3. A HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL E O PODER CRIATIVO DAS DECISÕES JUDICIAIS
3.1 A SOBERANIA DA CONSTITUIÇÃO E O PAPEL DO INTÉRPRETE NA ESCOLHA ENTRE O PREVISTO E O POSSÍVEL
Como restou evidenciado no capítulo anterior, as constituições assumiram posição soberana, de normas fundamentais e superiores em todo Estado de Direito contemporâneo, no entanto, essa soberania só atinge sua efetividade e realiza seus verdadeiros objetivos, quando o Poder Judiciário, utilizando-se da hermenêutica, consegue transformar as proposições abstratas contidas na Constituição em direitos concretos.
Assim, cabe ao Juiz a tarefa de engajamento no propósito de fazer valer as disposições constitucionais, enquanto normas que são, conforme se depreende das lições de Clèmerson Merlin Clève:
[...] a Constituição, atualmente, é o grande espaço, o grande locus, onde se opera a luta jurídico-política. O processo constituinte é um processo que se desenvolve sem interrupção, inclusive após a promulgação, pelo poder constituinte, de sua obra. A luta, que se travava no seio da Assembléia Constituinte, transfere-se para o campo da prática constitucional (aplicação e interpretação). Afirmar esta ou aquela interpretação de determinado dispositivo constitucional, defender seu potencial de execução imediata ou apontar a necessidade de integração legislativa, constituem comportamentos dotados de claríssimos compromissos ideológicos que não podem sofrer desmentido.
No Brasil contemporâneo, constitui missão do operador jurídico produzir a defesa da Constituição. A Constituição brasileira, tão vilipendiada, criticada e menosprezada, merece consideração. Sim, porque aí, nesse documento mal escrito e contraditório, o jurista encontrará um reservatório impressionante de topoi argumentativos justificadores de renovada ótica jurídica e da defesa dos interesses que cumpre, para o direito alternativo, defender. (CLÈVE, apud Amaral, 2010, p. 4).
Mas o exercício hermenêutico não se revela tão fácil e prático como desejado, na verdade, por todos. Invariavelmente, o Juiz depara-se com sérias dificuldades ao analisar lacunas legislativas. Nessa seara, a Constituição Federal de 1988, expressamente, traz em seu artigo 5º, inciso XXXV, a garantia de que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”, ao passo que, no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro encontra-se insculpido que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Além das lacunas legislativas, o julgador também se vê diante de outras situações de penosa resolução: o choque de direitos. Conflitos oriundos do choque de direitos têm colocado o julgador constantemente diante da árdua tarefa de escolher o melhor caminho para garantir o direito pleiteado, num cenário de fértil proliferação de direitos e, ao mesmo tempo, escassez de recursos. Assim é que, tendo por base algumas decisões do Supremo Tribunal Federal na aplicação de interpretação favorável à proteção de direitos subjetivos inalienáveis, sem considerar as limitações orçamentárias, Gustavo Amaral assim se posicionou:
A linha dos precedentes do Supremo até agora, notadamente os da lavra do Min. Celso de Mello nos parecem, d.m.v., pecar por deixar de reconhecer o princípio do uso racional dos recursos públicos, bem como por tratar da questão como e não houvesse separação entre interpretação e aplicação, bem como sem atentar para as peculiaridades do caso. Não se está a dizer que a decisão no caso foi equivocada, mas, sim, que ao formular uma solução generalista, para a qual a questão a ser respondida é o contraste entre um direito subjetivo inalienável e um interesse financeiro subalterno, a decisão enuncia uma regra de decisão que acaba por tornar simples ou rotineira a decisão de casos até então difíceis. O Supremo Tribunal Federal falhou em separar os dois campos, da interpretação e da aplicação, acabando por enunciar um critério de direito-a-qualquer-custo. (AMARAL, 2010, p. 170-171).
Amparando-se no dever constitucional já apontado acima, através do inciso XXXV do artigo 5º da Carta Maior, além de outros princípios de igual importância, justifica o ministro Celso de Mello, em discurso proferido no Supremo Tribunal Federal, que a prática de ativismo judicial tem se dado naquela Corte moderadamente e com excepcionalidade, em casos de necessidade:
[...] práticas de ativismo judicial, embora moderadamente desempenhadas pela Corte Suprema em momentos excepcionais, tornam-se uma necessidade institucional, quando os órgãos do Poder Público se omitem ou retardam, excessivamente, o cumprimento de obrigações a que estão sujeitos, ainda mais se se tiver presente que o Poder Judiciário, tratando-se de comportamentos estatais ofensivos à Constituição, não pode se reduzir a uma posição de pura passividade. (MELLO, 2012).
Com efeito, cada vez mais Juízes e Tribunais têm demonstrado em suas fundamentações um reconhecimento da lentidão ou omissão do Poder Público em cumprir com suas obrigações, colocando em risco vários direitos fundamentais, ainda que subjetivos, o que, consequentemente, traduzem-se em comportamento ofensivo aos mandamentos constitucionais.
3.2 HÁ NECESSIDADE DE SE IMPOR LIMITES À INTERPRETAÇÃO?
A passagem do Estado Liberal para um Estado de Direito, com a conseqüente adoção de normas cada vez mais abertas, pautadas na principiologia constitucional, pressupõe uma verdadeira transferência de atribuições entre os poderes. Se antes ao Legislativo cumpria a detalhada previsão normativa de regras fechadas e inflexíveis, de modo que era dispensável qualquer atividade hermenêutica do julgador, agora atribui-se a este, o papel de dizer o direito no caso concreto, interpretando as previsões constitucionais abstratas e amoldando-a ao contexto em que a lide encontra-se inserida, o que implica a necessidade de uma atuação intelectiva maior do Poder Judiciário, que considere aspectos valorativos e políticos atinentes a cada caso.
O Judiciário, assim, deixa de ser a mera boca da lei, para assumir a responsabilidade de esclarecer o direito efetivamente, materializando o conteúdo vago dos princípios.
Assim admitindo, não se estaria vulgarmente considerando que o Poder Judiciário goza de discricionariedade na aplicação do direito, nos mesmos moldes da discricionariedade administrativa, limitada aos critérios da conveniência e oportunidade, haja vista o elevado grau de dificuldade com a qual depara-se o julgador constantemente, na avaliação de situações não contempladas expressamente, nem no texto constitucional, nem na legislação infraconstitucional. Nesse sentido, Mauro Cappelletti aponta como de elevada importância a contribuição dada pelos Juízes ao processo de interpretação do direito, quando, ao mesmo tempo, revelam sua capacidade criadora:
Os principais criadores do direito (...) podem ser, e freqüentemente são, os juízes, pois representam a voz final da autoridade. Toda vez que interpretam um contrato, uma relação real (...) ou as garantias do processo e da liberdade, emitem necessariamente no ordenamento jurídico partículas dum sistema de filosofia social; com essas interpretações, de fundamental importância, emprestam direção a toda atividade de criação do direito. As decisões dos tribunais sobre questões econômicas e sociais dependem da sua filosofia econômica e social, motivo pelo qual o progresso pacífico do nosso povo, no curso do século XX, dependerá em larga medida de que os juízes saibam fazer-se portadores duma moderna filosofia econômica e social, antes de que superada filosofia, por si mesma produto de conciliações superadas. (CAPPELLETTI, 1993).
Apesar do reconhecimento da importância atribuída à interpretação realizada pelos Juízes, Cappelletti não defende uma discricionariedade sem limites, como se pode depreender de outra passagem de sua obra, a seguir transcrita:
Quando se afirma, como fizemos, que não existe clara oposição entre interpretação e criação do direito, torna-se contudo necessário fazer uma distinção, como dissemos acima, para evitar sérios equívocos. De fato, o reconhecimento de que é instrínseco em todo ato de interpretação certo grau de criatividade – ou, o que vem a dar no mesmo, de um elemento de discricionariedade e assim de escolha –, não deve ser confundido com a afirmação de total liberdade do intérprete. Discricionariedade não quer dizer necessariamente arbitrariedade, e o juiz, embora inevitavelmente criador do direito, não é necessariamente um criador completamente livre de vínculos. Na verdade, todo sistema jurídico civilizado procurou estabelecer e aplicar certos limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais. (CAPPELLETTI, 1993, pp. 23-24).
Também Lênio Streck indica a necessidade de exigência de fundamentação relacionada ao direito fundamental que cada cidadão tem a uma resposta correta (adequada à Constituição), asseverando:
[...] embora o juiz seja uma pessoa com convicções e história de vida, a limitação ao seu subjetivismo e a sua parcialidade se dá justamente no impedimento de uma fundamentação que extrapole os argumentos jurídicos e na obrigatoriedade de se construir a decisão com a argumentação participada das partes, que, como partes contraditoras, possam discutir a questão do caso concreto, de modo que a decisão racional se garanta em termos de coerência normativa, a partir da definição do argumento mais adequado ao caso. Assim, o objetivo é garantir que um juiz, mesmo com suas convicções, não apresente um juízo axiológico, no sentido de que todos os cidadãos comunguem da mesma concepção de vida, ou que os valores ali expostos na sentença vinculem normativamente todos os demais sujeitos do processo. (STRECK, 2011, pp. 396-397).
E prossegue, referindo-se à produção de súmulas vinculantes como tentativa de antecipar a possibilidade de interpretação de fatos ainda inexistentes:
A hermenêutica não nega que um texto (um enunciado lingüístico) tenha vários significados. Não se nega a vagueza e a ambigüidade da linguagem. Não é essa a discussão. O problema é que as posturas analíticas (onde se insere a dogmática jurídica lato sensu) consideram possível esgotar os significados dos textos in abstracto (por isso, o semantic sense). Por isso, a proliferação dos verbetes e a cultura da estandardização do direito. As súmulas vinculantes são um exemplo privilegiado dessa tentativa semântica de abarcar os sentidos antes da aplicação. (STRECK, 2011, pp. 397-398).
Apoiando-se em proposições gadamerianas, Lênio Streck afirma que a legitimidade das decisões judiciais reside na possibilidade de uma participação política, ou seja, de participação dos atores da vida social, na fiscalização e controle dos sentidos articulados na interpretação praticada pelos julgadores, combatendo o solipsismo, e não como proibição de interpretar, conforme se vê:
[...] a hermenêutica é um poderoso remédio contra teorias que pretendam reivindicar um protagonismo solipsista do judiciário.
Esse fator, entretanto, não pode ser entendido como uma “proibição de interpretar” (sic) ou, tampouco, como uma tentativa de tornar o judiciário um “poder menor” (sic). Na verdade, se trata exatamente o contrário. É justamente porque o judiciário possui um papel estratégico nas democracias constitucionais contemporâneos – concretizando direitos fundamentais, intervindo, portanto, quase sempre na delicada relação entre direito e política – que é necessário pensar elementos hermenêuticos que possam gerar legitimidade para as decisões judiciais, a partir de um efetivo controle do sentido que nelas é articulado. Vale dizer, a hermenêutica possibilita aos participantes da comunidade política, meios para questionar a motivação das decisões de modo a gerar, nessas mesmas motivações, um grau muito mais elevado de legitimidade. (STRECK, 2011, p. 296).
Possivelmente o controle citado por Streck pode ser (como tem sido) praticado através de audiências públicas que precedem julgamentos de relevante interesse social, realizados no STF, demonstrando que a sociedade não só pode fiscalizar, mas também participar do processo hermenêutico, haja vista o objetivo final da realização dessas audiências ser, exatamente, o interesse que aquela Corte tem em antever a manifestação popular sobre o tema posto.
Vê-se, dessa forma, diante da complexidade das decisões buscando a pacificação do conflito de direitos (ou princípios) que, não com o intuito de limitar o poder de interpretação do julgador, mas na conjugação de fatores que tornem viável a transformação do previsto em possível, e buscando a melhor solução para o caso concreto, o intérprete deve, sempre, atuar com cautela na aplicação da hermenêutica constitucional, mas nunca tímido o suficiente, a ponto de comprometer a efetivação do ideal constitucional de buscar-se a devida resposta com vistas à tutela dos interesses de fundamental importância na esfera jurídico-social, tampouco fazendo da hermenêutica, campo para aplicação de discricionariedades subjetivistas, carregadas de vontades, desejos e preferências pessoais.
4 O PERFIL DOS PODERES POLÍTICOS NA CONTEMPORÂNEIDADE E A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO NO CENÁRIO POLÍTICO NACIONAL
4.1 CRÍTICAS AO ATIVISMO JUDICIAL
As críticas mais freqüentemente dirigidas ao ativismo judicial consistem na alegação de violação à separação dos poderes, atentar contra o primado da soberania popular ou, em discussões mais filosóficas e científicas, nos riscos do solipsismo. Porém, como este último já restou discutido e explicado nas lições de Lênio Streck, em tópico próprio sobre a hermenêutica, cabe agora a análise dos dois primeiros argumentos que, por serem menos providos de exercício científico, acabam por ter uma disseminação maior.
No que se refere ao argumento de que o ativismo judicial estaria violando a separação dos poderes, ao analisar a evolução histórica da posição do Poder Judiciário na organização do Estado contemporâneo, aliado ao crescimento do constitucionalismo mundial, não há porque continuar recorrendo a esse discurso, haja vista não se falar mais em separação de poderes nos dias atuais, mas sim, de um poder uno, comprometido – que deveria estar – com a realização das políticas públicas idealizadas na Carta Política Brasileira de 1988, e defensor de uma democracia forte e participativa.
Com extrema clareza e objetividade, o constitucionalista Luís Roberto Barroso demonstra, em suas lições, a importância dispensada ao direito constitucional antes de 1988, e após a promulgação da atual Carta Magna:
[...] ao longo da história brasileira, sobretudo nos períodos ditatoriais, reservou-se ao direito constitucional um papel menor, marginal. Nele buscou-se, não o caminho, mas o desvio; não a verdade, mas o disfarce. A Constituição de 1988, com suas virtudes e imperfeições, teve o mérito de criar um ambiente propício à superação dessas patologias e à difusão de um sentimento constitucional, apto a inspirar uma atitude de acatamento e afeição em relação à Lei Maior. (BARROSO, apud Amaral, 2010, p. 2).
É de se extrair de tal pensamento que, nos tempos atuais não cabe mais falar em “separação dos poderes” com a rigidez como se falava na época do Estado Liberal, onde o poder da força superava o poder do direito, e a população era excluída de qualquer mecanismo de participação das decisões políticas, o que só veio a mudar após a inserção dos direitos fundamentais no texto constitucional e a crescente preocupação com a ampliação e a facilitação do acesso à justiça, o que serve para fortalecer, cada vez mais, a democracia.
Ainda com relação à rígida separação dos poderes que alguns críticos do ativismo judicial insistem em preservar, pronunciou-se o ministro do STF, Cezar Peluso, no relatório do julgamento da ADI 3367:
[...] em coerência com seus pressupostos teóricos e objetivos práticos, MONTESQUIEU jamais defendeu a ideia de uma separação absoluta e rígida entre os órgãos incumbidos de cada uma das funções estatais. Antes, chegou a fazer referência a mecanismos de relacionamento mútuo entre os poderes, a fim, precisamente, de lhes prevenir abusos no exercício. (PELUSO, 2012).
E no mesmo relatório, cita Zaffaroni para justificar que a tradução do pensamento de Montesquieu, ao contrário do que dizem, apontava para uma separação dos poderes de forma, tanto participativa, quanto fiscalizadora e corretiva:
Não há em Montesquieu qualquer expressão que exclua a possibilidade dos controles recíprocos, nem que afirme uma absurda compartimentalização que acabe em algo parecido com ‘três governos’ e, menos ainda, que não reconheça que no exercício de suas funções próprias esses órgãos não devam assumir funções de outra natureza. (ZAFARRONI, apud Peluso, 2012).
A bem da verdade, as críticas acerca de suposta violação a uma separação dos poderes que já nem existe mais, parte, estranhamente, dos Poderes Legislativo e Executivo que, invariavelmente, exercem funções atípicas como se típicas e comuns para eles fossem, a exemplo das medidas provisórias, por parte do Executivo, e os julgamentos de seus pares, realizados pelo Legislativo.
Quanto ao suposto atentado contra o primado da soberania popular, ou seja, (i)legitimidade do Poder Judiciário para decidir questões de larga repercussão política e social, a acusação reside no fato de não serem os ministros das cortes superiores, bem como os magistrados federais e estaduais, eleitos pelo voto direto para ocuparem seus cargos, além de não passarem pela periodicidade de escolha eleitoral. Mais uma vez, Luís Roberto Barroso, com lição irretocável, rebate tais argumentos:
[...] o Judiciário tem características diversas da dos outros Poderes. É que seus membros não são investidos por critérios eletivos nem por processos majoritários. E é bom que seja assim. A maior parte dos países do mundo reserva uma parcela de poder para que seja desempenhado por agentes públicos selecionados, com base no mérito e no conhecimento específico. Idealmente preservado das paixões políticas, ao juiz cabe decidir com imparcialidade, baseado na Constituição e nas leis. Mas o poder de juízes e tribunais, como todo poder em um estado democrático, é representativo. Vale dizer: é exercido em nome do povo e deve contas à sociedade. (BARROSO, apud Almeida, 2011).
Desse ponto de vista parece não ser muito coerente a crítica formulada sobre ilegitimidade dos membros do Poder Judiciário, até mesmo pelo fato de o ingresso no Poder Judiciário estar condicionado a critérios constitucionais, que foram pré-estabelecidos na Constituição pelo legislador constituinte e, assim sendo, gozarem da legitimidade conferida pela soberania popular direta conferida a estes últimos.
Destaca-se, ainda, que as decisões judiciais estão subordinadas ao duplo grau de jurisdição, o que garante às partes a possibilidade de submeter sentenças que não os favoreçam a uma reapreciação por órgão colegiado, e este, sempre composto de Juízes que – além da experiência que deve ser comprovada e notório saber jurídico –, após passarem por escolha concorrida em uma lista, são nomeados pelo Chefe do Poder Executivo, sendo que, nos tribunais superiores, ainda são avaliados pelo Congresso Nacional. Ora, basta um breve raciocínio para compreender que, se os membros do Congresso Nacional e os Chefes do Executivo são eleitos pelo voto direto, e exercem suas funções em favor do povo que os elegeu, estarão eles, então, legitimando os membros do Judiciário, ainda que indiretamente, ao avaliarem e nomearem estes para exercer sua funções de julgadores.
Dessa forma, não há como desprezar a imensa e imprescindível contribuição do Poder Judiciário para o fortalecimento da democracia, ao contrário, deve-se, sim, considerar que este Poder goza de legitimidade popular, o que se corrobora com os argumentos a seguir expostos:
A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas idéias que se acoplaram, mas não se confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia significa soberania popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes. (BARROSO, apud Almeida, 2011).
As tensões aventadas por Barroso surgem – em não raros os momentos – quando a interpretação literal da idéia de maioria tende a ser utilizada para satisfazer interesses de determinados grupos ou instituições, em detrimento de minorias quase sempre sem representação política. Então, do legítimo ideário democrático constitucional, deve ser extraída a proteção dos valores e direitos fundamentais, mesmo que contrariando a vontade circunstancial de quem tem maioria de votos. Nesse sentido, Vicente Paulo de Almeida registra que:
A democracia baseia-se nos princípios do governo da maioria, respeitando os direitos individuais e os direitos das minorias. A democracia sujeita os governos ao Estado de Direito e assegura que todos os cidadãos recebam a mesma proteção legal e que os seus direitos sejam protegidos pelo sistema judiciário. Os governos democráticos exercem a autoridade por meio da lei e estão eles próprios sujeitos aos constrangimentos impostos pela lei. Nas democracias, é o povo quem detém o poder soberano sobre o poder legislativo e o executivo. (ALMEIDA, 2011).
E arremata com Robert Alexy (apud Almeida, 2011), quando apresenta a proposição “Todo poder estatal provém do povo”, concebendo, não só o Legislativo, mas também o Tribunal Constitucional, como legitimado para representar o povo: o Parlamento, politicamente; o Tribunal Constitucional, argumentativamente. No entanto, em razão da característica política proeminente da representação parlamentar, continua com advertência de Alexy:
[...] Com isso, deve ser dito que a representação do povo pelo tribunal constitucional tem um caráter mais idealístico de que aquela pelo parlamento. O cotidiano da exploração parlamentar contém o perigo que maiorias imponham-se desconsideradamente, emoções determinem o ocorrer, dinheiro e relações de poder dominem e simplesmente sejam cometidos erros graves. Um tribunal constitucional que se dirige contra tal não se dirige contra o povo, mas, em nome do povo, contra seus representantes políticos. (ALEXY, apud Almeida, 2011).
Outro ponto a destacar como forma de participação do povo nas decisões judiciais, são as audiências públicas realizadas nas Cortes Superiores, onde representantes dos vários setores da sociedade são chamados a se manifestarem, contribuindo assim, de forma legal, democrática e participativa, com a resolução de conflitos que apresentem relevância para a sociedade.
Destas lições colhe-se que, na construção da democracia, base incontestável do Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário revela-se importante nível de acesso do cidadão às instâncias do poder, possibilitando, numa sociedade plural como as democráticas, que grupos não possuidores de representatividade influam nas decisões políticas de seu país, e tenham seus direitos amparados, ainda que contrariando interesses majoritários, que nem sempre se traduzem em maiores.
4.2 O GRAU DE (IN)EFICIÊNCIA DOS PODERES POLÍTICOS JUSTIFICANDO O ATIVISMO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE TRANSFORMAÇÃO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
A humanidade contemplou neste último século, uma veloz mudança nos governos de diversas nações pelo mundo, culminando com a democratização de vários Estados que viram-se obrigados a se amoldar em um sistema globalizado, exigindo de suas administrações muito mais eficiência do que se demandava no passado. O Brasil, que há até poucos anos era qualificado como país de terceiro mundo, hoje encontra-se no patamar de país emergente, ocupando lugar de destaque e importância no cenário político e econômico mundial.
No entanto, o que se tem visto no cenário político nacional, em matéria de políticas públicas e sociais, é uma atuação débil dos poderes políticos. As liberdades democráticas aliadas à globalização, têm produzido um mercado voraz, com um crescente consumismo, que tem fortalecido cada vez mais os poderosos grupos econômicos e políticos, aumentando ainda mais a desigualdade social, relegando a população de mais baixa renda a uma importância momentânea: a eleitoreira. Crescem e multiplicam-se as carências, na mesma medida em que crescem e multiplicam-se, apenas, as promessas e os discursos. Leis defasadas, incondizentes com o avanço da sociedade e do mercado; falta de efetividade das políticas públicas, relegando a um plano secundário até mesmo direitos fundamentais; escândalos estourando dia após dia no meio político; são apenas alguns dos exemplos que se destaca para ilustrar o quadro político-social que ainda predomina no Brasil.
Tudo isso revela um pacto não cumprido, que acaba por desencadear uma cobrança. Mas, se os Poderes Políticos não cumprem a parte deles no contrato social, então resta quem para socorrer a sociedade?
Não importa a relação – seja ela privada ou pública – as discussões têm sempre acabado no âmbito do Poder Judiciário que, cumprindo com seu dever constitucional de não excluir de sua apreciação “lesão ou ameaça a direito”, tem despertado no meio político, reações negativas, como se a omissão fosse a regra, e não a ação.
Após encaminhar para o Senado o anteprojeto de reforma do Código Penal, o ministro do STJ, Gilson Dipp (DIPP, 2012), que presidiu a comissão de reforma, declarou que: “[...] o ativismo judicial, em especial o exercido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), decorre da falta de discussão de certos temas polêmicos pelo parlamento”. A reação de Dipp decorreu da falta de disposição demonstrada pelos parlamentares para enfrentamento dos debates polêmicos, com o fim de agilizar a votação da proposta de reforma daquela Lei. Para o ministro, o Código Penal pode ser considerado a lei mais importante depois da Constituição, por “delimitar o poder de intervenção do estado no que há de mais sagrado à pessoa – sua liberdade corporal”.
Enquanto falta ânimo aos parlamentares para deliberar sobre discussões polêmicas acerca de temas de altíssima relevância para a sociedade, o mesmo não se pode dizer de sua disposição para propor e discutir temas envolvendo aumento de verba de gabinetes, redução dos dias destinados à votação de propostas (Projeto de Resolução nº 149/2012), entre outros projetos que não favorecem a sociedade brasileira.
E não é apenas no Congresso Nacional que se vê esse comportamento, no âmbito estadual, a blindagem política[1] vem beneficiando chefes do Executivo, com dispositivos das constituições locais que exigem autorização prévia das Assembleias Legislativas, em votação por dois terços, para que o STJ possa examinar denúncias, processar e proceder a julgamentos. Preocupada com a visível blindagem das forças políticas aos governadores nas ações por crime de responsabilidade, a Ordem dos Advogados do Brasil já ingressou com vinte e uma Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADINs) junto ao Supremo Tribunal Federal (STF), com pedido de cautelar, para impugnar a exigência de autorização prévia previstas nas constituições estaduais.
Voltando ao Congresso Nacional, parlamentares propõem Emenda Constitucional (PEC 03/2011), alterando o artigo 49, inciso V, da Constituição Federal, conferindo ao Parlamento o poder de vetar decisões do Judiciário.
Tal proposta tem sido duramente criticada pela maioria dos juristas e doutrinadores, bem como órgãos e instituições de defesa dos interesses da sociedade brasileira, como por exemplo, a OAB Nacional que, em entrevista, seu presidente, Ophir Cavalcante (CAVALCANTE, 2012), criticou duramente a PEC 03/2011. Para Cavalcante, “Esse projeto cria sério conflito entre os poderes. O Judiciário não pode ser objeto de controle do Legislativo. Se for aprovado, haverá desequilíbrio em prejuízo da sociedade [...]”. Na mesma entrevista, outros juristas e magistrados foram ouvidos, tendo o ministro do STJ, Gilson Dipp, afirmado: “Essa PEC é um acinte. Trata-se de uma reação motivada pela própria omissão do Congresso. O Judiciário só se manifesta quando é provocado, não age espontaneamente”.
Uma das características básicas atribuídas doutrinariamente à jurisdição é, exatamente, a inércia. De acordo com esse princípio, materializado nos artigos 2º do Código de Processo Civil e artigo 24 do Código de Processo Penal, o Judiciário só se manifestará a respeito de um caso, mediante provocação, diferente dos demais Poderes da República, que deveriam atuar mediante a existência de aspirações sociais, independente de provocação direta, mas não o fazem.
Em palestra proferida pelo ministro do STF, Ricardo Lewandowski (LEWANDOWSKI, 2012), no 11º Congresso Goiano da Magistratura, realizado em 26/10/2012, o ministro assim se pronunciou: "O grande protagonista social do século 21 é o Poder Judiciário. Na inércia dos dois Poderes -Legislativo e Executivo -, o Judiciário vai lá e resolve".
Ao citar recentes decisões do STF visando, justamente, proteger direitos fundamentais, Lewandowski reforçou um aumento de importância na prática não apenas do Supremo, mas de todo o Judiciário que, segundo ele, ocupa, cada vez mais espaços, antes reservados à atuação dos Poderes Executivo e Legislativo:
É o caso de decisões que garantem internações, acesso a remédios, proteção dos idosos, dos adolescentes, das pessoas com deficiência", enumerou. "Grandes temas que deveriam ser solucionados pelo Congresso acabam chegando ao Judiciário. O homem comum descobriu que tem direitos e descobriu também que ele pode bater à porta do Judiciário. (LEWANDOWSKI, 2012).
E ainda, manifestando sua preocupação com o acúmulo de processos nas mãos do Judiciário, o ministro do STF asseverou: "Justiça que tarda, falha. O que a sociedade espera é uma pronta prestação jurisdicional".
Corroborando as palavras do ministro, a pesquisa Justiça em Números (CNJ, 2012), comprovou a crescente demanda no Judiciário. Segundo os dados colhidos na pesquisa, até final de 2011 existiam a espantosa marca de noventa milhões de processos judiciais pendentes no Brasil. Diante de um quadro desses, ainda se vê o legislativo brasileiro propor que o Judiciário siga seus passos, deixando de cumprir com seu dever constitucional de apreciar e oferecer solução para os conflitos a ele dirigidos.