1. Introdução
O presente trabalho traz sucintas linhas a respeito da validade dos negócios jurídicos praticados com pessoa que foi, posteriormente, declarada incapaz em Ação de Interdição.
Frize-se que não há dúvidas acerca da nulidade dos atos praticados entre o interditado e terceiros, após o registro da sentença que declarou a interdição, nos termos do artigo 1.184 do Código de Processo Civil.
A questão central é se tal decretação de interdição pode retroagir e se e quando podem ser atingidos atos passados praticados entre terceiros e pessoa interditada.
2. Da Classificação da Sentença de Interdição.
Inicialmente temos que enfrentar o questionamento acerca de ser a sentença de interdição declaratória ou constitutiva.
O disposto no artigo 1184, do Código de Processo Civil, traz:
“A sentença que declara a interdição produz efeitos desde logo, embora sujeita a recurso. ...” (grifos nossos)
Na prática, se considerada meramente declaratória, a sentença de interdição, surtirá efeitos “ex tunc” e, portanto, retroagirão. Já se considerada meramente constitutiva surtirá efeitos “ex nunc”, os efeitos da sentença de interdição serão somente para o futuro.
Para Moacyr Amaral Santos, (1994, p 33 e 34):
“Sentenças Constitutivas. Assim, por exemplo, ..., as de interdição (Cód. Civil, art. 453 etc., etc.).”
“As sentenças constitutivas, como regra, têm efeito ex nunc, isto é, para o futuro, seus efeitos produzem-se a partir da sentença transitada em julgado.” ... “Outras sentenças constitutivas têm efeitos especiais, como por exemplo, a sentença de interdição, cujos efeitos são ex nunc, a partir da sentença, ainda que não transitada em julgado (Cód. Civil, art. 452)”.
Para Pontes de Miranda (1977, p. 367):
“O elemento declarativo é alto, porém não preponderante. O estado da pessoa é declarado e o que se constitui é a incapacitação.”
Em que pese verifica-se divergência sobre o tema é majoritário o entendimento de que os efeitos de tais sentenças são “ex nunc”, apesar do forte caráter declarativo da sentença de interdição.
3. Sentença de interdição: efeito “erga omnes” somente com o atendimento da segunda parte do artigo 1184 do Código de Processo Civil
Tanto a jurisprudência, quanto a doutrina, na sua grande maioria têm preferido preservar os terceiros que contrataram com pessoas que foram, posteriormente, declaradas interditadas, dando mais relevância aos princípios da boa-fé e da segurança jurídica em oposição aos interesses do incapaz, mesmo sendo certo que a ação de interdição tem como um de seus objetivos a proteção da pessoa interditada.
Tal questão tem grande relação com o fato de que a sentença de interdição somente tem efeitos “erga omnes” após cumprir as determinações contidas na segunda parte do “caput” do artigo 1184, do Código de Processo Civil, que passo a transcrever:
“A sentença de interdição produz efeitos desde logo, embora sujeita a apelação. Será inscrita no Registro de Pessoas Naturais e publicada pela imprensa local e pelo órgão oficial por três vezes, com intervalo de 10 (dez) dias, constando do edital os nomes do interdito e do curador, a causa da interdição e os limites da curatela.” (grifo nosso)
Frize-se que mesmo com a Apelação a sentença de interdição já passa a ter efeitos, porém, para que tais efeitos atinjam terceiros não integrantes à lide, necessário se fará o procedimento determinado no artigo supra transcrito.
Sobre o tema, assim se manifestou Pontes de Miranda (1977, p. 392):
“Assim, hoje, a inscrição no Registro de pessoas Naturais e a publicação na imprensa local e no órgão oficial por três vezes, no intervalo de dez dias, é indispensável para a eficácia erga omnes. Mas, com a sentença, mesmo que advenha apelação, produz efeito típico, desde logo, de modo que só se apaga tal efeito se acontece o provimento da apelação, que o retira.”
O Tribunal de Justiça de São Paulo manifestou sobre o tema desta forma:
“Prestação de serviços educacionais - Ação monitoria - Inadimplemento de mensalidades - Nulidade do negócio jurídico firmado com interdito - Contrato celebrado antes do registro da sentença de interdição e da publicação de edital - Condição de incapaz que não era pública e, portanto, não oponível a terceiro de boa-fé - Efetiva prestação dos serviços; que exige a respectiva remuneração - Vedação ao enriquecimento sem causa – Recurso provido.
1. O instituto da interdição visa a proteger o incapaz, e não a servir de escudo para o locupletamento indevido do interdito ou de seus familiares.
2. Ainda: o direito e Justiça não toleram e devem coibir, onde quer que se apresente o enriquecimento a dano de terceiro, mesmo que o beneficiário seja incapaz, amental, criança, órfão ou viúva desvalida.” (TJSP – 29ª Câmara de Direito Privado – Apelação n° 0002702-08.2009.8.26.0032 (990.09.244923-0) Relator: Reinaldo de Oliveira Caldas, Voto n° 3013, julg. 02/02/2011) (grifo nosso)
No mesmo sentido tem se manifestado o Superior Tribunal de Justiça:
“Reconheço que, buscando a preservação dos direitos de terceiros de boa fé, a sentença de interdição tem natureza constitutiva, com efeitos ex nunc, que estabelece uma nova situação jurídica em que se reconhece, a partir de então, a incapacidade de uma pessoa para a prática dos atos da vida civil, nomeando-se um curador para gerir os bens da pessoa interditada.” (STJ, Recurso Especial n° 1.141.465 – SC, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira, julgado em 11/12/2012)
Assim, mesmo sendo o objetivo maior das Ações de Interdição a proteção do incapaz, frente aos dos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, como dito acima, não poderá a decisão de interdição atingir os negócios jurídicos praticados anteriormente ao cumprimento das determinações contidas na segunda parte do “caput” do artigo 1180, do Código de Processo Civil, pois só essas providências revestem tal decisão com o efeito “erga omnes”.
4. Da eficácia da sentença de interdição produzindo-se individualmente
Pontes de Miranda (1977, p. 393) considera a possibilidade de se direcionar a eficácia da sentença de interdição para determinadas pessoas, independentemente do cumprimento da segunda parte do “caput” do artigo 1184, do Código de Processo Civil, ensinado:
“Pode haver interesse do interdito em que a eficácia da sentença atinja alguma pessoa ou algumas pessoas que somente receberiam a eficácia da sentença após as providências registrarias e editais. Então, o curador nomeado, ou o próprio advogado do interditando que figurou até o fim do processo, ou outro legítimo interessado, pode requerer a intimação pessoal ou as intimações pessoais. O que dependia da eficácia erga omnes passou a produzir-se, individualmente.”
A questão ora apresentada tem relevante interesse na prática jurídica, pois não é incomum que o ingresso de uma Ação de Interdição, além de buscar o efeito “erga omnes”, esteja focada em alguma questão mais direta e pessoal de interesse do interditado, quando poderá o patrono tomar tal providência, para que se produza a mencionada eficácia individual.
Porém, ressalta-se, que sempre com efeito “ex nunc”, ou seja, para atos futuros.
5. Do litisconsórcio necessário para se pretender a anulação de um ato
Ademais, importante salientar que para se anular qualquer contrato mostra-se necessário, de início, a participação de todos os contratantes, por trata-se de litisconsórcio necessário, o que poderia, inclusive, tumultuar o próprio procedimento de interdição que deve se dedicar inteiramente ao seu objeto, inclusive, por ter rito especial.
Comentando o artigo 47, do Código de Processo Civil, que trata do litisconsórcio necessário, Humberto Theodoro Júnior, em Código de Processo Civil Anotado, ed.12ª, Ed. Forense, p. 60:
“O que procurou estabelecer a lei, malgrado a imperfeição de linguagem do art. 47, foi que o litisconsórcio será necessário:”
“b) quando, sendo vários os sujeitos envolvidos na relação jurídica material, por sua própria natureza, a lide tenha de ser decidida de modo eficaz para todos eles, sejam, autores ou réus (ex.: anulação der um contrato promovida por quem se sente vitima de simulação ou fraude praticada por duas ou mais pessoas; ou...”
Importante apontar, não sendo observadas as questões quanto ao litisconsórcio necessário haverá afronta aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, o que poderia, inclusive, gerar a nulidade daquele feito.
6. Da sentença de interdição que traz retroação em seu teor
Mas se mesmo assim, o Juízo fazer constar da sentença de interdição uma data para a fixação da incapacidade, determinando a retroação de seus efeitos, qual será a validade desta retroação?
Sobre essa questão já se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo:
“Interdição - Doença Mental – Sentença de natureza constitutiva, e não declaratória, de uma situação nova, a sujeição ao regime jurídico de curatela, e que tem como causa a anomalia psíquica – Embora usual a fixação da data da incapacidade, até com retroação, A PROVIDÊNCIA É INÓCUA, desde que não faz coisa julgada e nem tem retroeficácia para alcançar atos anteriores praticados pelo interdito, cuja invalidade reclama comprovação exaustiva de incapacidade em cada ação autônoma – Apela não provida.” LEX JTJ – 212/104 (grifo nosso)
Ainda, do teor do mencionado acórdão se destaca:
“Quando o Juiz deixa preciso, na sentença o tempo em que começou a incapacidade, o efeito declarativo de modo nenhum é inerente à sentença (pode omiti-lo, como é freqüente), é o efeito declarativo da parte da sentença que a essa data se refere, tanto que pode esbarrar com a coisa julgada material de alguma sentença anterior e ação diferente, ou sobre a alegação, ou defesa, com elemento declarativo.” (grifo nosso)
“Nem vale replicar que a retroeficácia de que se cogita precisamente consistiria na invalidação de atos praticados, antes da interdição, pelo incapaz. O argumento é tecnicamente falso, porque confunde o efeito da interdição com o efeito da alienação mental.” (grifo nosso)
E por fim, conclui:
“... de maneira alguma estariam sujeitos a ela terceiros estranhos ao processo de interdição, em face dos quais se viesse a discutir a validade de atos praticados anteriormente pelo interdito.”(grifo nosso)
Assim, se o Juízo fizer constar da sentença de interdição, mesmo que na parte dispositiva, data para a incapacidade declarada com a finalidade de retroação de seus efeitos, tal providência será inócua, não devendo surtir qualquer efeito.
7. Da ação própria para anular atos passados praticados por pessoa interditada
Daí surge um questionamento: Diante do exposto acima, teria o interditado como pretender a anulação de ato que tenha praticado anteriormente à sentença de interdição?
Sobre essa questão assim, se manifestou Pontes de Miranda (1977, p. 393):
“Quanto ao passado (o momento em que começou a anomalia psíquica), não tem eficácia a sentença de interdição, a despeito do elemento declarativo junto à força constitutiva. Isso não impede que em ação que não é a de interdição se alegue, por exemplo, que a pessoa estava louca quando assinou um cheque ou uma escritura particular ou mesmo pública.” (grifo nosso)
Desta forma, para ver anulado um ato praticado antes da sentença de interdição o interditado deverá ingressar com ação específica para tal finalidade, na qual todos os envolvidos no contrato em questão figurarão como partes, respeitando-se, assim, o litisconsórcio necessário.
Desta forma, já se manifestou o Tribunal de Justiça de São Paulo:
EXECUÇÃO - EXCEÇÃO DE PRÉ-EXECUTIVIDADE – NÃO EVIDENCIADA QUALQUER NULIDADE PREVISTA NO ART. 618 DO CPC - DECRETO DE INTERDIÇÃO QUE OPERA EFEITO EX NUNC, SEM ATINGIR ATOS E NEGÓCIOS PRATICADOS ANTERIORMENTE - INVALIDAÇÃO DO QUESTIONADO CONTRATO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DEVE SER POSTULADA EM AÇÃO PRÓPRIA - INEXISTÊNCIA DE DUPLICIDADE DE GARANTIAS OU AMPLIAÇÃO INDEVIDA DA CONSTRIÇÃO JUDICIAL - DESCABIDA APLICAÇÃO DE MULTA POR LITIGÃNCIA DE MÁ-FÉ - RECURSO DESPROVIDO. (TJSP – 31ª Câmara de Direito Privado – Agrav. Instr. n° 1.121.041-0/0 - Rel. Francisco Casconi – Voto n° 14.148 – julg. 19/02/2008) (grifo nosso)
E, ainda:
“INTERDIÇÃO – Doença mental – Fixação da data da incapacidade com retroação – providência inócua – Sentença que não faz coisa julgada e em tem retroeficácia para alcançar atos anteriores praticados pelo interdito – Natureza constitutiva e não declaratória- necessidade de comprovação exaustiva da incapacidade em cada ação autônoma – Recurso não provido” (grifo nosso) – LEX JTJ – 212/104
E não deixando dúvidas sobre a necessidade de ingresso de ação própria para questionar a validade de ato firmado anteriormente à sentença de interdição, assim se manifestou o Superior Tribunal de Justiça:
“Mais uma vez é oportuno salientar que, decretada a interdição da agravante em agosto de 1.999, esta passa a operar seus efeitos desde logo, conforme preconiza o disposto no artigo 1.773 do Código Civil. Ocorre, todavia, que os atos anteriores a sentença de interdição são apenas anuláveis, podendo ser invalidados desde que judicialmente demonstrado, em ação própria, o estado de incapacidade a época em que praticados.” (AgRg n° Ag n° 24.836-MG, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJ de 31.05.1993, p. 10.670).(grifo nosso)
"DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO RELIGIOSO. EFEITOS CIVIS. INTERDIÇÃO. CÓDIGO CIVIL, 183, XI. FATO NOTÓRIO. CPC, ART. 334-1. RECURSO DESPROVIDO. I - SE INEXISTENTE PROVA DA INCAPACIDADE MENTAL DO VARÃO A ÉPOCA DA CELEBRAÇÃO DO CASAMENTO RELIGIOSO, VALIDOS OS EFEITOS CIVIS DECORRENTES DE POSTERIOR HABILITAÇÃO, MAXIME QUANDO INCONTESTE QUE A UNIÃO PERDUROU POR MAIS DE TRINTA ANOS. II - OS ATOS ANTERIORES A SENTENÇA DE INTERDIÇÃO SÃO APENAS ANULAVEIS, PODENDO SER INVALIDADOS DESDE QUE JUDICIALMENTE DEMONSTRADO, EM AÇÃO PRÓPRIA, O ESTADO DE INCAPACIDADE A ÉPOCA EM QUE PRATICADOS. III - NOTÓRIOS SÃO OS FATOS DE CONHECIMENTO GERAL INCONTESTE, A INDEPENDER DE PROVA." (STJ, AgRg no Ag 24836/MG, Rei. Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, QUARTA TURMA, julgado em 13/04/1993, DJ 31/05/1993, p. 10670). (grifo nosso)
“I – Para resguardo da boa-fé de terceiros e segurança do comércio jurídico, o reconhecimento da nulidade dos atos praticados anteriormente à sentença de interdição reclama prova inequívoca, robusta e convincente da incapacidade do contratante.” (STJ, Recurso Especial n° 9.077 – RJ, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo, julgado em 25/02/1992). (grifo nosso)
Portanto, a única forma para se anular atos praticados pelo interditado, anteriores à sua interdição, é por meio de ação especifica para essa finalidade, recaindo sobre o mesmo o ônus de provar as suas alegações e demonstrar a sua incapacidade à época de forma exaustiva, inequívoca e robusta.
8. Conclusão
Concluí-se que o terceiro que praticou atos da vida civil com pessoa interditada não poderá ver esses atos declarados anulados no bojo da sentença de interdição, desde que praticados antes da vigência dos efeitos “erga omnes” da referida sentença ou de ter tido ciência daquele feito, restando necessário para se obter a invalidade de determinado ato o ingresso de ação própria com essa finalidade, na qual incumbirá ao interditado o ônus de provar de forma robusta e inequívoca a incapacidade quando da prática do ato que se pretende anular.
Referências
Pontes de Miranda, Francisco Cavalcanti. Comentários aos Código de Processo Civil, tomo XVI. 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1977.
Santos, Moacyr Amaral. Primeiras Linhas de Direito Processual Civil, 3° Volume. 14 edição, atualizada. São Paulo: Saraiva, 1994.
Theodoro Júnior, Humberto. Colaboradores: Theodoro Neto, Humberto; Mello, Adriana Mandim Theodoro de. Código de Processo Civil Anotado. 12ª edição, revista, ampliada e atualizada. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
TJSP – 29ª Câmara de Direito Privado – Apelação n° 0002702-08.2009.8.26.0032 (990.09.244923-0) Relator: Desembargador Reinaldo de Oliveira Caldas, Voto n° 3013, julg. 02/02/2011
STJ, Recurso Especial n° 1.141.465 – SC, Relator: Ministro Alderita Ramos de Oliveira, julgado em 11/12/2012
LEX JTJ – 212/104 – TJSP – 2ª Câmara de Direito Privado - Apelação Cível n° 54.115-4 – Bebedouro – Relator Desembargador J. Roerto Bedran, Voto n° 9276, julgado em 12 de maio de 1998
TJSP – 31ª Câmara de Direito Privado – Agravo de Instrumento n° 1.121.041-0/0 - Relator Desembargador Francisco Casconi – Voto n° 14.148 – julgado em 19/02/2008
STJ, AgRg n° Ag n° 24.836-MG, Relator Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, DJ de 31.05.1993, p. 10.670
STJ, Recurso Especial n° 9.077 – RJ, Relator Ministro Sálvio de Figueiredo, julgado em 25/02/1992