portanto, como a criminalização primária do porte de entorpecente para uso próprio é inconstitucional, a conduta do recorrente, que portava cocaína para uso próprio, é atípica.[32] (grifo nosso)


3 CRIMINALIZAÇÃO DAS DROGAS E IGUALDADE

Inicialmente, vale aqui recordar mais uma vez o pioneirismo da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, publicada em 1789 na França, que já definia que “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem basear-se na utilidade comum”.[33] Mas o que quiseram dizer os idealistas franceses ao elaborar o referido texto, que tanto inspirou a ordem jurídica de outros países e as cartas constitucionais destes ao longo dos anos?

Ora, sem maiores dificuldades, entende-se que aqui se fala em tratar de forma igual todas as pessoas iguais, pois os seres de uma mesma categoria essencial (qual seja, humana) devem ser tratados da mesma forma. Isto é, “em essência, como seres humanos, não se vê como deixar de reconhecer igualdade entre os homens. Não fosse assim não seriam seres da mesma espécie. A igualdade aqui se revela na própria identidade de essência dos membros da espécie”.[34]

Seguindo esse raciocínio, o legislador constituinte brasileiro positivou o princípio da igualdade ao afirmar, nos termos do caput do art. 5º da CRFB, que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito [...] à igualdade”. Nesse ínterim, ao interpretar o texto constitucional, Bonavides aduz que o princípio da igualdade perante a lei traz o significado de que os fatos assemelhados devem ser tratados igualmente pela lei, de modo que, se o fossem de forma desigual, esse tratamento seria arbítrio por parte do legislador ou do juiz.

Posto isso, ao correlacionar o conceito do princípio e direito fundamental da igualdade com a política proibicionista brasileira, visualiza-se que a criminalização de determinadas drogas pelo legislador implica violação da referida norma constitucional, visto que configura relevante distinção de tratamento entre pessoas que usam, adquirem, produzem ou comercializam substâncias ou produtos análogos.

Isto é, uma vez que a Lei n. 11.343/2006 determina que, para fins de criminalização, drogas são substâncias entorpecentes, psicotrópicas, precursoras e outras sob controle especial, capazes de causar dependência física ou psíquica – nos termos do parágrafo único do artigo 1º combinado com o artigo 66 da referida lei[35] –, como pode a tutela penal incidir somente sobre parte dessas substâncias?

Não poderia. Pelo princípio da igualdade, ao elaborar a lei, o legislador deveria reger, com iguais disposições – isto é, com os mesmos ônus e as mesmas vantagens – situações idênticas. Ao criar normas distintivas de pessoas, coisas ou fatos, que devem ser tratados com igualdade, o legislador torna inteiramente inútil o mandamento constitucional supracitado.[36]

Afinal, não é crime adquirir, portar, guardar, manter em depósito, preparar, produzir, vender, fornecer, oferecer, prescrever, ministrar, transportar, importar, exportar, remeter – dentre outros verbos incriminadores da lei em comento – substâncias ou produtos que contenham álcool, nicotina (presente no tabaco), cafeína, analgésicos, anorexígenos (presentes nos moderadores de apetite) e esteróides anabolizantes, por exemplo, apesar de todos interferirem no funcionamento do organismo humano e terem potencialidade de levar à dependência física e psíquica.[37] Mesmo assim, sabe-se que a produção, comercialização e consumo das substâncias acima exemplificadas são admitidos legal e socialmente.

Dessa forma, os indivíduos iguais e as situações análogas nas quais estão inseridos são arbitrariamente tratados de modo desigual pelo Estado, o que se materializada no conteúdo da Lei n. 11.343/2006. É como se da ordem jurídica brasileira não constasse do direito positivo o princípio da igualdade para limitar a atuação do Estado, ficando “[...] o cidadão privado de proteção judiciária contra o arbítrio que porventura se insinuasse na sociedade pelas dobras da própria lei, mediante uma vontade formalmente intangível do legislador”.[38]

Em verdade, o arbítrio do Estado proibicionista é configurado a partir do momento em que não há justificativas racionais e plausíveis, tampouco fundamentos concretos e objetivos, para que haja um tratamento (penal) diferenciado, uma desigualdade.[39]

Não há que se falar aqui de tratar de forma desigual indivíduos que “merecem” a tutela penal, para fins de proteção da incolumidade da saúde pública contra a conduta daqueles, como argumentam os defensores do proibicionismo. Afinal, se o objetivo é proteger a saúde pública, talvez o legislador tenha olvidado analisar os dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre as consequências sanitárias e sociais da presença de certas substâncias na vida do ser humano.

Nesse ínterim, saliente-se que os relatórios da OMS revelam como o álcool e o tabaco são importantes e crescentes causas de mortalidade e de doenças em todo o mundo, sendo classificados como “fatores de risco” que poderiam ser prevenidos. Para piorar a situação, o mercado dessas substâncias está aumentando – principalmente nos países em desenvolvimento, como o Brasil – de modo que, mais do que nunca, as pessoas estão sendo expostas a esses produtos, que trazem graves riscos em longo prazo para a saúde.[40]

Segundo os dados da pesquisa, em âmbito mundial, o tabaco é responsável por 8.8% das mortes e por 4.1% das doenças, que poderiam ser evitadas. Inclusive, entre os fumantes, as taxas de mortalidade são até três vezes mais elevadas do que entre os não-fumantes. Estima-se que, entre os países industrializados, onde o hábito de fumar tem se tornado comum, o fumo aumenta substancialmente o risco de mortalidade por diversos tipos de câncer (é responsável por 66% dos casos de câncer de traquéia, de brônquios e de pulmão, além de câncer aerodigestivo superior), doença respiratória crônica (38%), doença cardiovascular (12%), acidente vascular cerebral e uma série de outras doenças. Ademais, vale lembrar que o hábito de fumar também prejudica terceiros, pois há definitivos riscos para a saúde daqueles atingidos pelo fumo passivo.[41]

Por sua vez, o álcool é responsável por 3.2% das mortes e por 4% das doenças. Além dos efeitos diretos da intoxicação e dependência alcoólica, que resultam em transtornos e distúrbios pelo consumo de álcool, estima-se que ele seja a causa de até 30% de problemas de saúde crônica como câncer de esôfago, câncer de fígado, cirrose e epilepsia. Em geral, existem relações causais entre volume médio de consumo de álcool e mais de 60 tipos de doenças e ferimentos. Ainda, o álcool é um mediador poderoso que leva a desfechos agudos, tais como homicídios, acidentes automobilísticos, casos de violência doméstica, lesões intencionais ou não, dentre outros problemas sociais.[42]

Por outro lado, o uso de drogas consideradas ilícitas está relacionado a apenas 0.4% das mortes e 0.8% das doenças, em nível global.[43] Sobre essa questão, a pesquisadora do Programa de Ensino e Assistência ao Uso Indevido de Álcool e Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Magda Vaissman, comenta: “É óbvio que a maconha faz mal, mas quantas pessoas você conheceu que morreram por uso abusivo de maconha? Mas casos de pessoas que morreram por beber ou fumar cigarro de forma abusiva existem aos montes”.[44]

Assim, é nítido e inegável o fato de que a maior parte dos problemas de saúde no mundo são mais devidos ao uso de substâncias consideradas lícitas do que ilícitas. Inclusive, segundo as previsões da OMS para o ano de 2020, as substâncias psicotrópicas continuarão a manter a sua elevada posição na lista de “fatores de risco” à saúde.[45]

Tendo em vista os fatos acima correlacionados, conclui-se que, ao impor a criminalização apenas sobre algumas drogas, a intenção do legislador é dar uma solução aparente e uma resposta à pressão da opinião pública ou de certos grupos para agir contra um fenômeno socialmente indesejável, o que, geralmente, dá resultado, pois a imagem que prevalece na sociedade sobre o funcionamento do sistema penal é pouco realista. Logo, a variabilidade da natureza do ilícito comprova como a opção criminalizadora é essencialmente moral[46], além de ser historicamente variável e não estar conjugada à gravidade dos efeitos da droga na sociedade.

Por isso, é questionável a opção do legislador em distinguir situações análogas, já que não é dado o mesmo tratamento (penal) àqueles que se envolvem, de alguma forma, com quaisquer substâncias psicotrópicas – isto é, que levam à dependência – e nocivas à saúde. Conforme se observou, contemporaneamente, as drogas lícitas são até mesmo mais prejudiciais que as drogas ilícitas, pois somente o cigarro e o álcool, juntos, são responsáveis por 12% das mortes no mundo e 8.1% das doenças causadas ao organismo.

Deste modo, cremos que ou o legislador proíbe a utilização de todos os tipos de estupefacientes que cientificamente comprovados prejudicam de maneira mais ou menos uniforme a saúde, ou permite o uso e o consumo de todos aqueles que, de uma maneira ou outra, provocam em quem os utilizam situações de certo grau equivalentes. O que não pode ocorrer, desde uma perspectiva penal, é uma diversidade de tratamento que compromete seriamente esse princípio constitucional [isto é, a igualdade].[47] (grifo nosso)

Sendo assim, cabe aqui mais uma vez – e pela última – citar a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que entendeu ser inconstitucional a criminalização das drogas. Para melhor compreensão, destacam-se aqui os seguintes trechos do ilustre voto do relator, dessa vez no que tange à violação do princípio da igualdade:

[...] a criminalização primária do porte de entorpecentes para uso próprio é de indisfarçável insustentabilidade jurídico-penal, porque [...] viola frontalmente os princípios da igualdade [...], albergados pelo artigo 5º da Constituição Federal como dogmas de garantia individual.

[...] a criminalização do porte para uso próprio também viola o princípio constitucional da igualdade, pois há flagrante “distinção de tratamento pena (drogas ilícitas) e não-penal (drogas lícitas) para usuários de diferentes substâncias, tendo ambas potencialidade de determinar dependência física e psíquica”. [CARVALHO, Salo de. A política criminal de drogas no Brasil: estudo criminológico e dogmático da Lei 11.343/06. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 256].

[...]

Portanto, como a criminalização primária do porte de entorpecente para uso próprio é inconstitucional, a conduta do recorrente, que portava cocaína para uso próprio, é atípica.[48] (grifo nosso)

Sendo assim, urge assumir que a normatividade estatal deve adequar-se à realidade social e ao que fundamentalmente é assegurado na Carta Constitucional, no que tange ao direito de igualdade entre os indivíduos, pois só admissível tratamento diferenciado em situações concretas heterogêneas, o que, como foi suficientemente exposto e discutido, não é o caso.

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Sobre a autora
Andressa Barboza Félix

Advogada e Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FÉLIX, Andressa Barboza. A (in)constitucionalidade da criminalização das drogas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3547, 18 mar. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/23980. Acesso em: 6 mai. 2024.

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