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A inconstitucionalidade da quebra do sigilo bancário preconizada pela lei complementar nº 105

01/11/2001 às 01:00
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Premissa indispensável na elaboração de qualquer Constituição, por imposição do chamado conceito ideal de constituição introduzido no século XIX, consiste os Direitos e Garantias do Cidadão não só um instrumento concebido para assegurar o reconhecimento de direitos individuais e participação do cidadão nos atos do Poder Legislativo, como também um meio de coibir os abusos da Administração Pública.

Sendo assim, serve como um "escudo" contra os atos praticados pela Administração Pública que desrespeitem tais garantias, o que, indubitavelmente, justifica sua relevância constitucional.

Como nos ensina o Prof. Alexandre de Morais: "Na visão ocidental de democracia, governo pelo povo e limitação de poder estão indissoluvelmente combinados. O povo escolhe seus representantes, que, agindo como mandatários, decidem os destinos da nação. O poder delegado pelo povo a seus representantes, porém, não é absoluto, conhecendo várias limitações, inclusive com a previsão de direito e garantias individuais e coletivas, do cidadão relativamente aos demais cidadãos e ao próprio Estado".

A Constituição da República Federativa do Brasil, de forma inédita e inovadora em nosso ordenamento jurídico, consagrou a inviolabilidade de dados como um dos direitos fundamentais do cidadão, dispondo no artigo 5º, XII: é inviolável o sigilo de correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

Como se observa claramente no dispositivo supramencionado, apenas por ordem judicial e para os fins trazidos pela norma se faz possível a "quebra" do sigilo de dados.

Em virtude do artigo 58,§ 3º da CRFB e da jurisprudência pacífica do STF, não só o Poder Legislativo, como também as Comissões Parlamentares de Inquérito, em relação aos investigados, e o Ministério Público, quando se tratar de dinheiro ou verba pública, poderão "quebrar" o sigilo bancário.

Ademais, como salienta o já citado autor, "a inviolabilidade do sigilo de dados (art. 5º, XII) complementa a previsão ao direito à intimidade e a vida privada (art. 5º, X), sendo ambas as previsões de defesa da privacidade regidas pelo princípio de exclusividade".

Vale ressaltar, que o STF considerou o sigilo bancário como direito individual, colocando-o na condição de cláusula pétrea e, portanto, inafastável por emenda constitucional ou qualquer outro dispositivo.

Não obstante à vedação constitucional, promulgou o Poder Legislativo Federal Lei Complementar cuja finalidade precípua foi viabilizar o acesso pelo Fisco aos dados bancários de qualquer pessoa, física ou jurídica, sem a necessidade de ordem judicial.

Sendo assim, dispõe a Lei Complementar nº 105/2001:

Artigo 6º. As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.

Ademais, em virtude do disposto no artigo 5º da já citada lei, expediu o Poder Executivo Federal o decreto nº 3.724/2001, cuja atribuição foi de regulamentar o artigo 6º, relativamente à requisição, acesso e uso, pela Secretaria da Receita Federal e seus agentes, de informações referentes a operações e serviços das instituições financeiras e das entidades a ela equiparadas.

O decreto supramencionado, criou um procedimento administrativo – fiscal para a "quebra" do sigilo bancário, onde duas condições são indispensáveis, quais sejam, procedimento de fiscalização em curso e indispensabilidade da violação de dados.

Quanto à primeira condição, por força do parágrafo 1º do artigo 2º do decreto, corresponde à abertura de processo administrativo fiscal, já a segunda condição, dispõe o artigo 3º do mesmo instituto sobre os casos em que se considera indispensável os exames citados, quais sejam: I- sub avaliação de valores de operação, inclusive de comércio exterior, de aquisição ou alienação de bens ou direitos, tendo por base os correspondentes valores do mercado; II – obtenção de empréstimos de pessoas jurídicas não financeiras ou de pessoas físicas, quando o sujeito passivo deixar de comprovar o efetivo recebimento dos recursos; III – prática de qualquer operação com pessoa física ou jurídica residente ou domiciliada em país enquadrado nas condições estabelecidas no artigo 24 da lei 9.430/96; IV- omissão de rendimentos ou ganhos líquidos, decorrentes de aplicações financeiras de renda fixa ou variável; V – realização de gastos ou investimentos em valor superior à renda disponível; VI – remessa, a qualquer título, para o exterior, por intermédio de conta de não residente, de valores incompatíveis com as disponibilidades declaradas; VII – previstas no artigo 33 da Lei 9.430/96; VIII – pessoa jurídica enquadrada, no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, nas seguintes situações cadastrais: a) cancelada; b) inapta (art. 81 da Lei 9.430/96); IX – pessoa física sem inscrição no cadastro de pessoas físicas ou com inscrição cancelada; X – negativa, pelo titular de direito da conta, da titularidade de fato ou da responsabilidade pela movimentação financeira; XI – presença de indício de que o titular de direito é interposta pessoa do titular de fato.

Sendo assim, desde que presentes as duas condições acima referidas, pode a autoridade fiscal competente, requisitar ao presidente do Banco Central do Brasil, ou a seu preposto; ao Presidente da C.V.M, ou a seu preposto; ao Presidente de instituição financeira, ou entidade a ela equiparada, ou a seu preposto; e ao gerente de agência, por intermédio de um documento denominado RMF – Requisição de Informações sobre Movimentações Financeiras, a "quebra" do sigilo de dados, que compreende não só os valores dos débitos e créditos, mais também os dados constantes em ficha cadastral.

Ressalta-se ainda, que por força do parágrafo 3º do artigo 5º do Decreto, a disponibilidade das informações solicitadas não se trata de uma faculdade do destinatário da RMF e sim de uma obrigação, cujo descumprimento, retardamento ou omissão gera uma sanção sujeita à pena de reclusão.

A razão de toda esta produção legislativa, de maneira explícita, se encontra na Lei nº 10.174/2001, publicada em 09 de janeiro de 2001, ou seja, um dia antes da Lei Complementar nº 105 e do Decreto nº 3.724, cuja disposição se limita a alterar o parágrafo 3º do artigo 11 da Lei nº 9.311, instituidora da C.P.M.F, passando à seguinte redação:

"Art. 11, § 3º. A Secretaria da Receita Federal resguardará, na forma da legislação aplicável à matéria, o sigilo das informações prestadas, facultada sua utilização para instaurar procedimento administrativo tendente a verificar a existência de crédito tributário relativo a impostos e contribuições e para lançamento, no âmbito do procedimento fiscal, do crédito tributário porventura existente, observado o disposto no art. 42 da Lei no 9.430, de 27 de dezembro de 1996, e alterações posteriores."

Como se depreende, a função precípua da Administração Pública ao propiciar a "quebra" do sigilo de dados pelo Fisco, foi a criação de um meio rápido e supostamente eficaz de verificação de crédito tributário.

Os defensores da dos dispositivos supramencionados, utilizam dois argumentos para fundamentar suas razões: a) a tendência mundial em flexibilizar o acesso do Tesouro aos dados bancários (Direito Comparado) e b) a inexistência de inconstitucionalidade e invasão de intimidade.

Em relação ao primeiro argumento, utilizam de forma exemplificativa o procedimento fiscal de países como os Estados Unidos, Espanha, França, Bélgica e Holanda, cuja prática não reconhece nenhum vício de constitucionalidade.

Para melhor ilustrarmos o assunto, nos Estados Unidos por exemplo, por questões fiscais, toda a operação bancária que envolva quantia superior a U$$ 10.000,00 (dez mil dólares) deve ser imediatamente comunicada ao Tesouro.

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Ocorre que, ao contrário do Brasil, nos Estados Unidos o sigilo bancário não é disciplinado como direito fundamental; na Alemanha o sigilo bancário sequer é disciplinado pela Constituição ou por leis ordinárias, da mesma forma se procedendo com outras nações como Espanha, Itália, França, Bélgica e Holanda, cuja prática não reconhece nenhum vício de constitucionalidade.

O direito comparado, não obstante sua importância doutrinária para modernização do Direito, não possui o condão de afastar uma regra constitucional explícita, eis que o Brasil é um país soberano e a Constituição o pilar fundamental de todo o ordenamento jurídico nacional.

Já em relação ao segundo fundamento, confrontam seus defensores a regra do artigo 145, § 1º da CRFB com o garantia constitucional do sigilo bancário.

Dispõe o artigo 145, §1º da CRFB: sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à Administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

Nesta hipótese, a norma acima descrita, explicitamente limita a atividade da administração tributária ao subordina-la aos direitos individuais, o que claramente inviabiliza a teoria segundo a qual ao se confrontar os direitos constitucionalmente amparados, sigilo bancário e fiscalização tributária, o segundo se sobrepõe em virtude da relevância dos bens jurídicos envolvidos.

Uma outra corrente doutrinária, defende que inexiste invasão à intimidade ou à vida privada na quebra do sigilo bancário, eis que a devassa das operações bancárias e financeiras, por sua natureza contábil, não possibilita o conhecimento da esfera da vida privada ou intimidade de alguém.

Segundo estes doutrinadores, o conhecimento de simples dados numéricos ou contábeis não ensejam em hipótese alguma desrespeito à garantia constitucional do artigo 5º, X da CRFB.

Ora, inconcebível se vislumbrar que o conhecimento de toda a movimentação financeira efetuada, não possui relevância que justifique o desrespeito à intimidade e a vida privada.

Ademais, a discussão sobre o desrespeito ou não à intimidade não possui nenhuma relevância, eis que, independente do flagrante desrespeito ao inciso X do artigo 5º da Carta Constitucional, como já exposto, por força do inciso XII do mesmo artigo, apenas por ordem judicial pode o sigilo de dados ser "quebrado".

Como se depreende, a manutenção de normas que possibilitem a quebra do sigilo bancário de forma administrativa pelo Fisco, equivale ao afastamento de uma cláusula pétrea, condição imposta à esta garantia constitucional pelo próprio STF, cuja prática constitui não só uma aberração jurídica, mais também uma afronta ao Estado de Direito.

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Sobre o autor
Leonardo d`Almeida Girão

advogado, pós-graduando em Direito Tributário pela Universidade Cândido Mendes em Rio de Janeiro (RJ)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIRÃO, Leonardo d`Almeida. A inconstitucionalidade da quebra do sigilo bancário preconizada pela lei complementar nº 105. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 6, n. 52, 1 nov. 2001. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/2404. Acesso em: 2 nov. 2024.

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