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A dimensão filosófico-jurídica da equidade intergeracional: reflexões sobre as obras de Hans Jonas e Edith Brown Weiss

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15/04/2013 às 16:25
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Com o reconhecimento do Direito Internacional ao direito fundamental ao ambiente saudável e equilibrado, surgiu, também, a preocupação de que as futuras gerações devem ter (receber) as mesmas condições em relação ao Planeta Terra como as atuais. Aparecem, assim, concomitantemente os direitos e deveres intergeracionais.

Resumo: O presente artigo aborda a dimensão filosófica e a jurídica da equidade intergeracional e busca analisar autores consagrados que tratam do tema como o filósofo Hans Jonas e a jurista Edith Brown Weiss. Alicerça a dimensão filosófica na obra de Jonas – O Princípio Responsabilidade – trazendo a lume a teoria da responsabilidade e a necessidade de uma (nova) ética, a qual visa proteger as futuras gerações através de um dever de cuidado das presentes gerações com os recursos do Planeta Terra. Já a dimensão jurídica tem por base a obra de Brown Weiss sobre a teoria da equidade intergeracional no âmbito do Direito Internacional Ambiental, essa fundada em três princípios: o da diversidade das opções; o da conservação da qualidade; o da conservação do acesso. Embora dimensões distintas, elas se interrelacionam, tanto Jonas como Brown Weiss consideram que as presentes gerações têm um compromisso ético com as futuras gerações, uma responsabilidade com a vida. Pode ser estabelecido um diálogo entre os autores a partir da interpretação de seus textos, principalmente quando convergem na busca de um ethos planetário e através de uma ética do futuro fundada na responsabilidade.

Palavras-chave: Gerações futuras; Equidade intergeracional; Dimensão filosófica; Responsabilidade; Dimensão jurídica; Princípios da equidade intergeracional.

Sumário: Introdução. 1 A proteção do meio ambiente, equidade intergeracional e as gerações futuras; 2 A dimensão filosófica da equidade intergeracional; 2.1 Teoria da responsabilidade; 2.1.1 Responsabilidade parental como o arquétipo de responsabilidade para com as futuras gerações; 3 A dimensão jurídica da equidade intergeracional; 3.1 A equidade intergeracional e a teoria de Edith Brown Weiss; 3.1.1 Princípio da conservação da diversidade das opções; 3.1.2 Princípio da conservação da qualidade; 3.1.3 Princípio da conservação do acesso; 4 O diálogo entre a teoria da responsabilidade de Jonas e a teoria da equidade intergeracional de Brown Weiss; Conclusões; Referências.


INTRODUÇÃO

 Sin embargo debía correr el riesgo de considerar los valores como algo más que uma mera opción subjetiva, queriendo deducir del ser um deber, pues estoy completamente seguro de que en lo nuclear y crucial tengo razón, es decir, en la demonstración de que el ser tiene algo que decir acerca de cómo debemos vivir, pero sobre todo acerca de por qué seres como nosostros los humanos, que actuamos con entendimiento y libertad, somos responsables. Que esta cuestión haya adquirido dimensiones globales y planetária se debe a lla expansión de nuestro poder, con el echo de que nos hemos convertido en los agentes de ese poder y que lla responsabilidad sobre decisiones de enorme alcance, de conseqüências imprevisibles, há recaído enm nosotros. Es perenptoria uma nueva ética para la civilizacion tecnológica que esté a la altura de las exigências del momento.[1]

A tragédia ocorrida entre as décadas de 30 e 40 na era dos extremos[2] obrigou inúmeros intelectuais alemães, de origem judia, a buscarem refúgio contra a Shoah na França e depois nos Estados Unidos. Atravessando os Pirineus, em 1940, Hannah Arendt e Walter Benjamin, a partir da Espanha franquista, pretendiam chegar à América. Arendt salvou-se; Benjamin não. Do outro lado do mundo, na Palestina, outro intelectual também lutava contra o que o regime nazista havia imposto a ele e aos seus; Hans Jonas, antevendo a tragédia e fugindo da condenação à pena de morte, emigrara em 1933, primeiro para a Inglaterra; depois para a terra prometida. Em suas memórias, ao descrever a despedida dos pais (o pai morreu antes da “solução final”; a mãe no campo de Dachau), é pungente o que diz a eles, de que só voltaria à Alemanha como soldado de um exército invasor.[3] E assim o foi, em 1945 Jonas estava entre os soldados de uma brigada judia do exército britânico que liberou seu país do jugo nazista. Não quis ficar, voltou à Palestina e em 1955 emigrou para os Estados Unidos. Mas a guerra e suas conseqüências, bem como a hecatombe nuclear no Japão, haviam marcado Jonas de forma indelével; foi no horror vivido que ele começou a delinear suas reflexões sobre a vida e a natureza, o poder, a civilização tecnológica e a responsabilidade, enfim sobre o dever do ser.

Este artigo trata, então, em tempos também extremos, de crise ambiental - em que o aquecimento global e as mudanças climáticas advindas do mesmo são o maior desafio à humanidade – da equidade intergeracional no Direito Ambiental, qual seja, o tratamento igualitário e justo na distribuição dos recursos naturais e culturais entre as gerações. Busca analisar a dimensão filosófica e a jurídica da equidade e de como há um diálogo entre as mesmas. Traz, para tanto, a análise da obra de autores fundamentais à questão.

Em um primeiro momento trata da dimensão filosófica da equidade intergeracional, que tem na teoria da responsabilidade de Hans Jonas o seu fundamento ético-filosófico. Assim como ele anteviu a barbárie nazista, também anteviu a crise ambiental advinda da exploração desenfreada da natureza pelo homem e o perigoso poder da tecnociência sobre as presentes e futuras gerações. A realidade transformada pelo homem, exaurindo os recursos naturais, ameaça a sua própria existência. Isso é denunciado pelo filósofo já no Princípio Vida [4] e os desafios morais que a fissão nuclear e a devastação ambiental impõem são o objeto de suas reflexões.

Mais adiante, no Princípio Responsabilidade, Jonas define um imperativo ético de responsabilidade, o conhecido “obra de tal forma que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida humana autêntica na Terra” ou “não ponhas em perigo as condições da continuidade indefinida da humanidade na Terra”.[5] Logo, a conservação da vida não é algo que devemos só a nós mesmos, mas também às novas gerações e o imperativo da responsabilidade nos é incumbido por sermos parte de uma totalidade vivente maior, pois ao sermos a criação mais poderosa da natureza, temos especial responsabilidade – uma ética com a vida. Uma ética da responsabilidade que alcance as futuras gerações. Sobre isso, Jonas afirma que ele busca não uma “ética no futuro”, mas uma “ética do futuro”, é dizer uma ética hodierna que se preocupa com o futuro e assume a tarefa de proteger nosso descendentes das conseqüências de nossa ação presente.[6] A responsabilidade com as futuras gerações tem no paradigma da responsabilidade pais-filhos um arquétipo; é a responsabilidade parental a base de sua teoria da responsabilidade. É o apelo ao despertar de uma nova consciência ética, não só de respeito ao outro (s) – novas gerações – mas de responsabilidade para com as mesmas.

Em um segundo momento o artigo trata da dimensão jurídica da equidade intergeracional. A necessidade do desenvolvimento de uma teoria jurídica que reconhecesse um compromisso ético das gerações presentes para com as futuras gerações teve no âmbito internacional a primeira acolhida. A preocupação com o futuro do Planeta e as condições de habitabilidade do mesmo impôs às atuais gerações a transformação de um dever moral em um dever jurídico o compromisso ético antes referido. Surgiu, assim, o princípio da equidade intergeracional, previsto originariamente em acordos e convenções internacionais como a Declaração de Estocolmo (1972). Doutrinadores de distintos países passaram a abordar sobre o tema da equidade intergeracional, mas no campo do Direito Internacional Ambiental o estudo da professora Edith Brown Weiss é reconhecidamente um dos pioneiros, tendo desenvolvido a teoria da equidade intergeracional nos anos 80.[7]

Ela traça um arcabouço jurídico da equidade intergeracional, a partir dos acordos internacionais firmados e tendo como teoria de base o igualitarismo de Rawls. A professora de Georgetown em realidade inova ao estabelecer que o princípio da equidade intergeracional funda-se em uma espécie de tripé: o princípio da diversidade das opções; o da conservação da qualidade; e o da conservação de acesso. A inovação decorre da capacidade de percepção que a equidade intergeracional somente pode ser alcançada se as atuais gerações conservarem a diversidade biológica e cultural, contribuindo para que as espécies e culturas tradicionais não sejam erradicadas; se houver a conservação da qualidade dos recursos naturais existentes (de que adiantaria a conservação da água se o lençol freático já estivesse completamente poluído?) e se o acesso aos recursos naturais não for restringido ou impossibilitado.

Ao final do artigo, é analisado o diálogo entre a filosofia de Jonas e a doutrina jurídica de Brown Weiss, reconhecendo-se que ambos apregoam um compromisso ético, uma responsabilidade das presentes gerações para com as que virão. Que o ethos planetário defendido pela professora norte-americana vai ao encontro da ética do futuro do filósofo alemão. E em conclusões, sob a forma de tópicos, são alinhadas as considerações acerca da dimensão filosófica e jurídica da equidade intergeracional. É mister esclarecer que ainda se está construindo a dogmática da equidade intergeracional; nossa responsabilidade , portanto, é maior na medida que assumimos o risco de fazê-lo.


1 A PROTEÇÃO DO MEIO AMBIENTE, EQUIDADE INTERGERACIONAL E AS GERAÇÕES FUTURAS

O meio ambiente é pauta das notícias diárias, já faz parte do cotidiano e provoca em grande parte das pessoas preocupações tanto quanto a segurança, a saúde e o emprego. Não há quem fique indiferente ao que ocorre em seu entorno seja em relação aos problemas ligados à degradação ambiental – a questão do lixo poluindo os córregos e rios que atravessam as cidades; a péssima qualidade do ar em determinadas áreas; os ruídos acima da suportabilidade da audição são alguns deles – , bem como os urbanísticos-ambientais – invasões em áreas verdes; corte ilegal de árvores; edificações irregulares; e os próprios de uma terceira fase do direito ambiental – os referentes às mudanças climáticas e o aquecimento global. Contudo, se a sensibilização às questões ambientais vem ocorrendo em nível local, em outros âmbitos é incipiente. No estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, não se internalizou um debate sobre grandes projetos hidrelétricos como a construção da Usina Hidrelétrica de Pai Querê[8]; muito menos há uma maior sensibilização, em nível nacional, à questão da destruição da Floresta Amazônica e dos serviços ambientais que ela deixa de prestar à humanidade. Isso não significa que não tenhamos avançado na proteção ao meio ambiente; avançamos, mas ainda é pouco!

A proteção jurídica ao meio ambiente é fruto de uma convergência de fatores, sejam eles mais antigos – v.g., a luta do ambientalista norte-americano John Muir pela conservação da natureza e a criação de parques naturais como Yellowstone e Yosemite no fim do século XIX – como os mais recentes, a batalha de Rachel Carson, nos anos 60, contra a contaminação por produtos tóxicos. Embora antes dos anos sessenta houvesse o reconhecimento esparso da tutela a alguns bens ambientais – o antigo Código Florestal e o Código de Águas de 1934 no Brasil são exemplos – o meio ambiente não era algo que fosse incluído na pauta política como objetivo amplo de tutela estatal. Foi a Conferência de Estocolmo (1972) que originou um arcabouço jurídico internacional de proteção ao meio ambiente,[9] com a Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente, houve um progressivo aumento de governos e sociedades envolvidas com as questões ambientais, o que se traduziu no reconhecimento jurídico de um direito humano ambiental. Em se tratando de uma perspectiva histórica, o tempo transcorrido entre a consagração de um direito ao meio ambiente equilibrado pelo Direito Internacional - tão-só a partir do final da década de sessenta do século XX – e a internalização, por Constituições e leis de vários Estados, de um conteúdo ambiental, é um tempo de curta duração (menos de cinquenta anos), lembrando o historiador Fernand Braudel.[10] Porém, nesse tempo curto, um dos avanços na proteção do meio ambiente mais significativos está o reconhecimento de que deve haver o respeito à igualdade de condições entre o presente e o futuro, é dizer, as gerações futuras têm direitos intergeracionais; enquanto as gerações presentes têm deveres intergeracionais.

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Surge assim a teoria da equidade intergeracional. Equidade intergeracional, em um breve conceito, é um corolário da igualdade entre as gerações passadas, as presentes e as que nos sucederão; esta equidade contém dois componentes: aquele que diz respeito à justa utilização dos recursos naturais pelas gerações passadas, presentes e futuras e o que tange à responsabilidade da preservação de tais recursos, disponíveis a todos as gerações, pois nenhuma geração está acima das outras gerações. No campo da Filosofia e das Ciências Sociais, o conceito de equidade (equity) é objeto de análise há muito tempo, desde que os antigos gregos deram início às reflexões sobre o tema; o caráter de novidade da equidade é o seu desenvolvimento na área do Direito Internacional Ambiental, não obstante a Teoria Geral do Direito trate do tema desde outras épocas.

A doutrina da equidade intergeracional e sua aplicação na área ambiental ganhou fôlego com o acirramento da crise ecológica, por isso é recente o seu estudo.[11] Se antes tal crise não era percebida com tão grave, hoje o panorama mudou, por isso as preocupações não só com o presente também ganharam espaço. Logo, os problemas ecológicos de segunda geração[12] e o nosso legado às futuras gerações exigem não só dos filósofos, políticos, economistas, juristas respostas adequadas, mas de toda a coletividade. Nesta esteira, o princípio da equidade intergeracional é uma das respostas aos desafios que se impõem às atuais gerações. É uma aposta em uma percepção de solidariedade para com o outro; as futuras gerações somente poderão ser protegidas se nós nos comprometermos em garantir os recursos naturais e culturais, inclusive limitando, no que for possível, a nossa autonomia da vontade e outros direitos fundamentais para que se assegure uma vida digna e saudável em um Planeta que está, infelizmente, à beira do caos.


2 A DIMENSÃO FILOSÓFICA DA EQUIDADE INTERGERACIONAL

 Mas o novo imperativo diz que podemos arriscar a nossa própria vida, mas não a da humanidade; que Aquiles tinha, sim, o direito de escolher para si uma vida breve, cheia de atos gloriosos, em vez de uma vida longa em uma segurança sem glórias (sob o pressuposto tácito de que haveria uma posteridade que saberia contar os seus feitos); mas que nós não temos o direito de escolher a não-existência de futuras gerações em função da existência da atual, ou mesmo de as colocar em risco. Não é fácil justificar teoricamente – e talvez, sem religião, seja mesmo impossível – por que não temos esse direito; por que, ao contrário, temos um dever diante daquele que ainda não é nada e que não precisa existir como tal e que, seja como for, na condição de não-existente, não reivindica existência.[13] (Grifo nosso).

A equidade intergeracional tem na ideia-chave da ética da responsabilidade e de um dever para com o futuro, do filósofo alemão Hans Jonas, o seu fundamento ético-filosófico.

Aluno de Heidegger[14] e discípulo de Rudolf Bultmann, Jonas iniciou sua carreira acadêmica em 1921 e uma de suas primeiras obras publicadas tratou da Gnose no cristianismo primitivo (1934); com a ascensão do nazismo e a perseguição aos judeus, o filósofo fugiu para Londres e depois foi para a Palestina (1935), onde fez parte de uma brigada judia do exército britânico que lutou na II Guerra Mundial.[15] Em 1955 instalou-se nos Estados Unidos, tendo lecionado na New Scholl for Social Research de New York por mais de vinte anos. Segundo estudos já publicados e as memórias do próprio Jonas, as reflexões sobre a filosofia da biologia passaram a ser feitas em um segundo momento de sua vida intelectual, em 1966, quando identificou o equívoco do homem se separar do resto da natureza e imaginá-lo isolado das demais formas de vida – era o germe de uma nova concepção sobre a relação homem-natureza e a ética na civilização tecnológica.

Foi no terceiro momento, porém, da trajetória intelectual de Jonas que ele, sempre buscando as bases de uma nova ética, foi desenvolvendo um pensamento original sobre o ser e um dever de responsabilidade,[16] tendo escrito o hoje clássico Princípio Responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica (1979), em que desenvolveu a ética da responsabilidade. A responsabilidade assume a centralidade da ética, distinguindo-a, portanto da ética clássica, dos filósofos clássicos (v.g., Platão) e, mais tarde, Kant, em que a significação ética dizia respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem consigo mesmo; portanto, uma ética antropocêntrica.

Essa obra de Jonas, em que há a flagrante preocupação do filósofo com os avanços científicos que configuram uma nova ciência e os perigos deles decorrentes à natureza e a todos os seres que habitam o Planeta; a tecnociência - e o poder que emana da mesma - representa uma ameaça a todos (presentes gerações e futuras gerações). Diz que o programa baconiano (em alusão a Francis Bacon e a ideia mecanicista) de dominação da natureza por meio da técnica obteve êxito sim – tanto o econômico como o biológico - , mas alerta que o desmedido poder tecnológico pode levar a uma desfiguração do homem.

Para o filósofo alemão, a ética antiga (clássica), em razão da técnica moderna e da vulnerabilidade da natureza frente à tal técnica, não consegue mais enquadrar os novos objetos, nem o novo modo de agir do homem. Teria havido o triunfo do homo faber sobre o homo sapiens.[17] E, em uma visão que vai além do imperativo categórico de Kant – uma ideia de dever ou lei moral, o sentimento de respeito à dignidade humana - afirma que “não basta o respeito, pois esse reconhecimento do objeto que percebemos, por mais intenso que seja, pode permanecer inoperante. Só o sentimento de responsabilidade, que prende este sujeito àquele objeto, pode nos fazer agir em seu favor”.[18]

2.1 Teoria da responsabilidade

Hans Jonas iniciou seus estudos com Heidegger, e depois da II Guerra, já nos Estados Unidos, suas reflexões se voltaram para as descobertas das ciências naturais sobre o mundo, questões que envolviam não só o mundo da consciência, mas também o mundo real-material. A teoria da responsabilidade de Jonas, ou um tractatus technologico-ethicus como ele mesmo definiu, retoma a questão ética da responsabilidade, e também projeta de como a ética há de ser uma ética global, transtemporal, que se preocupa, não só com o ser (outro) ao lado, mas com o “outro” que está para nascer – a ética do futuro.

Ao delinear a sua teoria da responsabilidade ética, ele trata não de um sentido (jurídico) tradicional de responsabilidade, aquele de um dever objetivamente imposto a quem deu causa a determinado ato. É uma noção de responsabilidade que não concerne ao cálculo do que foi feito ex post facto, mas à determinação do que se tem a fazer; a noção em virtude da qual “eu me sentiria responsável, em primeiro lugar, não por minha conduta e suas conseqüências, mas pelo objeto que reivindicaria meu agir”. Esclarece Jonas:

 É a esse tipo de responsabilidade e de sentimento de responsabilidade – e não àquela ‘responsabilidade’ formal e vazia de cada ator por seu ato – que temos em vista quando falamos na necessidade de ter hoje uma ética da responsabilidade futura. Precisamos compará-la com o princípio motor dos sistemas morais anteriores e suas teorias. De acordo com os dois sentidos distintos do termo responsabilidade, podemos dizer, sem medo de cair em contradição, que alguém é responsável até mesmo por seus atos os mais irresponsáveis. Assim, a melhor forma empírica de se abordar esse substancial conceito de responsabilidade determinada pelos fins é nos perguntarmos o que pode ser entendido como um ‘agir irresponsável’. Aqui devemos excluir o sentido formal de ‘irresponsável’, ou seja, ser incapaz de assumir irresponsabilidade e por isso não ser passível de imputação de responsabilidade.”[19]

Esse modelo de responsabilidade é buscado por Jonas na responsabilidade dos pais (responsabilidade parental) e na responsabilidade do homem público (responsabilidade política). Afirma o filósofo que, não obstante se situem nos extremos do espectro da responsabilidade (uma natural; a outra “artificial”) tais responsabilidades são as que têm mais aspectos comuns entre si e as que, em conjunto, “mais nos podem ensinar a respeito da essência da responsabilidade”.[20] São três aspectos os comuns entre as responsabilidades “aparentemente” tão díspares: a totalidade; a continuidade; e o futuro – todos referentes à existência e sorte dos seres humanos. Antes da análise desses aspectos, é importante referir que Jonas evidencia a ligação da responsabilidade com o Ser vivo, dizendo que todos os seres vivos, em princípio, podem ser objeto de responsabilidade, mas que essa é a condição necessária, não a condição suficiente para tal. Assim, a marca distintiva do ser humano, de ser o único capaz de ter responsabilidade, também significa que ele deve tê-la por seus semelhantes. Ser responsável efetivamente por alguém ou por qualquer coisa em certas circunstâncias (mesmo que não assuma nem reconheça isso) é tão inseparável da existência do homem quanto o fato de que ele seja genericamente capaz de responsabilidade.[21]

A totalidade, enquanto aspecto comum da responsabilidade parental e a política (estatal), significa que a responsabilidade abarca o Ser total do objeto, é dizer, todos os seus aspectos, desde os referentes à existência bruta até os interesses mais elevados. O que fica mais evidenciado na relação pais-filhos, já que os primeiros são responsáveis pela satisfação das carências mais básicas de um recém-nascido até a sua formação educacional. Mas é justamente na questão da educação, é que se verifica uma interpenetração de ambas as responsabilidades, vez que o Estado participará também da formação da criança. Outra característica que aproximaria a responsabilidade dos pais e a dos homens públicos seria uma espécie de relação de afeto – semelhante ao amor - que existiria tanto entre os pais-filhos quanto entre o homem público-coletividade; no último caso, o indivíduo político surgiu dessa coletividade e se tornou o que é graças a ela e, por isso, “ele não é o seu pai, mas o ‘filho’ do seu povo e de sua terra, por isso ‘irmanado’ com todos aqueles que compartilham esses laços – os vivos, os que virão e mesmo os que já morreram”.[22] Tal sentimento engendraria um sentimento de solidariedade (que é análogo ao amor pelos indivíduos).[23]

No que tange à continuidade, essa resulta da natureza total da responsabilidade. Tanto a assistência paterna como a governamental não podem ser interrompidas, vez que a vida do seu objeto segue em frente. Logo - citando o exemplo do capitão do navio que não pergunta aos passageiros o que eles fizeram no passado ou o que farão no futuro, tão-só interessa a sua missão de transportar as pessoas de um lugar ao outro – Jonas expressa o horizonte da continuidade amplia-se no tempo histórico; nesse sentido a responsabilidade política tem uma dimensão mais vasta em relação ao passado e ao futuro.

O futuro, como o último aspecto da responsabilidade, se traduz no caráter vindouro daquilo que deve ser objeto de cuidado. Trata-se de um horizonte transcendente, em que “a responsabilidade nada mais é do que o complemento moral para a constituição ontológica do nosso Ser temporal”.[24] Tanto os pais como os governantes são responsáveis, também, pelo futuro, porém, o devir individual distingue-se do devir da esfera política; o primeiro vai do embrião ao adulto (é um devir orgânico); enquanto o segundo, por ser um devir histórico, sempre esteve aí, não precisa ser conduzido a tal estado. Então, a humanidade não é um objeto de um devir integralmente programado, do inacabado para o acabado, distinto dos seus membros individuais. Não se pode dizer da humanidade que ela ainda não é, mas sim, o que ela não era, como, por exemplo, os nômades ainda não eram agricultores.

2.1.1 Responsabilidade parental como o arquétipo de responsabilidade para com as futuras gerações

Após enunciar os aspectos comuns entre a responsabilidade parental e a política, Jonas reitera que a primeira é geneticamente a origem de toda a responsabilidade, por isso, um arquétipo de qualquer responsabilidade:

 Ela é arquetípica não apenas do ponto de vista genético e tipológico, mas, em determinada medida, também do ponto de vista ‘epistemológico’, por sua evidência imediata. O conceito de responsabilidade implica um ‘dever’ – em primeiro lugar, um ‘dever ser’ de algo, e, em seguida, um ‘dever fazer’ de alguém como resposta àquele dever ser. Ou seja, em primeiro lugar, encontra-se o direito intrínseco do objeto. Somente uma reivindicação imanente ao Ser pode fundamentar objetivamente o dever de uma causalidade do Ser transitivo (indo de um Ser a outro).[25]

A responsabilidade dos pais pelo recém-nascido decorre deles serem “autores” do Ser; a aceitação de tal encargo estaria contida no ato da procriação e a manifestação desse dever é total e contínuo. Como poderia um bebê sobreviver sem o aleitamento materno (ou outro tipo de alimento que o substitua)? Ou de que modo esse mesmo ser humano sobreviveria ao frio se não fosse abrigado? São exemplos simples, mas que traduzem, como diz Jonas, a evidência arquétipa da criança para a essência da responsabilidade. Logo, o estabelecimento da criança como o objeto paradigmático da responsabilidade não é de modo algum arbitrário, uma vez que ela reúne todos os principais aspectos da teoria jonassiana: a prioridade da responsabilidade do homem pelo homem, a sua precariedade e fragilidade e a sua abertura ao futuro.[26] Portanto, a responsabilidade dos pais pela criança é um paradigma incontestável e de visível concretude [27] e que serve de modelo à responsabilidade intergeracional.

Não se pode deixar de referir que a obra de Jonas também é vista sob um viés ecocêntrico, conforme se depreende das palavras de Sarlet:

 Em razão das mudanças ocorridas também no tocante à ação humana, notadamente por força do impacto ocasionado pela civilização tecnológica, Jonas questiona a validade da concepção antropocêntrica de toda a ética moderna. Nesse sentido, para o filósofo alemão, é com razão que se discute, por uma perspectiva moral, a possibilidade de reconhecer direitos próprios da Natureza, reconhecendo-se a existência de um ‘fim em si mesmo’ para além da esfera humana. A reflexão proposta constituiu um prenúncio dos novos caminhos que deverão ser percorridos no horizonte evolutivo do pensamento humano, já que, como pontua,‘ só uma ética fundada na amplitude do ser, e não apenas na singularidade ou na peculiaridade do ser humano, é que pode ser de importância no universo das coisas. Em virtude de tais considerações, Jonas destaca a ampliação do devir humano, que, para além de sua própria dimensão, também deve abarcar uma dimensão extra-humana, a fim de abranger o respeito pelas e o interesse das ‘coisas extra-humanas’. [28]

Não é o objetivo do presente artigo a análise dos direitos da natureza e também em particular dos direitos dos animais – o que já foi feito com maestria por Molinaro[29] – o que se busca trazer é o estudo de uma (nova) ética fundada na responsabilidade, objeto da última obra de Jonas. Porém, não há como se deslocar a visão ecocêntrica do filósofo alemão de uma responsabilidade ética que se impõe às gerações presentes.

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Sobre a autora
Simone Hegele Bolson

Advogada. Doutoranda em Direito Público - UNISINOS (RS). Bacharel em História - PUCRS.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BOLSON, Simone Hegele. A dimensão filosófico-jurídica da equidade intergeracional: reflexões sobre as obras de Hans Jonas e Edith Brown Weiss. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3575, 15 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24189. Acesso em: 4 nov. 2024.

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