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Aplicação reinterpretada do art. 10, §3º do Código de Processo Penal

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16/04/2013 às 15:42
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É inconstitucional o sistema de tramitação do inquérito policial instituído pela Resolução n° 63 CJF, com o principal objetivo de se reduzir a tramitação do inquérito policial, excluindo-o da apreciação do Poder Judiciário.

Resumo: Em meados de 2009, começaram a proliferar no Poder Judiciário, em especial na sua esfera federal, atos que, objetivando atender ao interesse público na agilidade da persecução penal e na economia de recursos, autorizam a tramitação direta dos inquéritos entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, dispensando a participação do Poder Judiciário. Ao se analisar a referida sistemática à luz do arcabouço legal, conclui-se que a mesma parte de premissas inválidas para negar vigência, por meio de norma infralegal, a texto de lei vigente e recepcionado pala carta magna atual, violando assim o princípio do devido processo legal. Neste cenário, impõe-se a retomada da utilização do texto de lei cabível à espécie, merecendo especial atenção o art. 10, §3º do CPP, que deve ser aplicado de maneira reinterpretada, a fim de submeter ao seu regime apenas os inquéritos policiais onde existissem, reconhecidamente, indiciados. Tal exegese, além de preservar o arcabouço legal aplicável ao tema, igualmente logra diminuir trâmites desnecessários entre Polícia e Judiciário nos casos em que ainda não houver indiciados, também atingindo o objetivo utilizado como justificativa para a idealização da tramitação direta entre Polícia e parquet.

Palavras-chave: Processo Penal; Inquérito Policial; Polícia Judiciária; Devido Processo Legal; Garantismo Penal.

Sumário: 1. Introdução – 2.Panorama atual:Proliferação infralegal da tramitação direta entre Polícia Judiciária e Ministério Público – 3. O sistema de tramitação direta e o Devido Processo Legal: 3.1 Código de Processo Penal; 3.2 Controle Externo da Atividade Policial; 3.3 A Inconstitucionalidade – 4. Recapitulando as normas aplicáveis à tramitação do inquérito policial: 4.1 Releitura da aplicação do art 10, §3º do CPP – 5. Considerações Finais.


INTRODUÇÃO

A Constituição Brasileira garante a todos não ser privado da sua liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal (art. 5º, LIV da CF), princípio cuja essência assegura ao indivíduo que todo o processo do qual participe obedecerá às normas previamente estipuladas em lei.

Dentre os diversos ritos legais eventualmente passíveis de privar o cidadão de sua liberdade ou bens está o inquérito policial, que é o método de investigação que dispõe o Estado para desvendar a verdade material de um fato supostamente delituoso,com base em um juízo de probabilidade.Destarte, o Inquérito Policial, como parte integrante do sistema processual penal brasileiro, está abrangidono conceito do devido processo legal.

Portanto, apesar de a jurisprudência considerar o Inquérito Policial um procedimento administrativo informativo prévio a ação penal, de“natureza inquisitorial (não contraditória) por não ser processo(em sentido estrito), já que não destinado a decidir litígio algum”[1], é inegável que neste incide plenamente a garantia do devido processo legal, ainda mais se for considerado o fato deste comportar diversas medidas que cerceiam direitos individuais[2].

Desta forma, a investigação criminal deve ser realizada de acordo com as regras constitucionais e legais pré-estabelecidas, sendo-lhe aplicável, em regra, as normas do Livro I, Título II do Código de Processo Penal e disposições correlatas, notadamente no que diz respeito à autoridade competente para presidi-la e seu rito de tramitação, normas cujo desuso, infelizmente, vem sendo paulatinamente induzido pelo Ministério Público, com o aval do próprio Poder Judiciário, como no que tange ao rito referente à dilação de prazo para conclusão das investigações no inquérito policial.

Neste particular, observa-se que diversos Tribunais do paístêm afastado,a fórceps,a incidência do art. 10 do CPP e disposições análogaspor meio de normas infralegais, notadamente resoluções e portarias, imiscuindo-se de parte do controle jurisdicional sobre as investigações criminais em prol deum sistema de tramitação direta entre a polícia Judiciária e Ministério Público que se revela inadequado ao arcabouço legal vigente, violando assim o devido processo legal, conforme se verá a seguir.


PANORAMA ATUAL: PROLIFERAÇÃO INFRALEGAL DA TRAMITAÇÃO DIRETA ENTRE POLÍCIA JUDICIÁRIA E MINISTÉRIO PÚBLICO

Em meados de 2009, começaram a proliferar no Poder Judiciário, em especial na sua esfera Federal, atos que, objetivando atender ao interesse público na agilidade da persecução penal e na economia de recursos, autorizam a tramitação direta dos inquéritos entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público.

Tais autorizações partem do princípio de que a regra do art. 10,§§ 1 e 3º do CPP não se coaduna com a Constituição da República, mais precisamente o disposto no artigo 129, I e VII, de onde se conclui que é o Ministério Público o destinatário das informações coligidas no inquérito, sendo este o órgão que deve avaliar a necessidade de novas diligências e o prazo para as suas conclusões, bem como responsável pelo controle externo da atividade policial. Desta forma, os despachos judiciais de prorrogação de prazos de inquéritos a pedido da Polícia, não conteriam qualquer carga decisória, representando apenas uma homologação desnecessária quenada acrescentaria ao andamento da investigação, sendo a atividade jurisdicional, na fase administrativa do inquérito policial, um mero procedimentoburocrático,incompatível com os princípios da celeridade e eficiência e, portanto, dispensável.

O referido entendimento ganhou corpo, sendo prestigiado por entidades como o Conselho Nacional de Justiça (PCA n° 599, julgado em 16.08.2007), pelo Conselho da Justiça Federal (Resolução n° 63, de 26.06.2009),bem como pelas Corregedorias dos Tribunais Regionais Federais (Provimentos n° 37/2009, TRF 1ª Região; n° 95/1997, TRF 2ª Região; n° 108/2009 TRF 3ª Região; n° 1/2009 TRF 4ª Região; e n° 1/2009, TRF 5ª Região), os quais autorizam a tramitação direta dos inquéritos entre a Polícia e o Ministério Público, somente admitindo a distribuição destes aos Juízos competentes para decisão de matérias consideradas da reservada competência do Poder Judiciário, quais sejam:

·                    Denúncia, queixa ou pedido de arquivamento, promovido pelo titular da ação penal;

·                    Aguardar em juízo, ainiciativadaparteinteressada, quando se tratar de inquérito instaurado a pedido do ofendido ou de seu representantelegal,parainstruiraçãopenalprivada(art.19 do CPP);

·                    Requerimento de medidas cautelares criminais, tais como, prisão preventiva,prisão provisória, busca e apreensão, produção antecipada de provas, medidas assecuratórias, quebra de sigilo bancário ou fiscal, restituição de coisa apreendida, incomunicabilidade do indiciado, e outras;

·                    Comunicação de prisão em flagrante, com os respectivos autos;

·                    Requerimento de prorrogação de prazo para a conclusão de inquérito policial em que o indiciado se encontre preso.

Portanto, fora estas hipóteses, estipulou-seo inquérito policial terá andamento entre a autoridade policial e o Ministério Público Federal, que exercerá o respectivo controle externo, dispensada asua conclusão ao juízo.


3O SISTEMA DE TRAMITAÇÃO DIRETA E O DEVIDO PROCESSO LEGAL

Como pode se observar, partindo da premissa de que o Ministério Público seria o destinatário do inquérito policial e de que a este caberia o controle externo da atividade policial, normas infralegais afastaram a incidência do art. 10, §§ 1º e 3º do CPP, instituindo, a margem da lei vigente, uma nova sistemática de tramitação dos inquéritos policiais sem presos, onde estes, quando em curso, periodicamente tramitariam entre a Polícia Judiciária e o Parquet, independentemente de intervenção do Poder Judiciário.

A seguir, as premissas supra referidas serão confrontadas com o arcabouço legal vigente, objetivando melhor demonstrar que o sistema de tramitação ilustrado no item anterior não se adequa à legislação aplicável, tampouco a harmoniza com a Constituição Federal de 1988.

3.1 CÓDIGO DE PROCESSO PENAL

Conforme pode se observar no item IV da Exposição de Motivos dovigente Código de Processo Penal, o legislador infraconstitucional, ao conceber o referido diploma legal,optou pela manutenção do Inquérito Policial, ao invés da adoção do sistema denominado Juizado de Instrução, onde a prova é recolhida pelo próprio Juiz, por entender o primeiro, o qual também denominou de “instrução provisória”, mais adequado a realidade do nosso país, submetendo aquele, entretanto, ao controle judicial, como pode se observar, por exemplo, nos arts. 10, 16, 18, 19, 21 parágrafo único e 23 do CPP.

Ao comparar os dois sistemas, Tourinho Filhoformulou, de maneira muito pertinente, a seguinte questão:

“E qual seria a diferença entre um Juiz Instrutor e um Delegado de Polícia, no nosso ordenamento, se ambos têm a mesma formação jurídica? Apenas esta:as provas colhidas pelo Juiz Instrutor já integrariam a instrução criminal eas colhidas pelo Delegado de Polícia serviriam apenas e tão-somente para a propositura da ação penal...[3] Claro que o inquérito satisfaria melhor, como satisfaz, aos interesses da sociedade (evitando-se um julgamentoprecipitado) e, ao mesmo tempo, protegeria melhor o indiciado, que nãocorreria o risco de ser condenado com provas recolhidas sem a participação da defesa”[4].

Nos últimos anos, a doutrina processual penal pátria, que outrora não questionava o encaminhamento do inquérito policial ao Juiz competente com fulcro no art. 10, §§ 1º e 3º do CPP[5], passougradativamente se inclinar no sentido do reconhecimento do Ministério Público comoverdadeiro “destinatário” deste, enquanto titular da ação penal pública[6], bem comoem face do sistema acusatório - pautado pela delimitação dos papéis da acusação, defesa e julgamento -o que veio a embasar a admissão do trâmite direto do inquérito policial entre a Polícia Judiciária e parquet,tanto na sua conclusão, quanto na renovação de seu prazo,devendo o Judiciário permanecer afastado quando dos referidos procedimentos, ressalvadas as hipóteses anteriormente elencadas[7].

Ocorre que, por ser o objeto do inquérito a imparcial apuração da materialidade e autoria delitivas mediante busca da verdade real, as provas coletadas em sua instrução não implicam necessariamente em fornecer elementos para que o Ministério Público ajuíze a ação penal, podendo estas igualmente militar em favor da defesa do investigado[8], como, por exemplo, no caso de perícia conclusiva quanto à não autoria de um determinado suspeito.

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Ademais, a titularidade da ação penal não é atribuída ao parquetem caráter exclusivo, sendo esta também incumbida ao ofendido de maneira privativa, nos casos em que a lei admite, ou subsidiária, conforme arts. 29 e 30 do CPP.Neste particular, deve ser ressaltado que o sistema de tramitação direta omitiu-se quanto a prorrogação de prazo nos inquéritos sem presos que versem sobre crimes de ação penal privada, dando a entender que, ainda que nos casos em que o titular da ação penal e “destinatário” do inquérito seja o particular, os autos esdruxulamente tramitariam entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público.

Destarte, em razão do inquérito policial ter por objeto a isenta apuração da materialidade e autoria mediante busca da verdade, e não necessariamente a busca de elementos para quaisquer partes em superveniente processo judicial; que o único “destinatário” concebível para o inquérito policial não seria a acusação, a defesa ou até mesmo o julgador; mas a própria sociedade, que possivelmente teve um dos seus bens jurídicos tutelados penalmente vulnerados quando do fato investigado, e requer a sua completa elucidação.

3.2  CONTROLE EXTERNO DA ATIVIDADE POLICIAL

Outro fundamento utilizado para justificar a tramitação direta dos inquéritos entre Polícia Judiciária e parquet parte da premissa de esta rotina estaria inserida no âmbito do controle externo da atividade policial, outorgado ao Ministério Público por força do art. 127, VII da Constituição Federal, que estabelece que o mesmo será exercido “na forma da lei complementar”.

À propósito, como bem colocado por Adel Al Tasse, “Determinou a norma constitucional a atuação do Ministério Público, com o fim de coibir distorções ou abusos na ação policial, conduzindo tal preposição constitucional a afirmação de que o Ministério público deve velar pela legalidade dos atos praticados no inquérito policial, observando para que seja mantida a integridade física e moral do indivíduo, cuja conduta se encontra sendo investigada”[9].

No entanto, conforme já ressaltado, o legislador constituinte condicionou a eficácia da norma do art. 127, VII ao estatuído em lei complementar, tendo tal regulamentação, no âmbito do Mistério Público da União, ficado a cargo do art. 9º e 10º da LC 75/93 cujos termos, mutatis mutandis, se reflete nas legislações congêneres em âmbito estadual[10] – conforme transcrição a seguir:

Art. 9º O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais podendo:

 I - ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais;

II - ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial;

III - representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder;

IV - requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial;

 V - promover a ação penal por abuso de poder.

Art. 10. A prisão de qualquer pessoa, por parte de autoridade federal ou do Distrito Federal e Territórios, deverá ser comunicada imediatamente ao Ministério Público competente, com indicação do lugar onde se encontra o preso e cópia dos documentos comprobatórios da legalidade da prisão.

Desta forma, o exercício legítimo da atividade de controle externo deverá ser exercido dentro das balizas acima delineadas, sob pena de ser considerado ilegal[11].

Fixadas estas premissas, pode se observar que a tramitação direta em questão pouco ou nada tem a ver com os ditames do art. 9º da LC 75/93, já o controle da duração do inquérito policial não tem por escopo fiscalizar a lisura da atividade policial, mas sim tutelar os direitos individuais do indiciado que, ainda que presumidamente inocente, não pode ter contra si imputada a prática de uma infração penal por tempo indeterminado, conforme inteligência do art. 5º, XXXV, LVII e LXXVIII da CF.

Destarte, uma releitura do art 10 do CPP(e disposições congêneres)à luz dos princípios da Constituição da República revela que o mesmo se mostra plenamente recepcionado pela carta magna vigente, ao tempo em que outorga ao Juiz mais uma oportunidade para tutelar dos direitos fundamentais dos indiciados, ainda que em liberdade, mediante supervisão dos inquéritos policiais em curso, podendo este, inclusive, se valer da dilação de prazo para ordenar a produção antecipada de provas que considere urgentes e relevantes no inquérito policial, conforme art. 156, I do CPP, cuja redação foi ditada pela recente Lei 11.690/2008, ou seja, vinte anos após a entrada em vigor da constituição Federal de 1988.

E essa função garantidora difusamente exercida pelo Judiciário quando do prolongamento das investigações criminais não é passível de ser substituída pela atividade de controle externo do Ministério Público, pois esta última, em sede de Polícia Judiciária, deve possuir natureza eminentemente concentrada (destinada a atividade globalmente considerada)[12], já que a fiscalização difusa exercida em cada inquérito policial pelo membro do parquet que neste oficie estará fatalmente viciada pela parcialidade de quem naturalmente atentará muito mais para as eventuais omissões que impliquem na ineficiência da apuração do que para os direitos individuais do indiciado, pois fruto da ótica daquele que futuramente representará a acusação em subsequente processo criminal[13].

3.3              A INCONSTITUCIONALIDADE

Conforme exposto, ao se analisar a tramitação direta pretorianamente instituída entre Polícia e Ministério Público Federal à luz do arcabouço legal subjacente, conclui-se que a mesma parte de premissas inválidas para negar vigência, por meio de norma infralegal, a procedimento disciplinado em texto de lei vigente e recepcionada pala carta magna atual, violando assim o princípio do devido processo legal.

A propósito, o devido processo legal, assim como os princípios federativo, da separação de poderes e igualdade, inclui-se entre os chamados princípios estruturantes, que, como bem ressaltado por Humberto Ávila, normatizam o modo e o âmbito da atuação estatal, “não sendo adequado referir-se a eles com a expressão “dimensão de peso”. Como eles preveem uma estrutura que organiza e ordena determinados elementos ou conforma determinados modos de atuação e manifestação, a sua observância não é propriamente gradual, nem podem suas exigências ser afastadas por razões contrárias”[14].

Inclusive, tal regramento já é objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade n° 4305/DF, onde se pleiteia a declaração de sua inconstitucionalidade do referido sistema por considerá-lo incompatível com o disposto nos arts. 2º; 22, I; 128, §5º; e 129, VII da CF.

Neste mesmo diapasão, em 2010 o Conselho Superior da Magistratura do Judiciário do Estado de São Paulo decidiu recusar a proposta de permitir que inquéritos tramitem entre a Polícia e o Ministério Público sem a intermediação da Justiça[15]. Na oportunidade, enfatizou-se que embora as investigações policiais não tenham de se submeter ao contraditório, o fato de lidarem com a liberdade das pessoas já é motivo suficiente para que estas não se afastem da supervisão do Judiciário, não tendo a função de controlar externamente a polícia o condão de outorgar ao parquet a referida função. 

Suprimir o controle jurisdicional sobre a fase da investigação policial fragiliza garantias individuais, bem como a imparcialidade exigida nas investigações, pois, como salientado, o controle difuso da tramitação dos inquéritos pela via do controle externo da atividade policial é incompatível com a tutela de direitos fundamentais, já que o parquet é parte da dialética processual penal.


4RECAPTULANDO AS NORMAS APLICÁVEIS À TRAMITAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL

Demonstrada a inconstitucionalidade do sistema de tramitação direta entre Polícia Judiciária e Ministério Público, impõe-se retomar a aplicação dos dispositivos legais que regulam a matéria.

Ordinariamente, os prazos para conclusão do inquérito policial são regulados pelo disposto no art. 10 do CPP, que dispõe: 

1 -Indiciado preso (prazo de dez dias para conclusão do inquérito) e

2 -Indiciado solto (trinta dias).

Na primeira hipótese, entende-se majoritariamente que o prazo é de direito material, devendo a sua contagem ser procedida da forma prevista no art. 10 do CP, incluindo-se o dia do começo vencendo ao final do dia anterior ao do seu término[16]. Na segunda hipótese, o prazo é processual, não sendo computado o dia do começo, e sim o dia do seu final, na forma prevista no art. 798, §1º do CPP. Caso o indiciado seja preso no curso do inquérito policial, a partir daí passa a vigorar o decêndio legal, modificando-se o regime de contagem de prazo.

Tais prazos podem ser prorrogados, de acordo com o §3º do art. 10 do CPPque estatui,verbis, que “Quando o fato for de difícil elucidação e o indiciado estiver solto, a autoridade poderá requerer ao Juiz a devolução dos autos, para a realização de diligências, que serão realizadas no prazo marcado pelos Juiz”.

Desta forma, da leitura do dispositivo legal em vigor acima descrito, aplicável aos inquéritos policiais em geral, podem se extrair as seguintes observações:

1 - A possibilidade de prorrogação se restringiria as hipóteses de indiciado solto, o que, ressalvadas as exceções descritas adiante, impediria que a dilação de prazo fosse procedida nos inquéritos em que o indiciado se encontra preso[17]. Contudo, é razoável a admissão de moderada dilação desde que a conclusão do inquérito se dê antes do final prazo de cinco dias que o parquet dispõe para oferecimento da denúncia (art. 46 do CPP), o que não causaria qualquer prejuízo ao indiciado, desde que a acusação também ocorra dentro do referido período[18];

2 - O fato deve ser de difícil elucidação. Tal conceito deve ser interpretado de maneira contextualizada e ampliativa de sorte que dificuldades de ordens diversas que não propriamente a do fato em si, mas que impliquem em dificuldade na sua elucidação,sejam ponderadas em favor da continuidade das investigações[19];

3 – Quando do requerimento de dilação de prazo deverão ser indicadas as diligências pendentes, e, se possível, outras que se pretende realizar durante o novo período;

4 – O novo prazo concedido deverá ser devidamente limitado pelo Juízo que o concede e, na quantificação do referido período, deve o Juiz atentar não apenas para os marcos periódicos previstos na legislação vigente[20], mas sobretudo valorar o tempo necessário para que as diligências e o inquérito em si sejam de fato concluídos, mediante análise contextualizada que englobe desde o tempo médio para a realização das diligências, e até dificuldades administrativas vivenciadas pelo órgão solicitante, evitando-se assim sucessivos pedidos de dilação de prazo e consequente interrupção das investigações;

5 – Apesar do referido artigo ser silente a respeito, é salutar que, nas investigações que versem sobre crimes de ação penal pública, o parquet se manifeste acerca do requerimento de dilação de prazo, abrindo-se uma oportunidade para o mesmo sugerir outras diligências visando prevenir o prolongamento do inquérito com base no art. 16 do CPP, bem como para que este, desde logo, opte por oferecer a denúncia ou requerer o arquivamento com base nos elementos de prova até então colhidos, manifestando-se contrariamente a devolução dos autos à autoridade policial, o que será deferido pelo juiz, desde que a interrupção das investigações não implique em supressão de provas que eventualmente impliquem em prejuízo ao direito de defesa do indiciado após deflagrada a ação penal, conforme inteligência do art. 156, I, do CPP[21].

Tratando-se de atribuição ratione materiae da Polícia Federal, aplica-se o art. 66 da Lei 5.010/1966, admitindo-se, prorrogação por igual período, mediante requerimento fundamentado da autoridade presidente do inquérito, com apresentação do preso ao Juízo competente, devendo este último ponderar a indispensabilidade desta última medida, dada a logística necessária para a que o deslocamento do indiciado preso seja executado (escolta transporte etc), somada a possibilidade de contato com o custodiado mediante videoconferência, conforme art. 185, §8º do CPP, cuja redação foi dada pela Lei 11.900/2009.

Outra exceção a regra prevista no art. 10 do CPP encontra-se na Lei 10.343/06, que prevê em seu art. 51 prazo de 30 dias quando o indiciado estiver preso e de 90 dias quando este estiver solto, podendo estes ser duplicados mediante pedido fundamentado da autoridade policial, ouvido o Ministério Público.

No caso do art. 3º da Lei 1.521/1951, único crime do referido diploma legal que, por não ser de menor potencial ofensivo, não se encontra submetido ao regime legal dos Juizados Especiais Criminais, ainda vigora o prazo excepcional previsto em seu art. 10, §1º, que estatui o prazo de 10 dias para a conclusão do respectivo apuratório sem distinguir as hipóteses do indiciado se encontrar em liberdade ou não.

4.1              RELEITURA DA APLICAÇÃO DO ART. 10, §3º do CPP

Fixadas as premissas supra, deve ser observado que, apesar do art. 10 do CPP sempre atrelar as hipóteses de prorrogação de prazo ao status libertatis do indiciado, a praxe forense consagrou a formalização de requerimentos de dilação de prazo com fulcro no §3º do referido dispositivo legal, ainda que não haja indiciados no inquérito policial, o que, data vênia, não reflete a leitura mais adequada a ser dada à referida norma, cuja exegese deve se dar à partir de uma análise que combinaria elementos sistemáticos e histórico-evolutivos de interpretação jurídica.

Consoante o magistério de Paulo Nader, o elemento sistemático da interpretação, “consiste na pesquisa do sentido e alcance das expressões normativas, considerando-as em relação outras expressões contidas na ordem jurídica, mediante comparações”[22]. Mais adiante, o referido autor, ao discorrer sobre o elemento histórico-evolutivo da interpretação, aduz que “Ao intérprete cumpre fazer uma interpretação atualizadora. Não significa alterar o espírito da lei, mas trazer o pensamento da época para o presente”[23].

Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa[24], a palavra “indiciado” em seu sentido etimológico, significa aquele “que se indiciou, percebido por indícios”, e, em que pese o Código de Processo Penal vigente não ter regulamentado devidamente a forma como o indiciado é identificado, esta percepção faz parte do sentido e da substância do inquérito policial, que é a apuração da existência de um fato e das suas circunstâncias, a qualificação jurídica, o enquadramento típico desse fato e a sua atribuição a um indivíduo imputável, identificado.

O indiciamento, também denominado indiciação, consubstancia esse juízo fático-valorativo, imputando a determinado(s) investigado(s) a prática da infração penal investigada no inquérito policial, por meio da constatação de prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (art. 312, in fine do CPP) determinando, por consequência, a sua individualização de acordo com as formalidades previstas nos arts. 6º, VIII e IX, e art. 23 do CPP, além da formalização inquirição mediante interrogatório (art. 6º, V do CPP)[25].

Portanto, oindiciamento (ou indiciação) é um ato formal pelo qual o presidente do inquérito conclui haver suficientes indícios de autoria e materialidade do crime investigado, imputando à alguém a prática do ilícito penal. Nos casos de inquérito iniciado por prisão em flagrante, o flagrado resta automaticamente indiciado em relação ao crime pelo qual foi formalizada a sua prisão, porém, nos inquéritos em que os invstigados estiverem em liberdade, o indiciamento requer que a autoridade presidente do inquéritoindique fundamentadamente os pressupostos de fato e de direito que embasaram a sua imputação e respectiva tipificação do delito atribuído ao indiciado.

O Código de Processo Penal, em sua redação original, não distinguiu devidamente o investigado do indiciado, apenas mencionando este último em suas diversas passagens[26], bem como originalmente não contemplou qualquer previsão legal para o ato de indiciamento, que essencialmente distinguiria as duas figuras. Assim, a técnica legislativa originalmente utilizada no Código de Processo Penal vigente não diferenciou adequadamente a figura do indiciado e do investigado, fazendo tão somente referência ao primeiro nos dispositivos pertinentes. Tal fato certamente foi decisivo para perpetuar a prática atualmente vigorante de se atribuir o prazo de trinta dias nos inquéritos em que os investigados se encontrem em liberdade, haja indiciados ou não.

Entretanto, com a inclusão do art. 405, §1º pela Lei nº 11.719/2008, ao se dispor, pela primeira vez, a possibilidade de gravação de audiências no inquérito policial, também se inovou ao prever, expressamente, a figura do investigado no plano legal, consagrando a existência deste como um ente distinto do indiciado, ao estatuir que “Sempre que possível, o registro dos depoimentos do investigado, indiciado, ofendido e testemunhas será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinada a obter maior fidelidade das informações”. 

Assim, partindo dos conceitos de investigado, indiciado, ofendido e testemunha, pode-se chegar à definição do primeiro através de um critério de exclusão em relação aos demais atores da investigação criminal, sendo este o indivíduo objeto de apuração que não se enquadraria á condição de testemunha ou vítima dos fatos sob exame, tampouco podendo ser considerado indiciado por não haver constatação de indício suficiente da sua autoria delitiva. Desta forma, conceitua-se o investigado como o suspeito cuja autoria delitiva cogita-se apenas por meio de um juízo de possibilidade, e não de probabilidade[27].

Neste cenário, não seria razoável supor que, enquanto não houver indiciados nos inquéritos instaurados por portaria, igualmente não seria possível se admitir a possibilidade de aplicação de tais limites temporais?

Ora, se não há indiciados, livres ou presos, estando a autoridade policial desenvolvendo as diligências cabíveis à elucidação dos fatos e identificação de autoria, não haveria amparo legal para se proceder pedidos de dilação de prazo, até porque se não há qualquer imputação de fato delituoso a alguém, igualmente não haveria significativa probabilidade de interferência do estado no status libertatis do indivíduo.

Portanto, nada mais razoável do que submeter as investigações criminais ao controle judicial apenas quando já houvesse imputação de um fato materialmente delitivo a alguém, se justificando a partir daí a tutela das garantias individuais do indiciado.

Assim, caberia essencialmente às respectivas corregedorias dos órgãos de Polícia Judiciária exercer em caráter difuso o controle dos prazos dos inquéritos policiais em que não houvesse indiciados, incumbindo-lhes examinar as situações individualmente, bem como determinar as medidas correcionais cabíveis, na eventualidade de desídias na condução do inquérito policial, com delongas injustificáveis à elucidação do fato criminoso. Desta forma, seriam evitadas situações que já ocorrem quando inquéritos são objeto de sucessivas dilações de prazo que às vezes se arrastam por anos, sem que sejam devidamente diligenciados e concluídos, só que sem o gasto público adicional das sucessivas remessas entre um órgão e outro.

As Corregedorias de Polícia, por sua vez, serão objetodo legítimoexercício daatividade controle externo (cuja natureza é eminentemente concentrada) por parte do Ministério Público, que pode ocorrer a qualquer tempo, desde que devidamente fundamentada com fulcro noart. 9º da LC 75/93[28] no âmbito da União, e disposições correlatas no âmbito dos estados.

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Sobre o autor
Aldo Ribeiro Britto

Delegado de Polícia Federal em Salvador (BA).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO, Aldo Ribeiro Britto. Aplicação reinterpretada do art. 10, §3º do Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3576, 16 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24198. Acesso em: 16 abr. 2024.

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