4. Procedimentos judiciais no direito do trabalho, no direito consumidor e na previdência privada
IX. No específico âmbito processual trabalhista, o princípio da proteção significa a presença, principalmente na legislação, de previsões que procuram conferir tratamento mais favorável à parte mais vulnerável da relação processual, ou seja, o empregado[32].
Há, pois, inegavelmente, aproximação forte desse campo de Direito Social com o previdenciário. Tem-se, inclusive, que o princípio da proteção, como mais relevante princípio do campo laboral[33], aplica-se ao direito material do trabalho (forjando rígida interpretação do art. 9° da CLT[34]) e também ao direito processual do trabalho (construindo exigência de significativo depósito recursal tão somente por parte da empresa reclamada[35]).
Tratando do princípio da proteção, necessário abrirmos um parênteses para comentarmos algumas linhas a respeito da prescrição ex officio. Ocorre que o entendimento tradicional dos limites no reconhecimento da prescrição (a exigir prévia e expressa manifestação do réu no interesse do seu reconhecimento) teve grande ápice justamente no campo do direito do trabalho, já que a prescrição (sempre) é reconhecida em desfavor da parte hipossuficiente (empregado). Falando em tradição histórica da prescrição no nosso ordenamento, é cediço que a prescrição sempre fora enfrentada como matéria de defesa e elencada como questão de mérito, devendo ser invocada pelo réu com a contestação, sob pena de se tornar preclusa a arguição[36].
A partir da alteração da temática prescricional pelo art. 219, § 5° do CPC, a primeira exegese desenvolvida pela doutrina foi a de que a regra da declaração de ofício da prescrição é plenamente aplicável ao Processo do trabalho, uma vez que o diploma trabalhista consolidado é omisso e não há qualquer incompatibilidade entre este diploma e o Código de Processo Civil[37]. Em semelhante direção, também foi destacado que é “inevitável” a aplicação do art. 219, § 5° do CPC no processo trabalhista, sendo que as argumentações em sentido contrário, na verdade, estão a discordar do próprio Direito objetivo ora em vigor, situando-se assim no plano da crítica ao Direito legislado[38].
No entanto, é de se registrar que o tema prescricional, nos estritos limites da esfera laboral, não parece ser tão simples. Ocorre que sob diversa perspectiva, possível se observar que, no âmbito do processo laboral, a decretação da prescrição virá sempre em prol do empregador; será uma vantagem diretamente vinculada à parte mais forte do conflito de interesses submetido à apreciação do órgão jurisdicional – logo, parece razoável que seu reconhecimento de ofício pelo magistrado irá colidir, de forma impostergável, com o princípio de proteção[39].
Justamente ao encontro desse último entendimento, vem defendendo mais recentemente o TST que não se mostra compatível com o processo do trabalho a nova regra processual inserida no art. 219, § 5º, do CPC, que determina a aplicação da prescrição, de ofício, em face da natureza alimentar dos créditos trabalhistas: “Há argumentos contrários à compatibilidade do novo dispositivo com a ordem justrabalhista (arts. 8º. e 769 da CLT). É que, ao determinar a atuação judicial em franco desfavor dos direitos sociais laborativos, a novel regra civilista entraria em choque com vários princípios constitucionais, como da valorização do trabalho e do emprego, da norma mais favorável e da submissão da propriedade à sua função socioambiental, além do próprio princípio da proteção”[40].
Portanto, embora ainda a questão não esteja devidamente cristalizada na Justiça do Trabalho, há evidente tendência atual de desconsideração, nesse especializado procedimento, da inovação legal inserida no art. 219, § 5º, do CPC – sendo sedimentado pelo TST que a prescrição continua sendo matéria de defesa do réu, sujeita ao regime preclusivo, não podendo as Superiores Instâncias dela tratar, caso a questão não tenha sido invocada pelo réu na origem ou já tenha sido solucionada em decisão da origem não mais passível de recurso[41].
X. Indo em frente. Tendo em vista a relevância do crédito trabalhista, de natureza alimentar (como o benefício previdenciário), há necessidade de que o processo do trabalho garanta a proteção do trabalhador mas também que seja célere, simples, concentrado e eminentemente oral[42]. O processo eletrônico tende, nesse diapasão, a desenvolver tais aspectos em favor da parte autora hipossuficiente, existindo já forte incremento de Projetos-piloto – aproximando a realidade dos processos não físicos da Justiça do Trabalho com a pioneira Justiça Federal.
Por fim, no campo acidentário (demandas indenizatórias propostas pelo empregado em desfavor do empregador), com a competência estabelecida pela EC 45/2004, vem-se desenvolvendo em maior tom a possibilidade de inversão do ônus da prova – não se cumprindo fielmente as disposições contidas no art. 818 da CLT c/c art. 333 do CPC[43] ou mesmo admitindo-se a condenação da empresa sem prova de culpa, bastando tão somente, nesse último caso, que se comprove o risco da atividade empresarial – medidas essas inovadoras que claramente se colocam no campo processual a favor do trabalhador[44].
XI. A inversão do ônus da prova, aliás, é novel matéria que se consolidou especialmente a partir da redação do art. 6°, VIII do Código de Defesa do Consumidor. Ali encontra-se expresso que são direitos básicos do consumidor a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências.
Sem dúvida é mais uma disposição clara em favor da parte autora hipossuficiente, de natureza eminentemente processual. Sim, porque em geral o CDC é recheado de (oportunas) disposições favoráveis ao consumidor no campo do direito material (como o art. 51 a tratar da interpretação das cláusulas abusivas), sendo que é do nosso interesse ao longo deste ensaio dar ênfase as medidas protetivas de cunho processual.
Se no direito laboral se fala precipuamente no princípio da proteção, aqui se fala em “hipossuficiente” e “vulnerável” – sendo que é justamente aludido pela doutrina especializada que são essas deficiências do consumidor a espinha dorsal da proteção montada no CDC[45]. Embora sejam conceitos próximos, em tese vem sendo fixado que “vulnerável” é conceito de direito material e geral, ou seja, atinge a todos; “hipossuficiente” é conceito de direito processual e particularizado, o qual enseja, no CDC, o direito à inversão do ônus da prova[46].
O art. 6°, VIII trata então diretamente do conceito de “hipossuficiente”, consumidor que, no caso sub judice, precisa ter o devido respaldo do Estado-juiz, ao qual cabe devolver equilíbrio às partes litigantes, em desigualdade das mais diversas ordens. De fato, se de um lado todos reconhecem que o consumidor, em face de uma situação litigiosa, acha-se inferiorizado diante do fornecedor, de outro tem-se de aceitar a inversão do ônus da prova como meio de pôr em equilíbrio a posição das partes no conflito[47].
XII. A referida necessidade de intervenção judicial, muito presente no processo consumeirista, diga-se de passagem, surge precipuamente da tomada de consciência da insuficiência das partes e seus procuradores, por si só, serem agentes hábeis a conduzir, a contento, o processo em busca da verdade e da justiça; cabendo, pois, ao órgão judicial auxiliar nesta senda, tratando de equilibrar o jogo, em face de desigualdades sociais/econômicas/técnicas comumente presentes entre os contendores – conjectura que passou a exigir, em suma, algo mais do que a igualdade formal proporcionada pelo modelo processual liberal.[48] O Estado-juiz, nesse contexto atual, passaria, na verdade, a deixar de ser imparcial, se assistisse inerte, como um expectador de um duelo, ao massacre de uma das partes, ou seja, se deixasse de interferir para tornar iguais partes que são desiguais.[49]
Tal exigência moderna de suplementação de um modelo de atuação passiva do Estado-juiz na instrução processual orienta então o julgador a buscar a verdade independente da preclusão para as partes em matéria de prova – valendo-se de todos os meios probatórios lícitos e legítimos, típicos ou atípicos.[50]
Registre-se ainda que esse fenômeno do ativismo judicial foi sentido nos grandes sistemas processuais modernos, não só no sistema romano-germânico,[51] mas também na Common Law: na Inglaterra, a partir de novos paradigmas estabelecidos pela jurisprudência desde meados da década de 80, passou-se a se exigir participação ativa do juiz na composição das provas a formar o trial, inclusive mediante oficiosa intervenção no pre-trial;[52] e sendo analisados os avanços do processo americano das últimas décadas, identifica-se que especialmente o processo estrutural (envolvendo demandas coletivas e demandas individuais que podem atingir um número significativo de cidadãos em situação de direito semelhante) introduziu razões para o abandono de uma postura judicial puramente passiva, fazendo com que a confiança exclusiva na iniciativa das partes se tornasse insustentável.[53]
De fato, embora a regra tradicional seja a de que o juiz deva decidir segundo o alegado e provado pelas partes – iudex secundum allegata et probata partium indicare debet, o princípio dispositivo, ao longo da evolução do direito processual brasileiro (seguindo o fluxo mundial[54]), sofreu sensíveis restrições, consolidando-se que o juiz pode determinar as diligências necessárias à instrução do processo; sendo então absoluto somente no tocante à afirmação dos fatos em que se funda o pedido, no que o juiz depende inteiramente das partes – iudex secundum allegata partium indicare debet.[55]
XIII. No específico campo dos contratos de seguro envolvendo incapacidade, inclusive de ordem acidentária, há entendimento jurisprudencial interessante que vem sendo confirmado em favor da parte autora hipossuficiente. É o nosso registro derradeiro no ponto – a tratar da (des)necessidade de produção de provas periciais ou orais no processo securitário.
Ocorre que se o segurado exige o prêmio a partir de benefício definitivo concedido pelo órgão previdenciário – na via administrativa ou mesmo judicial – não parece crível se exigir do segurado que passe por longa fase instrutória, a fim de fazer prova de situação clínica já devidamente assentada.
Tal postura pode ser coibida judicialmente com base no art. 130, in fine do CPC, o qual autoriza o indeferimento de meios de prova desnecessários ao deslinde da causa e que trazem consequentemente prejuízo direto à celeridade processual.
Se o trabalhador já foi aposentado por invalidez pelo INSS, após inúmeras perícias administrativas perante mais de um perito autárquico – ou mesmo teve garantido o benefício máximo após processo acidentário em que foi submetido à avaliação de um expert oficial da confiança do Juízo (além de serem compulsados outros meios de prova, como o documental e o oral), por qual razão deve ser produzida prova pericial em ulterior ação securitária? Acreditamos aqui que o feito pode ser julgamento de maneira antecipada, após devida formação de contraditório em fase postulatória, tudo de acordo com o art. 330, I do CPC.
Entendimento diverso, que vai no sentido de que o “juiz é destinatário da prova” e pode requerer a providência probatória que bem entender, não parece ser a alternativa mais acertada (Agravo de Instrumento Nº 70009280819, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Vinícius Amaro da Silveira, Julgado em 22/07/2004). Mesmo porque, com o devido respeito ao entendimento diverso, entendemos que não é o juiz o destinatário da prova, e sim todos os integrantes da relação jurídica processual (Juízo e partes litigantes) – devendo ser produzido o meio probante realmente relevante para a solução do conflito, não sendo crível a produção de prova pericial ou mesmo oral que se mostre custosa e protelatória.
XIV. A mais nova matéria dentro do campo do Direito Social seria a da previdência privada.
Trata-se de campo novo, que possui a sua autonomia, mas que guarda vínculo muito próximo com a previdência pública, o direito do trabalho e mesmo o direito do consumidor.
Ocorre que aquele trabalhador (celetista), segurado da Previdência Social, que objetivar manter um suficiente padrão (financeiro) ao tempo da aposentadoria, deverá buscar a formação de uma previdência complementar (à pública) – especialmente, então, aquela gama de segurados que recebem acima do teto do Regime Geral[56].
Em relação ao direito laboral, tem-se que os fundos fechados são organizados (patrocinados) justamente pelas empresas, interessadas em manter alto padrão de funcionários, além de vantagens de ordem econômica e fiscal com a implementação de medida vantajosa a um determinado significativo grupo de empregados.
Temos aqui, pois, o campo da previdência complementar à pública, de natureza contratual e facultativa, nos termos do art. 202 CF c/c Lei Complementar 109/2001[57]. Essa questão da contratualidade inegavelmente aproxima a previdência privada do campo securitário, ainda mais se a espécie de previdência supletiva for do tipo “aberta” – em que há maior liberdade de escolha do produto contratado junto à pessoa jurídica, com fins lucrativos, sujeita às regras de mercado (regime diverso do “fechado” a determinado grupo de empregados vinculados a uma empresa patrocinadora).
Desenvolvida então em razão da existência de um teto para benefícios pagos pela previdência pública, a previdência privada se subdivide em Entidade Fechada Previdência Privada (EFPP) – Fundos de Pensão (como a PETROS – da Petrobrás, PREVI – do Banco do Brasil, FUNCEF – da CEF); e Entidade Aberta Previdência Privada (EAPP) – Sociedade Anônima (bancos e seguradoras).
Tal cenário, no país, é recente já que foi tão somente a partir da Lei 6.435/77 que foram instituídos esses dois sistemas de previdência supletiva no Brasil. A previdência fechada tem como órgão normativo o Conselho de Previdência Complementar e como órgão executivo a Secretaria de Previdência Complementar; já a previdência aberta tem como órgão normativo o Conselho Nacional de Seguros Privados e como órgão executivo a Superintendência de Seguros Privados[58].
Os problemas judiciais decorrentes da relação jurídica entre segurado e previdência complementar são, por isso, novos, inúmeros e vão seguir exigindo da magistratura cuidados e eventuais respaldos de ordem processual à parte autora hipossuficiente[59], inclusive a inversão do ônus probante – além de garantias, no campo do direito material, de exegese do contrato (muitos de adesão) firmado em lógica próxima àquela feita no campo consumeirista.
É de se alertar, nesse cenário, em demandas individuais, que geralmente o autor será pessoa idosa, aposentado sem o devido domínio da técnica matéria vergastada (v.g., revisão de benefício complementar), sendo que caberá ao Estado-juiz realizar aquele debatido equilíbrio de forças na guerra ritualizada, nessa hipótese de demanda individual – inclusive atentando-se para o fato de a entidade de previdência privada ré apresentar os principais (se não todos) os documentos pertinentes ao julgamento da causa que estejam em seu exclusivo poder.
Essa é ainda, de qualquer forma, a matéria de Direito Social menos debatida (embora nada singela), situação que deve modificar em razão de um número cada vez maior de brasileiros afetados – inclusive pela real possibilidade de, em tempo diminuto, ser integralmente efetivado o ingresso na previdência complementar dos servidores públicos federais.