Resumo: O poder de polícia exercido pela Administração Pública possui um limitador: a prescrição. Seja em sua pretensão punitiva ou executória, deverá o Poder Público se ater aos prazos e procedimentos estabelecido na legislação de regência. A modalidade de prescrição denominada intercorrente causa grandes discussões no âmbito judicial, merecendo especial destaque em seu estudo. Desse modo, ao aplicar a lei, a Administração Pública deve se limitar ao seu teor, não indo além daquilo que o legislador apregoou.
Palavras-chave: Direito administrativo. Direito civil. Administração pública federal. Autarquia. Agência reguladora. Poder de polícia. Pretensão punitiva. Prescrição. Prescrição intercorrente. Jurisprudência. Tribunal Regional Federal.
Sumário: 1 introdução – 2 Poder de polícia - 3 Prescrição intercorrente – 4 Conclusão – Referências.
1. Introdução
O tema prescrição enseja árduas discussões no âmbito da doutrina, em especial no tocante à definição dos prazos aplicáveis ao instituto e mesmo da sua aplicabilidade. Segundo Beviláqua, prescrição seria a perda da ação atribuída a um direito e toda sua capacidade defensiva, em conseqüência do não-uso delas, durante um determinado espaço de tempo[1].
Tal definição, extraída da esfera cível, sintetiza a lógica de omissão do Estado, a existência de prazo previsto em lei e a perda da possibilidade de agir ante uma conduta do administrado ao arrepio da lei.
O direito do Estado punir quem infringe as normas públicas, à exceção dos casos estabelecidos na Carta Federal, não se rege pela imprescritibilidade, em observância ao princípio da segurança jurídica. Quando se trata de aplicação de penalidade, os prazos de prescrição são fatais e operam como uma garantia ao agente público e ao administrado.
No âmbito federal, a Lei nº 9.873/1999 é o instrumento normativo que estabelece os prazos de prescrição para o exercício da ação punitiva pela Administração. Fixa, regra geral, o prazo de 5 anos como lapso prescricional da ação punitiva decorrente do exercício do poder de polícia, exceção feita aos fatos que constituem crimes, em que deverão ser observados os prazos previstos na lei penal, caso sejam apurados nesta esfera.
Esse artigo busca analisar a aplicação do instituto da prescrição às sanções aplicadas pela Administração no exercício do seu poder de polícia, reduzindo o escopo à modalidade intercorrente, que, ao nosso ver, é a que apresenta maiores discussões.
2. Poder de polícia
O poder de polícia consiste na faculdade de que dispõe a Administração para criar restrições ao uso de bens e ao exercício de direitos pelo particular, visando ao bem-estar da coletividade. Seu principal fundamento está na supremacia do Estado perante seus administrados.
O Código Tributário Nacional, em seu art. 78, assim define o poder de polícia: “Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”
Di Pietro, por seu turno, assim destaca: “é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”[2]. Trata-se de poder inerente à atividade administrativa, podendo ser originário, na hipótese de ser exercido pela Administração direta, ou delegado, quando é executado pela Administração indireta, na conhecida descentralização por serviços ou outorga legal.
A doutrina tradicional enumera 3 atributos inerentes ao poder de polícia: a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade.[3]
A discricionariedade reside na possibilidade da Administração valorar a conveniência e oportunidade de sua atuação. Assim, a Administração terá que decidir qual o momento mais adequado para agir e qual a sanção prevista em lei será mais condizente com o ato praticado pelo administrado.
Contudo, em determinados casos, a lei estabelece qual deverá ser a conduta do Estado, retirando a margem de discricionariedade inerente a esse poder. Nesses casos, diz-se que o poder de polícia é vinculado, pois já se mostra estabelecida a postura a ser adotada pela Administração.
A auto-executoriedade caracteriza-se pela desnecessidade da Administração submeter ao Poder Judiciário a execução de suas decisões. Vale dizer, os seus atos podem ser imediata e diretamente executados, independentemente de ordem judicial.
Sem embargo, nada impede que o administrado busque o Poder Judiciário caso discorde da conduta perpetrada pelo Estado, ante a existência de desvio ou excesso de poder, pois, segundo o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXXV, da Carta Magna).
O derradeiro atributo mencionado pela doutrina é a coercibilidade. O poder de polícia é dotado de força coercitiva, podendo ser imposto coativamente ao administrado. Esse atributo se aproxima em muito do próprio conceito de auto-executoriedade, sendo incluído por muitos especialistas na própria definição deste último atributo.
3. Prescrição intercorrente
A Lei nº 9.873/1999 assim dispõe a respeito da prescrição:
“Art. 1º Prescreve em cinco anos a ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, contados da data da prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado.
§ 1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.
(...)
Art. 1º-A. Constituído definitivamente o crédito não tributário, após o término regular do processo administrativo, prescreve em 5 (cinco) anos a ação de execução da administração pública federal relativa a crédito decorrente da aplicação de multa por infração à legislação em vigor”.
Delimita 3 situações distintas para a incidência da prescrição: i) Prescrição da pretensão punitiva, prevista no caput do art. 1º, verificada quando decorrido o prazo de 5 (cinco) anos entre o início da ação punitiva da Administração e a prática do ato ou, no caso de infração permanente ou continuada, do dia em que tiver cessado; ii) Prescrição da pretensão punitiva, na modalidade intercorrente, prevista no art. 1º, § 1º, que se evidencia quando o procedimento administrativo instaurado ficar paralisado por mais de 3 anos na pendência de julgamento ou de despacho; e iii) Prescrição da pretensão executória, estabelecida no art. 1º-A, quando decorridos 5 anos entre a constituição definitiva do crédito e o início do procedimento executório.
Pela simples leitura do transcrito art. 1º, § 1º, pode-se perceber que a prescrição intercorrente incidirá sempre que tiver sido instaurado processo administrativo para apuração dos fatos e houver inércia da Administração que paralise o processo por prazo igual ou superior a 3 anos.
Vale dizer, 2 são os elementos necessários para que se verifique a prescrição intercorrente: i) seja regularmente instaurado o processo administrativo visando à apuração do dano provocado pelo particular dentro do prazo de 5 anos estabelecido no art. 1º, caput, da Lei nº 9.873/1999; ii) haja inércia da Administração, deixando escoar o prazo de 3 (três) anos, por sua omissão, sem julgar ou proferir despacho nos autos. Coexistindo esses elementos, ocorrerá a perda da possibilidade de punir o infrator, ante a incidência da prescrição intercorrente.
Destaque-se que o estado de paralisia apto a ensejar a consumação do prazo prescricional deve ser provocado pela Administração. Não se pode, assim, contabilizar no curso do prazo prescricional o período atribuído ao particular para a produção de determinado ato, sob pena de possibilitar ao particular se valer de sua própria inércia para se aplicar o instituto.
Nos termos do mencionado art. 1º, § 1º, somente com o julgamento do processo administrativo ou com o despacho exarado por servidor público poderá ser interrompida a fluência do prazo da prescrição intercorrente. Sem embargo, o art. 2º da referida Lei, assim dispõe a respeito das causas interruptivas da prescrição da pretensão punitiva:
“Art. 2º Interrompe-se a prescrição da ação punitiva:
I – pela notificação ou citação do indiciado ou acusado, inclusive por meio de edital;
II - por qualquer ato inequívoco, que importe apuração do fato;
III - pela decisão condenatória recorrível;
IV – por qualquer ato inequívoco que importe em manifestação expressa de tentativa de solução conciliatória no âmbito interno da administração pública federal”.
Embora o art. 1º, § 1º apenas faça menção a julgamento e despacho como instrumentos suscetíveis de promover a interrupção do lapso prescricional, parece inconteste a aplicabilidade do art. 2º aos casos de prescrição intercorrente pelos seguintes motivos.
Primeiramente, saliente-se que a prescrição intercorrente é modalidade de prescrição da pretensão punitiva, apenas diferindo quanto ao momento de sua consumação e ao prazo a ser considerado. Havendo previsão legal estabelecendo as causas que possuem o condão de interromper a fluência do prazo prescricional, outra não é a opção senão aplicar o disposto na legislação de regência.
Em segundo lugar, destaque-se que o art. 2º, ao enumerar as hipóteses de interrupção do prazo prescricional, não fez distinção entre o prazo qüinqüenal e o trienal. Assim, não tendo o legislador os distinguido, não caberá ao intérprete fazê-lo.
Nesse contexto, não há como desvencilhar o conteúdo do art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.873/1999 daquilo estabelecido pelo seu art. 2º. Nos conceitos de julgamento e despacho deverão ser levados em consideração os requisitos especificados nas causas que interrompem o transcurso do prazo prescricional. Sendo assim, por julgamento entende-se a ocorrência de decisão condenatória recorrível, nos termos do art. 2º, III, da Lei nº 9.873/1999. Lado outro, por despacho entende-se o ato inequívoco, que importe apuração do fato e, consequentemente, dê impulso ao processo.
Não será qualquer ato administrativo que terá o condão de obstar a fluência do prazo de prescrição intercorrente, mas apenas o julgamento, consubstanciado em qualquer decisão recorrível, e o despacho que, além de promover o andamento do processo, retirando-o de seu estado de paralisia, importe em apuração do fato e seja orientado para essa finalidade.
A apuração do fato está relacionada com a atuação administrativa na investigação e comprovação da existência dos elementos autoria e materialidade. Sem a sua comprovação, não se poderá aplicar ao particular uma sanção por agir em desconformidade com a lei. Se assim não fosse, o administrado estaria a mercê da Administração, que poderia, por um despacho de mero expediente, impossibilitar que o prazo prescricional se consumasse.
Caso houvesse autorização para que qualquer ato administrativo pudesse interromper o prazo prescricional, ainda que referido ato não contribuísse para a efetiva apuração do fato e apenas promovesse impulso ao processo, estaria retirada a garantia conferida ao administrado de salvaguarda de que o processo não perdure indefinidamente, o que tornaria praticamente inócua a previsão do art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.873/1999.
Portanto, interpretando sistematicamente o contido na Lei nº 9.873/1999 e a Carta Magna, o entendimento que mais se coaduna com o instituto da prescrição intercorrente e com o princípio da duração razoável do processo, consubstanciado no art. 5º, LXXVIII, da Carta Federal, o qual estabelece que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, parece ser aquele que destaca que somente despachos que visem à apuração da infração ou decisões administrativas recorríveis possuem o condão de obstar a fluência do prazo prescricional.
4. Conclusão
O direito de punir não é eterno, à exceção daquelas hipóteses que a própria Constituição Federal delineia como imprescritíveis, como os crimes de racismo ou os praticados por grupos armados contra a ordem constitucional e o estado democrático. Havendo balizas, deve a Administração segui-las estritamente, porquanto uma atuação nos termos da lei traz segurança jurídica não apenas aos prestadores de serviço, mas a toda coletividade.
A Lei nº 9.873/1999, em sua redação original, estabelecia apenas normas atinentes à prescrição da pretensão punitiva, trazendo as causas que teriam o condão de interromper e suspender o seu prazo. A Lei nº 11.941/2009, promoveu significativa alteração na Lei nº 9.873/1999, agregando em seu conteúdo o instituto da prescrição da pretensão executória e trazendo também hipóteses capazes de interromper a fluência do seu prazo.
Contudo, a Lei nº 9.873/1999 se mostrou aparentemente incompleta quando não trouxe dispositivo específico que tratasse das causas interruptivas da prescrição intercorrente, apenas salientando, em seu art. 1º, § 1º, que esta incidiria no procedimento administrativo paralisado por mais de 3 anos, pendente de julgamento ou despacho.
O entendimento propugnado no presente artigo é no sentido de que, malgrado a lei não seja expressa com relação a qual tipo de despacho ou julgamento ela se refere, mister se faz interpretá-la de modo sistemático. Isso se deve não apenas ao fato de que a prescrição intercorrente é uma modalidade de prescrição da pretensão punitiva, mas também porque o art. 2º da referida lei não fez qualquer ressalva em restringir as causas de interrupção do prazo prescricional apenas às hipóteses do art. 1º, caput.
Quando o legislador quis especificar hipóteses distintas que poderiam obstruir a fluência do prazo prescricional, o fez de maneira pormenorizada, como nas causas previstas no art. 2º-A, em que foram destacadas as hipóteses que interrompem o prazo da prescrição da pretensão executória.
Por essa razão, o entendimento que parece mais consentâneo com todo o exposto é aquele que conjuga o conteúdo do art. 1º, § 1º, da Lei nº 9.873/1999, com o seu art. 2º, II e III, de modo que apenas o despacho que vise à apuração do fato e a decisão administrativa recorrível terão o condão de interromper o prazo da prescrição intercorrente.
Esse entendimento, que possui guarida em recentes julgados do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (v.g. Processo n° 5001538-45.2011.404.7000, Segunda Seção, Rel. Des. João Pedro Gebran Neto, data da decisão: 13/12/2012 e Processo n° 5005297-48.2010.404.7001, Terceira Turma, Rel. Des. Fernando Quadros da Silva, data da decisão: 30/05/2012), também vai ao encontro do disposto no art. 5º, LXXVIII, da Carta Magna, que assegura a todos, no âmbito judicial e administrativo, a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.
Posicionamento diverso, embora encontre eco no Poder Judiciário (v.g. Processo nº 5003766-27.2010.404.7000/PR, Segunda Seção do TRF da 4º Região, Rel. Des. Maria Lúcia Luz Leiria, Data da decisão: 11/10/2012 e Processo nº 200451010140181, Sétima Turma Especializada do TRF da 2ª Região, Rel. Des. Reis Friede, Data da decisão: 29/03/2011), acaba por gerar um status de insegurança jurídica.
Isso porque, ao admitir que qualquer impulso ao processo administrativo possa obstruir a fluência do prazo prescricional da pretensão punitiva, mesmo que não seja destinado à apuração do fato, incentiva a ocorrência de andamentos que não contribuem para o deslinde da questão e apenas mantêm o particular em uma situação de instabilidade, tornando praticamente inócua a previsão da prescrição intercorrente.
A matéria, contudo, carece de manifestação definitiva no âmbito dos Tribunais Superiores, especialmente do Superior Tribunal de Justiça, Corte competente para, nos termos da Carta da República, uniformizar a interpretação das leis federais.
Referências:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002.
DI PIERTRO, Maria Syliva Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. São Paulo: Atlas, 2005.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010.
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002.
PIRES, Luis Manuel Fonseca e ZOCKUN, Maurício (org.). Intervenções do Estado. Regulação e Poder de Polícia. São Paulo: Quartier Latin, 2008.
RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2002.
Notas
[1] RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – Parte Geral. V. 1. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 324.
[2] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002, p. 111.
[3] Vide CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. São Paulo: Atlas, 2002; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010.