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O novo divórcio e o Estatuto das Famílias

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3 A EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010 E OS SEUS EFEITOS

 

 

3.1 O OBJETO DA EMENDA

O novo divórcio, que foi instituído pela Emenda Constitucional 66/2010, veio, de acordo com Pablo Stolze e Pamplona Filho[37], com intuito de facilitar a implementação do divórcio no Brasil, passando este a ser reconhecido como o simples exercício de um direito potestativo. Assim, para muitos, a mudança extirpou a figura do divórcio conversão, passando a vigorar, tão somente, o divórcio direto e sem a necessidade de qualquer lapso temporal, podendo ser proposto a qualquer tempo.

Ocorre que, com tal inovação, a doutrina tem enfatizado alguns pontos fundamentais, como a questão da extinção da separação jurídica, da desnecessidade da exigência de prazo de separação de fato para propor ação de divórcio, do fim da culpa, dentre outros aspectos, que serão a seguir analisados.

3.2 O FIM DA SEPARAÇÃO JURÍDICA?

Com o advento da Emenda Constitucional 66/2010, muitos autores defendem o fim da separação jurídica, como já foi dito. No entanto, tal entendimento não é unanimidade, visto que outros juristas argumentam pela persistência da separação mesmo diante dessa mudança. Assim, trata- se de discussão atual e consistente, a persistência ou não da separação jurídica, a qual encontra- se refletida na jurisprudência pátria.

Sobre tal divergência Maria Berenice Dias defende que:

Como o tema é novo, a maioria dos textos são publicados em jornais ou estão disponíveis na internet. Mas a grande maioria de quem escreveu sobre a novidade sustenta que acabou a separação judicial, e, com ela, a exigência de prazos e a identificação das causas para a concessão do divórcio. O entendimento diametralmente oposto, sustentando que a mudança não é autoaplicável e não pode ser implementada antes de regulamentada pela lei ordinária, tem poucos adeptos. Mas há também posições singulares. Mesmo diante da reforma, persistiria a possibilidade da separação, quando esta for a vontade de ambos os cônjuges.[38]

Diante disso, para que se possa aprofundar em tal debate é necessário diferenciar a separação do divórcio. Assim, tem-se que separação judicial foi prevista expressamente no direito brasileiro desde a EC 09/77, a qual abriu a possibilidade de dissolução do casamento pelo divórcio. Com a separação, era dissolvida a sociedade conjugal, colocando-se fim a determinados deveres do casamento, como o de coabitação, fidelidade recíproca, facultando- se, também, a realização da partilha patrimonial. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona enfatizam:

Como sabemos a separação judicial era medida menos profunda que o divórcio. Com ela dissolvia- se, tão somente, a sociedade conjugal, ou seja, punha- se fim a determinados deveres decorrentes do casamento, como o de fidelidade recíproca, facultando- se também, em seu bojo, a realização da partilha patrimonial. Nesse sentido, estabelecia o art.1.576 do Código Civil:

Art.1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens.[39]

Portanto, a separação judicial não dissolve o vínculo matrimonial como no divórcio, mas sim, a sociedade conjugal, que no escólio de Carlos Roberto Gonçalves[40], ”é o complexo de direitos e obrigações que formam a vida em comum dos cônjuges.” Dessa forma, tal separação não permite aos cônjuges que contraiam novas núpcias, mas apenas extingue alguns deveres pertinentes ao casamento. Além disso, nesta existe a possibilidade de reconciliação, o que não acontece no divórcio.

Logo, não se pode confundir sociedade conjugal com vínculo matrimonial, visto que este último não se dissolve apenas com a separação. O vínculo conjugal somente é extirpado pela morte de um dos cônjuges, divórcio, nulidade ou anulação do casamento e morte presumida.

Com a mudança na Carta Magna, Gagliano Stolze e Pamplona Filho acompanhados da maioria dos civilistas, defendem o desaparecimento da separação jurídica no Direito Brasileiro, juntamente com alguns dispositivos do Código que a regulavam, por achar que esta se tornou inútil. Diante disso, os doutrinadores supracitados arguem que:

Sob o prisma jurídico, com o divórcio, não apenas a sociedade conjugal é desfeita, mas também o próprio vínculo matrimonial, permitindo- se novo casamento; sob o viés psicológico, evita- se a duplicidade de processos – e o strepitus fori – porquanto pode o casal partir direta e imediatamente para o divórcio; e, finalmente, sob a ótica econômica, o fim da separação é salutar, já que, com isso, evitam- se gastos judiciais desnecessários por conta da duplicidade de procedimentos.[41]

O doutor em direito civil e advogado Paulo Luiz Netto Lobo utiliza embasamentos ainda mais incisivos pela extinção da separação jurídica, afirmando sobre a força normativa da Carta Maior de revogar a legislação ordinária:

Há grande consenso, no Brasil, sobre a força normativa própria da Constituição, que não depende do legislador ordinário para produzir seus efeitos. As normas constitucionais não são meramente programáticas, como antes se dizia. É consensual, também, que a nova norma constitucional revoga a legislação ordinária anterior que seja com ela incompatível. A norma constitucional apenas precisa de lei para ser aplicável quando ela própria se limita "na forma da lei". Ora, o Código Civil de 2002 regulamentava precisamente os requisitos prévios da separação judicial e da separação de fato, que a redação anterior do parágrafo 6º do artigo 226 da Constituição estabelecia. Desaparecendo os requisitos, os dispositivos do Código que deles tratavam foram automaticamente revogados, permanecendo os que disciplinam o divórcio direto e seus efeitos. O entendimento de que permaneceriam importa tornar inócua a decisão do constituinte derivado e negar aplicabilidade à norma constitucional.

(...)

Não podemos esquecer da antiga lição de, na dúvida, prevalecer a interpretação que melhor assegure os efeitos da norma, e não a que os suprima. Isso além da sua finalidade, que, no caso da EC 66, é a de retirar a tutela do Estado sobre a decisão tomada pelo casal.[42]

Há, ainda, quem argumente que a separação jurídica não existe mais, em decorrência da própria necessidade de se acompanhar a desenvoltura social atual, onde se prospectou a autonomia privada. Nesse sentido:

 O direito de família, em especial, a separação, deve ser repensado à luz dessa autonomia privada. Por meio da autonomia privada, o indivíduo pode autodeterminar sua vida, conduzi- la da forma como melhor lhe convir em busca de sua felicidade, sempre respeitando os direitos de terceiros e as limitações constitucionais à sua liberdade.[43]

A contrário sensu, a opinião do Juiz de Direito André Köhler Berthold[44] é de que não houve mudança alguma com a nova emenda, sob a alegação de que “o que está na Constituição pode ser proibido por lei, a não ser que a própria Constituição proíba tal restrição”. Assim, este interpretou a Emenda sob uma ótica diferente da maioria dos civilistas. O autor supracitado diz que no seu ponto de vista “nada mudou quanto ao divórcio, só podendo ser concedido ao casal separado judicialmente há mais de um ano, ou separado de fato há mais de dois[45]”.

O desembargador Luiz Felipe Brasil Santos[46] comunga de pensamento parecido com o anterior. Ele argumenta ser cedo para comemorar o fim da separação judicial, visto que esta ainda persiste na legislação ordinária. Enfatiza que a própria Emenda 66/10 silenciou a esse respeito. Consequentemente, entende subsistir, ainda, a figura da separação judicial e do decurso de lapso temporal para a propositura da ação de divórcio. Esse doutrinador vai mais além, e defende ser necessária uma lei que regulamente tal emenda, para que se possa falar em extinção da separação judicial.

Tratando sobre o tema, o desembargador esclarece que:

Por aí se vê que a eliminação da referência constitucional aos requisitos para a obtenção do divórcio não significa que aquelas condicionantes tenham sido automaticamente abolidas, mas apenas que, deixando de constar no texto da Constituição, e subsistindo exclusivamente na lei ordinária (Código Civil) - como permaneceram durante 40 anos, entre 1937 e 1977 -, está agora aberta a porta para que esta seja modificada. Tal modificação é imprescindível e, enquanto não ocorrer, o instituto da separação judicial continua existente, bem como os requisitos para a obtenção do divórcio. Tudo porque estão previstos em lei ordinária, que não deixou de ser constitucional. E isso basta![47]

Por conseguinte, nas divergências ora apresentadas, também se indaga acerca da extinção do prazo da separação de fato para a propositura do divórcio. Entretanto, essa contenda tem por base os mesmos argumentos citados anteriormente. Isto porque uns entendem pela não revogação do Código Civil, sendo mantido tal requisito juntamente com a separação judicial; enquanto os outros defendem a vontade do legislador ao proferir a Emenda 66/2010, deixando de existir tanto um como o outro.

Resta claro, portanto, que a persistência ou não da separação judicial e extrajudicial e da necessidade do decurso de tempo da separação de fato para a ação de divórcio, após o advento da Emenda n. 66/2010, tornaram- se pontos de discordância entre alguns estudiosos do direito de família. Trata- se de uma questão interpretativa acerca da inovação. Diante disso, tal discussão também se reflete na jurisprudência, como se pode averiguar:

SEPARAÇÃO JUDICIAL. PEDIDO DE CONVERSÃO EM DIVÓRCIO. EMENDA CONSTITUCIONAL N. 66/10. APLICAÇÃO IMEDIATA E PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. DETERMINAÇÃO DE REGULAR ANDAMENTO DO FEITO EM RELAÇÃO AOS DEMAIS CAPÍTULOS DA SENTENÇA. (Apelação Cível Nº990.10.357301-3, Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator: Caetano Lagrasta, unanimidade – Julgado em 10.11.10)[48]

APELAÇÃO CÍVEL. SEPARAÇÃO JUDICIAL. PEDIDO DE CONVERSÃO EM DIVORCIO. IMPOSSIBILIDADE. EMENDA CONSTITUCIONAL 66/2010. NOVA REDAÇÃO AO § 6º DO ART. 226 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. VIGÊNCIA DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL (ART. 1.580 DO CÓDIGO CIVIL). REQUISITOS PRESERVADOS, POR ORA. 1. A aprovação da Emenda Constitucional nº 66/2010, ao dar nova redação ao § 6º do art. 226 da Constituição Federal, que dispõe sobre a dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, efetivamente suprimiu, do texto constitucional, o requisito de prévia separação judicial por mais de 1 (um) ano ou de comprovada separação de fato por mais de 2 (dois) anos . 2. Não houve, porém, automática revogação da legislação infraconstitucional que regulamenta a matéria. Para que isso ocorra, indispensável seja modificado o Código Civil, que, por ora, preserva em pleno vigor os dispositivos atinentes à separação judicial e ao divórcio. Inteligência do art. 2º, § 1º, da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei nº 4.657/42). NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO. UNÂNIME. [49]

No primeiro caso supramencionado trata-se de ocorrência da aplicação imediata da Emenda 66/2010. Todavia, no segundo, trata- se de recurso cuja sentença indeferiu a inicial. No entanto, foi negado provimento a apelação em unanimidade pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, onde, mesmo tendo mantida a sentença, mudou o seu fundamento da decisão de 1º grau. Eles entendem que com a promulgação da alteração constitucional, nada mudou. Desta maneira, o órgão colegiado considera em pleno vigor os dispositivos atinentes a separação judicial e ao divórcio previstos no Código Civil de 2002.

Outra questão interessante a ser suscitada é a respeito da continuação de ação cautelar de separação de corpos com o Novo Divórcio. Na visão de Gagliano e Pamplona Filho[50], é possível ao cônjuge prejudicado intentar pedido de separação de corpos, mesmo partindo do pressuposto de extinção da separação jurídica, já que poderá haver situações que acarretem o inequívoco interesse jurídico em intentar tal medida com intuito de afastar do domicílio conjugal o cônjuge, como por motivos graves, violência física, ameaça, torturas, maus- tratos, dentre outras causas.

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3.3 O FIM DA CULPA?

O novo divórcio trouxe à tona a polêmica sobre a necessidade da verificação da culpa pelo fim do casamento. Assim, é necessário que se trace um breve histórico a respeito do tema, para um melhor entendimento.

Tem- se que no Código Civil de 1916 não havia a figura do divórcio, uma vez que o casamento era indissolúvel. Nesta época, existia apenas o desquite, que poderia ser consensual ou litigioso. Assim, no desquite litigioso, mesmo sem se falar em extinção do vínculo conjugal, já se discutia a questão da culpa, posto que somente alguma ocorrência de uma das condutas culposas, previstas na época, autorizaria o desenlace. Aqui, o questionamento acerca da culpa estava extremamente presente. O doutrinador Dimas Messias, utilizando a idéia trazida por Leonardo Barreto Moreira Alves ressalta que:

No Código Civil de 1916, a família era caracterizada pelo binômio casamento e indissolubilidade do vínculo conjugal. Assim, a separação (desquite) dependia de prova de culpa e impunha sanções severas ao cônjuge declarado culpado, privando-o de direitos fundamentais à sua própria dignidade humana, como alimentos, uso do nome e guarda dos filhos, com o propósito inequívoco de colocar um freio e desestimular o pedido de separação por apenas um dos consortes.[51]

No entanto, com a promulgação da Emenda nº 09/77 e a sua regulamentação pela lei do divórcio, passou-se a classificar três tipos de separações, quais sejam: separação-remédio, separação-falência e separação-sanção. A separação- remédio deriva de doença incurável que torna impossível o vínculo conjugal, já a separação- falência decorre do fato de o casamento não mais existir por constatação de sua falência fática, não tendo mais nenhum dos cônjuges interesse em mantê-lo. Diante disso, houve certo arrefecimento na discussão da presença da culpa, estando assente com força somente na separação- sanção.

Com o Código Civil de 2002, foi mantido o “estatuto da culpa” e nesse contexto, conforme dispõe Maria Berenice Dias, “a indicação de forma tarifada foi ressuscitada, o que foi chamada de no mínimo retrógrado, por ser cópia da legislação do ano de 1916, o que já havia sido banido pela Lei do Divórcio[52]”.

De acordo com a referida doutrinadora, para propor a ação de separação ou divórcio litigioso, somente o cônjuge considerado “inocente” poderia fazê-la, apontando o requerido como “culpado” e declinando os motivos do pedido de separação, que encontram- se presentes no art. 1573 do Código Civil de 2002 [53], como se vê adiante:

Art. 1.573. Podem caracterizar a impossibilidade da comunhão de vida a ocorrência de algum dos seguintes motivos:

I - adultério;

II - tentativa de morte;

III - sevícia ou injúria grave;

IV - abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo;

V - condenação por crime infamante;

VI - conduta desonrosa.

Parágrafo único. O juiz poderá considerar outros fatos que tornem evidente a impossibilidade da vida em comum.[54]

Entretanto, a autora supracitada também chama atenção para o fato da própria jurisprudência ter passado, posteriormente, a reconhecer como desnecessária a identificação de conduta culposa para o fim do casamento. Diante disso, observa- se os seguintes julgados:

SEPARAÇÃO JUDICIAL LITIGIOSA. CULPA. Já se encontra sedimentado o entendimento de que a caracterização da culpa na separação mostra-se descabida, porquanto seu reconhecimento não implica em nenhuma sequela de ordem prática. Precedentes desta Corte. ALIMENTOS. Não faz jus a alimentos a mulher que tem qualificação profissional, está inserida no mercado de trabalho há mais de vinte anos e ainda dispõe de condições de incrementar sua renda mensal, tendo em vista o reduzido horários de trabalho - apenas quatro horas diárias. PARTILHA DE BENS. Indevida a determinação de partilha de bens na razão de 50% para cada um dos consortes sem que antes seja realizada a avaliação do patrimônio e oportunizada às partes a formulação de pedido de quinhão. Deve-se evitar ao máximo o indesejado condomínio. Apelo parcialmente provido. Divórcio decretado. (SEGREDO DE JUSTIÇA).[55]

AÇÃO DE DIVÓRCIO CUMULADA COM ALIMENTOS. BINÔMIO NECESSIDADE E POSSIBILIDADE CORRETAMENTE AFERIDO. DECISÃO CORRETA, NA FORMA E NO CONTEÚDO, QUE, INTEGRALMENTE, SE MANTÉM. O objeto da obrigação alimentícia depende não só das necessidades de quem recebe, mas também dos recursos de quem presta (art. 1.694, § 1º, do CC de 2002). Em se tratando de divórcio direto ou separação consensual, onde não cabe perquirição de culpa, os alimentos serão fixados com fiel observância do binômio possibilidade-necessidade, descabendo qualquer outra averiguação já que visa a sobrevivência do beneficiário. IMPROVIMENTO DOS RECURSOS.[56]

Logo, pode- se concluir que o instituto da culpa já estava, de certo, enfraquecido. Assim, com o advento da Emenda n. 66/2010, a maior doutrina vem advogando o desaparecimento de tal questionamento, sob o argumento de que, com o fim da separação jurídica, desaparecem, também, as causas objetivas e subjetivas para a dissolução da sociedade conjugal. Ademais, o Estado deixará de afrontar o direito à privacidade, intimidade e dignidade da pessoa humana. Na lição de Fernando Sartori:

Diante da possibilidade de o divórcio ser decretado sem prévia separação judicial, exigindo- se como requisito apenas a constatação de um fato objetivo- a separação de fato por mais de dois anos-, não existe mais razão para apurar a eventual conduta culposa praticada pelos cônjuges para se decretar a separação judicial. Acresça- se, o fato de o casamento não ser mais considerado a única forma de entidade familiar reconhecida pelo ordenamento jurídico, o que acarreta a perda do interesse por parte do Estado em querer preservá-lo e, quando isso não for possível, punir o responsável por seu término. Diante dos valores constitucionais, a manutenção da família, seja ela fundada no casamento ou na união estável, só se justifica quando as pessoas encontrarem nela a felicidade, a sua realização pessoal. Não bastasse, a apuração da culpa como causa da separação agride o princípio da dignidade da pessoa humana. Não pode o Estado exigir que os cônjuges discutam sua vida íntima em juízo num processo cujo fim é certo.[57]

Entrementes, a opinião contrária à supracitada proclama a subsistência da culpa mesmo com o fim da separação judicial, enfatizando que a discussão deverá se estender, agora, ao divórcio direto, como explica Amaral Salles:

Portanto, reputamos prematura a interpretação de alguns renomados juristas que afirmam que com a PEC do divórcio nunca mais se poderá discutir a culpa na ruptura da vida em comum. No nosso entender, a vedação da discussão da culpa no divórcio se aplica apenas aos casos de conversão de separação, judicial ou não, em divórcio. Nos casos de divórcio direto defendemos ser possível, sim, examinar a culpa e todos os demais temas próprios da separação, tais como alimentos, guarda de filhos, partilha, etc.[58]

Deve-se ressaltar, que está se falando sobre o fim da percepção da culpa para a decretação do divórcio e não para efeitos de responsabilização civil do cônjuge que descumpriu os deveres matrimoniais e causou danos ao outro. Dessa forma, não se pode afirmar que a imputação de culpa nas relações conjugais está excluída do ordenamento jurídico brasileiro. Sobre o assunto, assevera Dimas Messias:

Ao casarem, os cônjuges assumem os deveres de fidelidade recíproca, coabitação, mútua assistência moral e material, respeito e consideração mútua e a cuidarem da prole (art. 1.566, CC), importando responsabilidade a quebra injustificada das obrigações morais e materiais que assumiu, quando se torna gravosa a outro. A culpa deixou de ser relevante na dissolução do casamento, mas evidentemente não acabou no direito de família, o que seria nefasto ao casamento, por torná-lo um compromisso jurídico sem qualquer responsabilidade, importando seus deveres, meras faculdades, desobrigatórios, irrelevantes juridicamente.[59]

Sobre a referida discussão da culpa no fim do casamento, para efeito de responsabilização civil, cumpre ainda atentar para a posição minoritária, citada por Alex Quaresma Ravache[60], na qual aduz que ela deve ocorrer no mesmo processo de divórcio, e não no juízo de responsabilidade civil, como propõe a doutrina dominante.

Em suma, conforme o entendimento preponderante, conclui- se que a apuração acerca de quem tem a culpa não é mais necessária para o divórcio, mas sim, apenas, para efeito de responsabilização civil, como forma de preservar o respeito aos deveres conjugais.

Ao se considerar o fim da culpa no divórcio, é importante observar três efeitos, quais sejam, em relação à guarda dos filhos do casal, na questão de alimentos e uso do nome pelo cônjuge culpado. Tem- se que há pouca discussão quanto à guarda dos filhos e uso do nome, visto que cuida de questão quase superada no direito de família. Assim, poder- se- ia o cônjuge “culpado” ter para si a guarda dos filhos desde que oferecesse melhores condições psicológicas, dentre outras, ao saudável desenvolvimento destes. Nas palavras de Gagliano Stolze e Pamplona Filho:

Vale dizer, se não há razão fundada no resguardo do interesse existencial da criança ou do adolescente, o cônjuge que apresentar melhores condições morais e psicológicas poderá deter a sua guarda, independentemente da aferição da culpa no fim da relação conjugal. Claro está, todavia, que o deferimento dessa guarda unilateral só será possível depois de esgotada a tentativa de implementação da guarda compartilhada. Num caso ou noutro, vale lembrar, o elemento culpa não é vetor determinante para o deferimento da guarda.[61]

Em relação ao uso do nome, os renomados mestres acima mencionados defendem que:

Independentemente de quem tenha sido o responsável pelo fim do matrimônio (pois não se há de se perquirir a culpa ou inocência de nenhum dos consortes), qualquer das partes poderá, a todo tempo, optar por retornar ao nome de solteiro, mediante procedimento judicial de modificação de nome civil, a ser conduzido pelo juízo de direito competente para apreciar questões atinentes a alterações em registros públicos.[62]

Quanto aos alimentos devidos ao cônjuge “culpado”, a tendência é considerar, como único fundamento para a sua fixação, o binômio necessidade do alimentando e possibilidade do alimentante. O que se confirma também nas decisões de órgãos colegiados, como se vê adiante:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEPARAÇÃO JUDICIAL. PEDIDO DE EXONERAÇÃO DOS ALIMENTOS PROVISÓRIOS FIXADOS EM FAVOR DA EX-MULHER QUE RECEBE AUXÍLIO-DOENÇA PREVIDENCIÁRIO. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA DE NECESSIDADE. A obrigação alimentária vincula-se à cláusula rebus sic stantibus, podendo ser revisada sempre que ocorre alteração no binômio possibilidade e necessidade, sendo possível o pleito de redução, majoração ou exoneração de alimentos. A fixação dos alimentos não está embasada na culpa, mas sim na comprovação da dependência econômica daquele que pede. Comprovado que a ex-mulher, ao contrário do que declarado na inicial, recebe auxílio-doença previdenciário, com valor correspondente a 1,6 salários mínimos, valor superior ao pensionamento pleiteado, cabível a revogação da liminar que fixou o encargo alimentar, restando a questão submetida à dilação probatória na ação principal. AGRAVO DE INSTRUMENTO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70029099629, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 10/06/2009).[63]

Quanto a partilha dos bens no divórcio, a culpa pelo fim do casamento, também, predominantemente em nada influi, posto que a divisão do patrimônio conjugal se dá apenas com base no regime de bens aplicável.

3.4 QUESTÕES DE DIREITO INTERTEMPORAL

Partindo-se do pressuposto da defesa da maior doutrina, que é pela extinção da separação judicial e extrajudicial após o advento da Emenda 66/2010, serão analisadas a seguir as situações consolidadas e transitórias que foram atingidas por tal inovação. De acordo com Dimas Messias de Carvalho:

Ocorre que várias situações já consolidadas ou transitórias foram surpreendidas com a EC n.66/2010, especialmente pela não recepção da separação de direito e o divórcio por conversão, exigindo solução de acordo com o ordenamento jurídico, obedecendo- se a coisa julgada, o direito adquirido e os princípios do direito intertemporal. O direito intertemporal disciplina as relações jurídicas surgidas em um período, sob a vigência de uma lei, e as consequências sob o domínio de uma norma subsequente a anterior, estabelecendo princípios reguladores, entre eles o da irretroatividade da lei para preservar os também princípios do direito adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito.[64]

Logo, quanto ao estado civil dos antigos separados de direito, nada foi modificado, não possuindo a norma constitucional qualquer eficácia sobre situações já consolidadas. Sendo assim, caso tenham interesse poderão pleitear o divórcio a qualquer tempo, diferentemente do que se observava antes. Sobre o assunto o referido doutrinador leciona que:

Em outras palavras, os separados de direito continuam a ostentar o mesmo estado civil, até decidirem reconciliar, divorciar, ou, ainda, um deles falecer, ocasião em que o sobrevivente passa ao estado civil de viúvo, já que o vínculo do casamento não foi dissolvido com a separação.[65]

 O casal separado judicialmente não está impedido de proceder a um pedido de reconciliação, visto que tal possibilidade está prevista na separação. Cabe destacar, que não se encontra presente a possibilidade de reconciliação no divórcio. Assim, com o fim da separação jurídica, tal faculdade deixou de existir. Calha transcrever as palavras de Gagliano Stolze e Pamplona Filho:

Na mesma linha, se as partes se reconciliarem após o trânsito em julgado, ou seja, após o reconhecimento definitivo do divórcio, nada mais poderá ser feito senão contrair novas núpcias com o mesmo cônjuge, não havendo limites, como dito, para o ato de se casar com a mesma pessoa. (desde que atendidas as regras de validade do matrimônio).[66]

E como ficarão os processos de separação judicial em curso que ainda não foram sentenciados?

A doutrina tem divergido, surgindo várias opiniões. Dentre elas, José Fernando Simão proclama que, frente à extinção da separação jurídica com a EC n.66/2010, todas as ações que tem por objeto a separação jurídica devem ser extintas sem julgamento de mérito por impossibilidade jurídica superveniente do pedido, elencada no art. 267, VI do CPC.

No entanto, segundo Gagliano e Pamplona Filho[67], o juiz deverá dar oportunidade à parte autora (no procedimento contencioso) ou aos interessados (no procedimento de jurisdição voluntária), mediante concessão de prazo, para que façam um pedido de adaptação da ação ao novo sistema constitucional, convertendo- o em divórcio. Na visão dos referidos autores: é necessário que o juiz chame as partes e abra um prazo para dizerem se tem interesse na conversão e se não se manifestarem, o processo deverá ser em extinto sem o enfrentamento do mérito por perda do interesse processual superveniente, conforme o art. 267, VI, do CPC.

Já a insigne Maria Berenice Dias[68], diverge dos autores multicitados, ao ponto que defende que o Juiz deverá converter o processo de separação em ação de divórcio de pronto, sem prévio requerimento das partes. Cabendo a estas a expressa oposição à conversão, ocasião em que o Juiz deverá extinguir o processo por impossibilidade jurídica do pedido, uma vez que não pode o Magistrado prolatar sentença declarando direito que não está mais previsto em Lei.

Como meio de demonstrar aplicação prática a essa controvérsia, Dimas Messias de Carvalho[69] cita uma decisão proferida pelo Juiz da 1º Vara Cível da comarca de Minas Gerais:

No dia 14 de julho de 2010, data em que a Ec n.66/2010 foi publicada, o juiz da 1ª Vara Cível da Comarca de Lavras / MG, Núbio de Oliveira Parreiras, já aplicou a nova norma. Após orientar as partes e seus advogados em audiência de instrução, com a concordância converteu a separação litigiosa em divórcio e extinguiu o vínculo conjugal, acolhendo a nova orientação constitucional.[70]

 A opinião de Dimas Messias[71] sobre o assunto é na essência a mesma de Gagliano e Pamplona Filho, retro referenciada, diferindo apenas se as partes se recusarem a readequarem o pedido ou não se manifestarem no prazo concedido, ocasião em deverá ser extinto o Processo, sem julgamento do mérito, por impossibilidade jurídica do pedido, conforme disposto no artigo 267, VI, do Código de Processo Civil.

Segundo o referido doutrinador, quanto às ações de separação ajuizadas após a publicação da EC n.66/2010, estas devem ser extintas sem resolução de mérito por impossibilidade jurídica do pedido, com base no art. 267, VI do Código de Processo Civil[72].

De acordo com Maria Berenice Dias[73], o divórcio judicial e administrativo, com a extinção da separação jurídica passa por modificação no seu procedimento, tendo em vista que não necessita mais a indicação de testemunhas para prova da existência do decurso de prazo de dois anos. Nesse contexto, se já não se falava na “cláusula de dureza”, agora, então, que se confirma o aniquilamento de tal conduta ultrapassada.

3.5 PRINCIPAIS ARTIGOS DO CÓDIGO CIVIL AFETADOS

Na análise dos artigos do Código Civil que foram afetados, parte- se do pressuposto de que, com o advento da Emenda 66/2010, ocorreu a extinção da separação jurídica, uma vez que esta permanecendo, não há que se falar em qualquer modificação na legislação infraconstitucional.

Desta sorte, a doutrina dominante traz algumas alterações no Código Civil e noutras legislações como nas lei de Alimentos (Lei n.5.478/68), Lei dos Registros Públicos (Lei 6.015/77), Lei do Divórcio, Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90). Todavia, serão observadas neste trabalho apenas algumas mudanças importantes ocorridas no Código Civil.

Diante do que foi dito, é necessário se atentar ao fato de que não há nessa questão apenas um entendimento, ou seja, mesmo a doutrina que admite a extinção da separação jurídica, traz algumas divergências quanto à interpretação ou adequação da legislação à Emenda.

Assim, será demonstrado adiante, basicamente, o entendimento de três grandes autores que se destacam no Direito de Família e que tratam do tema brilhantemente, quais sejam, Maria Berenice Dias, Gagliano Stolze e Pamplona Filho, para que não se torne confusa a análise dos principais dispositivos do Código Civil que foram atingidos.

O art. 10 do Código Civil trata das situações que geram necessidade de averbação no registro público e, prevê, entre elas, a separação judicial e o restabelecimento da sociedade conjugal (ou reconciliação). Ocorre que, segundo entendimento majoritário, estes institutos não mais existem e, portanto, não há espaço para esses tipos de averbação. Ressalta- se que isso não se aplica aos que já estavam separados judicialmente e, após a mudança constitucional, decidiram se reconciliar.

            O art. 1.562 dispõe essencialmente sobre a possibilidade de se requerer a separação de corpos, antes de se mover ação de nulidade do casamento, a de anulação, a de separação judicial, a de divórcio direto ou a de dissolução de união estável. Segundo Maria Berenice Dias[74], com o fim da separação judicial, “é impositivo se excluir tal referência, permanecendo o artigo no que concerne às outras espécies de ações”.

Já o dispositivo que trata dos deveres matrimoniais, que antes, em virtude do seu descumprimento, levaria à separação, permanece intacto, uma vez que a obrigação recíproca entre cônjuges quanto a tais deveres persiste. Em caso de desrespeito a algum dos incisos elencados tais como fidelidade recíproca, continuará cabível, inclusive, ação de reparação de danos.

No artigo 1.571 estão arroladas as causas que levam a extinção da sociedade conjugal, e dentre elas está a separação judicial, como percebe- se na transcrição abaixo:

Art. 1.571. A sociedade conjugal termina:

I - pela morte de um dos cônjuges;

II - pela nulidade ou anulação do casamento;

III - pela separação judicial;

IV - pelo divórcio.

§ 1o O casamento válido só se dissolve pela morte de um dos cônjuges ou pelo divórcio, aplicando-se a presunção estabelecida neste Código quanto ao ausente.

§ 2o Dissolvido o casamento pelo divórcio direto ou por conversão, o cônjuge poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a sentença de separação judicial.[75]

Gagliano Stolze e Pamplona Filho defendem que o artigo supracitado foi amplamente atingido pela Emenda n.66/2010. Nesse sentido eles esclarecem que:

Encontra- se tacitamente revogado o inciso III, por conta da supressão da separação judicial. O §2º, na mesma linha, quedou- se tacitamente, não apenas por conta do desaparecimento da separação, mas também, por não mais haver a classificação tradicional do divórcio em direto e indireto.[76]

Sobre os artigos 1.575 e 1.576 do CC, Maria Berenice Dias tem entendimento divergente de Gagliano Stolze e Pamplona Filho, posto que aquela entende que onde consta “separação judicial” passará a se entender separação de fato; no entanto, estes defendem que tais dispositivos foram prejudicados.

O art. 1.577 dispõe que a todo tempo é possível a reconciliação, independentemente da causa responsável pela separação judicial. Porém, é nítido que, como já foi mencionado, não havendo em se falar mais em separação judicial, tal dispositivo foi completamente afetado, subsistindo apenas aos que se encontravam separados judicialmente quando da entrada em vigor da Emenda 66. Essa é a compreensão predominante.

Quanto ao art. 1.578, que antes admitia que o cônjuge culpado na ação de separação perdesse o direito a usar o nome do outro, ao entender de Maria Berenice Dias[77] parou de vigorar após a Emenda 66, uma vez que não se fala mais em cônjuge culpado pelo fim da relação. Assim, respeita- se exclusivamente a vontade de qualquer dos cônjuges de voltar ao nome de solteiro ou continuar usando o sobrenome de casado.

Não há mais que se falar, também, em prazo para a concessão do divórcio como está disposto no art. 1.580 do Código Civil de 2002. Portanto, considera- se revogado tal dispositivo.Já aqueles artigos que tratam apenas do divórcio, como o 1.581 e 1.582, entende- se como perfeitamente inalterados.

Por fim, os artigos 1.702 e 1.704 dispõem sobre alimentos devido ao cônjuge em razão de culpa pela separação judicial, os quais foram revogados, pois, para a atual concepção do divórcio a matéria está perfeitamente regulada pelo art. 1.694, onde vê- se necessário apenas a análise do binômio necessidade- possibilidade.

Em suma, depreende- se que não foram poucos os artigos do Código Civil que estão sendo considerados afetados pela Emenda do Novo Divórcio. Como se pode ver, a mudança de interpretação de alguns dispositivos, a total ou parcial supressão de outros, não se trata de questão clara e pacificada entre todos os doutrinadores. Diante desse problema, alguns civilistas estão clamando por uma lei que venha a regulamentar tal inovação, objeto de tantas controvérsias, como é o caso do desembargador Luiz Felipe Brasil Santos que sustenta:

Em conclusão, embora admita que a linha de pensamento que sustento representa uma visão politicamente incorreta, em um tempo em que a versão midiática, até do direito, tende a preponderar – penso que, por não haver qualquer incompatibilidade entre o novo texto do § 6º do art. 226 da Constituição Federal e os dispositivos correspondentes do Código Civil, estes últimos subsistem em sua inteireza, até que sejam objeto de modificação por lei específica.[78]

Ocorre que os estudiosos do direito de família estão ansiosos pelo resultado de um projeto de lei, que está tramitando no Congresso Nacional, tendo em vista que este poderá, por sua vez, responder aos tantos questionamentos suscitados com o Novo Divórcio. Assim, no capítulo seguinte será dada uma visão aprofundada de tal projeto, que tem a intenção de criar um Estatuto para o Direito de Família.

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Sobre a autora
Nara Oliveira de Almendra Freitas

Advogada em Teresina (PI).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FREITAS, Nara Oliveira Almendra. O novo divórcio e o Estatuto das Famílias. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3575, 15 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24193. Acesso em: 22 dez. 2024.

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