Primeiro foi o presidente do STF, Joaquim Barbosa, que disse que os juízes são tendencialmente adeptos da impunidade (o que, evidentemente, não é verdade – daí a reação das associações de juízes). Em palestra proferida no curso Iniciação Funcional de Magistrados, o delegado Josélio Azevedo de Souza, do Serviço de Repressão a Desvios Públicos do Departamento da Polícia Federal (PF), pediu uma atuação “mais firme” da magistratura para diminuir a impunidade nos casos de corrupção no Brasil.
Esses discursos políticos opressivos contra os juízes (a pena é um ato político, dizia Tobias Barreto) estão se tornando unanimidade no nosso país (mas toda unanidade é burra, dizia Nelson Rodrigues).
Uma das mais nefastas consequências do populismo penal consiste na pressão que se faz contra a magistratura para que haja maior rigor penal, sob a crença mágica de que isso resolve o problema da criminalidade (veja nosso livro Populismo penal midiático, Gomes e Souza, Saraiva, 2013). Nada mais incorreto. Desde 1940 o legislador brasileiro tornou-se adepto do rigorismo penal (Luís W. Gazoto). A criminalidade, até hoje, com essa equivocada política criminal, só aumentou. A política puramente repressiva é enganosa. Aliás, é um engodo do regime democrático.
Há um grande equívoco discursivo sobre o papel do juiz no Estado Democrático de Direito. Quem conta com o poder punitivo (quem o exerce verdadeiramente) são os órgãos do executivo (polícia, sobretudo). O discurso jurídico-formal (nos livros e nas academias) afirma algo irreal. Ele diz: “Os legisladores manipulam o poder punitivo (em razão doprincípio da legalidade penal), os juízes aplicam a lei penal e os policiais fazem o que os juízes ordenam” (Zaffaroni, 2012, p. 433).
Nada mais enganoso. A dinâmica do real poder punitivo é exatamente o contrário, ou seja, os legisladores procuram demarcar o poder punitivo sem ter a mínima ideia sobre quem ele irá recair (e quando), porque é a polícia que faz a seleção criminalizadora. Quem exerce efetivamente o poder punitivo é a polícia (primordialmente). Quem escolhe a clientela (pobre ou rica) da Justiça criminal é a polícia.
O juiz, que não tem o poder de seleção dos casos, fica sempre subordinado ao que lhe é posto sobre a mesa. Julga pouquíssimos casos criminais, porque são pouquíssimos os casos investigados (com sucesso) e denunciados (algo que não passa de 3 ou 4% de todos os crimes cometidos). A impunidade é inerente ao poder punitivo. Não existe poder punitivo no mundo que alcance 100% dos casos.
O tolerância zero é uma utopia reacionária (Ferrajoli) que faz parte do engodo do populismo penal. O poder punitivo só consegue alcançar (seja rico ou pobre o criminoso, mas sempre maior é a última categoria) alguns casos esparsos. São amostras. O criminoso já conta antecipadamente com essa impunidade generalizada. Falta no nosso país uma política de prevenção, que é a única solução correta para o problema da criminalidade.
Sobretudo em cursos de formação inicial jamais se deveria admitir o discurso populista da “mão dura”. Cada juiz tem que ter consciência do seu papel no Estado Democrático de Direito: ele só pode cumprir o limitadíssimo, mas importantíssimo, papel de semáforo do sistema punitivo. “Em cada processo de criminalização secundária, os juízes dispõem do semáforo que mostra a luz verde, autorizando a continuação do poder punitivo, a luz vermelha, que o interrompe, ou a luz amarela, que o detém para pensar um pouco” (Zaffaroni, 2012, p. 433).
O juiz é o semáforo (não a sirene do sistema penal): se concede sinal verde para as arbitrariedades do poder punitivo, este se agiganta (e se transforma numa máquina de triturar a liberdade assim como a carne e os ossos humanos). Se lhe apresenta o sinal vermelho, cumpre seu papel de contenção do poder punitivo que, exercido sem limites, passa a protagonizar massacres indescritíveis (tal como os de Napoleão, de Stalin, de Hitler, das ditaduras etc.).