Resumo: A assistência social ganhou força com a atual Constituição Federal, figurando como um dos pilares da seguridade social. O art. 203, V, da CF/88 trata da concessão de benefício assistencial ao deficiente e idoso que não tenham condições de se manter. A lei n. 8.742/93 prevê que este benefício demanda a comprovação de critério objetivo de renda de ¼ do salário-mínimo por pessoa, o qual tem sido objeto de discussões e debates. Ocorre que atualmente se discute a viabilidade da exclusão do benefício previdenciário de valor mínimo do cálculo da renda per capita familiar para fins de concessão de benefício assistencial a idoso, nos moldes da regra do art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso. Esta interpretação da lei, embora ancorada em jurisprudência dos TRF´s, da TNU e do STJ, deve ser enfrentada, uma vez que, além de não externar a intenção do legislador, implica risco à isonomia, mormente pelas amplas diferenças que permeiam os benefícios previdenciários e assistenciais. Ademais, o julgador acaba agindo como legislador positivo, o que lhe é vedado, sem contar que a tese desconsidera o incremento do salário-mínimo nos últimos anos, premissa incompatível abstratamente com quadro de miséria.
Palavras-chave: benefício assistencial; idoso; salário-mínimo; benefício previdenciário; analogia.
Sumário: Introdução. 1. Da assistência social. 2. Do benefício assistencial à pessoa portadora de necessidades especiais e ao idoso. 2.1. Do critério legal relativo à renda familiar. 2.2. Da regra estampada no Estatuto do Idoso. Conclusão. Referências bibliográficas.
Introdução
A Justiça Federal tem se deparado com um incremento considerável de ações que visam à concessão de benefício assistencial mediante a aplicação analógica da regra estampada no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso, que prevê a desconsideração, para o idoso, da renda equivalente ao salário-mínimo porventura auferida por outro idoso do mesmo núcleo familiar, para efeito de cálculo da renda per capita.
O presente trabalho busca discutir tal critério, erigindo elementos que permitam um exame acurado das premissas que legitimam a jurisprudência atual. Além dos pontos jurídicos imprescindíveis ao deslinde da controvérsia, impende examinar o panorama social atual, mormente ante a evolução do poder aquisitivo que alcançou o salário-mínimo nos últimos anos. Ademais, impõe-se elucubrar acerca das circunstâncias que permeiam o público alvo do benefício em questão, pessoas com escasso poder aquisitivo que demandam acurada atenção do Poder Público através de medidas sociais direcionadas ao fim de mitigar as dificuldades enfrentadas no cotidiano de tal parcela da população.
Intenta-se, igualmente, debater sobre a necessidade de que o Poder Judiciário invada as nuances do caso concreto, examinando cada celeuma trazida no bojo do processo com a individualidade necessária aos ditames da justiça. Tal cenário, de conseguinte, leva a questionar-se, ao fim, os efeitos gerados pela criação jurisprudencial de uma nova “regra”, focada na analogia, que tenha efetiva influência na análise do caso concreto.
Portanto, dentro do panorama externado, busca-se, em suma, deliberar sobre as raízes do entendimento jurisprudencial exposto, analisando detidamente os fundamentos que legitimam ou não a indigitada tese jurisprudencial, bem como os efeitos dela advindos.
1. Da assistência social
A Constituição Federal de 1988, no intuito de albergar um ideal de Estado cada vez mais social e fraterno, trouxe uma série de garantias e direitos que até então não tinham respaldo constitucional tão abrangente e específico. Entre eles, encontra-se a ASSISTÊNCIA SOCIAL, na qualidade de um dos pilares da seguridade social, conceito, aliás, novo dentro do ordenamento pátrio[1]. A assistência social passou, portanto, a ser um dos sistemas de proteção, escorado na idéia da dignidade da pessoa humana, com o intuito de auxiliar no alcance dos objetivos fundamentais explicitados no art. 3º da Constituição Federal, protegendo aqueles que se situam em posição de vulnerabilidade econômica.
A importância do tema previsto na atual Carta Constitucional ganha dinamismo, inclusive, porque é uma inovação a análise detalhada da matéria pelo Poder Constituinte, havendo capítulo específico para o assunto. Aponte-se, a título ilustrativo, que a Constituição de 1967, por exemplo, limitava-se a prever em seu título IV (Da Família, da Educação e da Cultura), art. 167, parágrafo 4º, que “a lei instituirá a assistência à maternidade, à infância e à adolescência”. A Emenda Constitucional n. 01/69 acrescentou a proteção aos excepcionais (art. 175). Antes disso, a Constituição Federal de 1946, pioneira no tema, na esteira das transformações sociais e econômicas mundiais da época e, ainda, na busca de modificações pós Estado Novo, mormente à vista da maior atenção aos direitos humanos, estabelecera em seu art. 164 que “é obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa”.
No entanto, todas as normas constitucionais fixavam não mais que preceitos genéricos, sem especificação de precisa atuação do Poder Público na área assistencial. Dizer-se que é obrigatória a assistência sem parâmetros adequados implicava evidente descumprimento dos anseios da população necessitada.
A situação alterou-se, como dito, com a novel carta constitucional. Com efeito, a seguridade social teve particular atenção do legislador constituinte que separou capítulo específico, dentro do Título referente à Ordem Social, para tratar do tema, dando especial ênfase à questão da assistência social, devidamente delimitada nos art. 203-204 da Carta Magna. Cumpre lembrar que o Estado Social resplandece índole intervencionista, que demanda a presença ativa do Poder Público nas esferas sociais, envidando esforços no sentido de atender aos direitos consagrados aos cidadãos, sobretudo pela impossibilidade de certa parcela da população de dar guarida às suas necessidades existenciais mínimas. Daí emerge a singular importância dos Direitos Sociais, conhecidos como de segunda geração, que exigem atuação positiva do Estado e refletem o anseio da população de alcançar mais do que os direitos individuais ofertados, figurando também como instrumento a fim de propiciar condições materiais que viabilizem o manejo dos direitos de primeira geração.
Pois bem. De início, é preciso pontuar que qualquer análise que envolva assistência social demanda sensibilidade e acurados cuidados no seu manejo. Isso porque, como pontua José Antônio da Silva[2], está-se diante do exame de premissas envolvendo “os desvalidos em geral”, ou seja, aqueles que mais necessitam de interferência e ajuda do Poder Público, costumeiramente situados à margem da sociedade. Diante disso, suas necessidades devem ser ponderadas e analisadas diante do contexto de hipossuficiência, sem, todavia, implicar uma apreciação emocional da controvérsia, afastando-se a racionalidade exigida.
Embora seja intrincada qualquer tarefa de hierarquizar os direitos sociais, haja vista a importância e abrangência de todos aqueles proporcionados aos cidadãos (trabalho, saúde, etc.), talvez a assistência social reflita com maior escala e comprometimento os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 3. da CF/88). O alcance de uma sociedade justa e solidária, focada na erradicação da pobreza e da marginalização e na redução das desigualdades sociais e regionais pressupõe uma especial atenção àqueles que demandam cuidados peculiares, mormente por não lograrem auferir renda que proporcionem a dignidade ínsita a todo o ser humano (um dos fundamentos da República). Não há parcela da sociedade que necessite mais dos direitos sociais viabilizados pelo Estado do que aquela composta pelos que vivem em condições de extrema vulnerabilidade. Não há, em verdade, papel mais alentador ao Estado do que aquele de guarnecer as pessoas que não possuem condições mínimas de vida. Não há, enfim, seara mais oportuna para deliberar sobre o princípio da dignidade da pessoa humana do que quando se cuida da assistência social, notadamente por figurar, em apertada síntese, o referido princípio como o “supremo critério axiológico a orientar a vida de cada um de nós”[3]. Os riscos nas mais variadas órbitas ínsitos ao estado de miséria são bem pontuados por John Rawls na sua extensa obra que busca erigir uma teoria que resplandeça com coerência o ideal de justiça (impugnando a tese utilitarista), referindo o autor que “a incapacidade de beneficiar-se dos próprios direitos e das próprias oportunidades em conseqüência de pobreza e falta de recursos em geral às vezes se incluem entre as restrições que são definidoras da liberdade”[4].
Ocorre que é sob este prisma que a assistência social deve ser examinada, sobretudo quando se analisa os critérios de concessão do benefício de prestação continuada, uma vez que sua finalidade não tem relação direta com o ideal de distribuição de renda, mas sim com a mitigação da miséria. Busca-se, portanto, amparar aqueles que efetivamente demonstrem necessidade de auxílio do Poder Público, não sendo objetivo da assistência social o incremento da renda daqueles que não se enquadram nos critérios estabelecidos.
2. Do benefício assistencial à pessoa portadora de necessidades especiais e ao idoso
2.1. Do critério legal relativo à renda familiar
Da leitura dos dispositivos constitucionais antes citados, colige-se que o primeiro ponto a nortear a assistência social é a desnecessidade de qualquer contribuição a fim de que o cidadão faça jus à proteção social. Demais disso, o campo de abrangência da proteção direciona-se prioritariamente à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice (inciso I), sendo imperioso o amparo às crianças e adolescentes carentes (inciso II), bem como a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária (inciso IV). De qualquer sorte, o ponto nevrálgico do sistema de proteção assistencial, que gera o maior número de questionamentos e é objeto deste estudo, centra-se na disposição constitucional no sentido de que é garantido “um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei” (inciso V).
Esta previsão constitucional citada tem papel importante de garantir o mínimo existencial ao idoso ou à pessoa portadora de necessidades especiais que não possua condições de se manter por meios próprios ou de sua família. Nota-se, aliás, o papel preponderante atribuído à família como primeira base de proteção dos necessitados. Somente a ausência de proteção familiar adequada levaria à imersão do Poder Público no caso concreto. Tal previsão reflete a própria posição do art. 226 da CF/88 que coloca a família como “base da sociedade” e o apontado, ainda, no art. 227[5].
Foi, portanto, a lei n. 8.742/93 que veio, na seara infraconstitucional, regular o tema. Posteriormente, a lei n. 12.435/11, baseada no Decreto nº 6.949/09, que promulgou a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, internalizada no país como emenda constitucional, alterou algumas previsões. No entanto, um dos pontos da controvérsia ora deduzida – baliza para ulterior exame do efetivo objeto de estudo – centra-se na previsão consubstanciada no art. 20, parágrafo 3º, que explicita o seguinte:
§ 3º Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo.
Tal dispositivo legal já foi objeto de uma gama de controvérsias, descabendo maiores digressões no presente trabalho. É digno de nota, entretanto, quanto ao requisito em exame que, embora aponte um viés objetivo, não se pode olvidar que o STJ, no julgamento do Resp n. 1.112.557/MG, de relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, sob o pálio dos recursos repetitivos (art. 543-C do CPC), firmou entendimento no sentido de que, a despeito da limitação legal de 1/4 do salário-mínimo imposto para a concessão de benefício assistencial, sua interpretação deve ser ultrapassada para incluir os segurados que comprovarem, por outros meios, a condição de hipossuficiência[6]. Esta interpretação também encontra assento perante a Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais, cuja súmula n. 11 apresenta o seguinte enunciado: “a renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20, § 3º da Lei nº. 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”. O próprio STF guarda precedentes que acompanham em certo ponto tal tese (Rcl 4374 MC, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, julgado em 01/02/2007, publicado em DJ 06/02/2007 PP-00111; Rcl n° 4.422/RS, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 30.6.2006; Rcl n° 4.133/RS, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 30.6.2006; Rcl n° 4.366/PE, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 1.6.2006).
Embora atualmente o critério de renda tenha sido ratificado pela Lei n. 12.435/11, em período pretérito muito se discutiu inclusive sobre a fixação da renda em ½ salário-mínimo per capita, e não ¼. Tal entendimento partia da cognição de que leis posteriores fixavam critérios “mais fiéis” à condição de miserabilidade, fixando parâmetros em patamares mais elevados de renda. Com efeito, a lei n. 9.533/97, por exemplo, que autorizava “o Poder Executivo a conceder apoio financeiro aos Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas”, previa no art. 5º, I que os recursos federais seriam direcionados a famílias cuja renda per capita familiar não fosse inferior a meio salário-mínimo. Tal critério foi repetido também no art. 2, parágrafo 2º da Lei nº 10.689/03, que tratou sobre o Programa Nacional de Acesso à Alimentação e, ainda, entre outros, o Decreto nº 4.102/02, que instituiu o programa auxílio-gás fixando a renda familiar per capita do beneficiário em meio salário mínimo.
Tais regramentos levaram a Turma Regional de Uniformização de Jurisprudência da 4ª Região a sumular (nº 06) o ponto[7], fixando o novel parâmetro para fins de julgamento, sob argumento de derrogação da norma originária prevista no art. 20, parágrafo 3º da lei n. 8.742/93. A TNU, em momento pretérito, chegou a acolher tal parâmetro (PEDILEF 200360840024587), embora, como já ressaltado alhures, o critério tenha perdido sentido atualmente pela ratificação legal.
Em verdade, o critério legal, cuja constitucionalidade foi declarada pelo STF na ADIn nº 1232-DF[8], é a forma mais equânime e isonômica de avaliar o preenchimento ou não do requisito, muito embora o seu não cumprimento possa ser elidido em situações excepcionais, cuja peculiaridade transcenda o usualmente inferido nas hipóteses concretas.
Atualmente, a jurisprudência tem acolhido a possibilidade de que outros critérios sejam utilizados para aferição do requisito, posição que reflete bem a gama de situações que podem colocar uma família em condições de vulnerabilidade social. É bem verdade que tal tese abre brecha para o subjetivismo, mitigando a segurança jurídica exigida, sobretudo para este tipo de matéria, uma vez que, repise-se, o fato de possuir ou não o cidadão condições de prover sua própria manutenção admite uma variada gama de conclusões. De qualquer sorte, ainda que se tenha este critério como excepcional, é medida coerente com o direito social em jogo e com a ideia de que o magistrado exara sua conclusão por meio de seu livre convencimento motivado, não se limitando o exame do caso concreto a um cálculo aritmético simples. As nuances e características da situação vivenciada pelo cidadão devem servir como elementos para a conclusão judicial[9], sendo cristalino que a norma legal não logra dar conta da realidade em sua integralidade. Não é razoável, em verdade, que direito tão eminente seja equacionado com simples objetividade e impessoalidade. O Poder Judiciário, enfim, não pode permanecer passivo quando confrontado com eminente situação de flagelo.
Portanto, o primeiro ponto a ser destacado é que o critério legal pode sim ser relevado ou mitigado, excepcionalmente, quando outros indicativos do caso concreto espelhem a necessidade de proteção assistencial. Todavia, não é este o cerne do debate ora promovido.
2.2. Da regra estampada no Estatuto do Idoso
A questão central escora-se na interpretação a ser dada ao dispositivo contido no art. 34 do Estatuto do Idoso, que prevê o seguinte:
Art. 34. Aos idosos, a partir de 65 (sessenta e cinco) anos, que não possuam meios para prover sua subsistência, nem de tê-la provida por sua família, é assegurado o benefício mensal de 1 (um) salário-mínimo, nos termos da Lei Orgânica da Assistência Social – Loas.
Parágrafo único. O benefício já concedido a qualquer membro da família nos termos do caput não será computado para os fins do cálculo da renda familiar per capita a que se refere a Loas.
Atendendo à previsão do art. 203, V da CF/88, que preconiza que o benefício assistencial será concedido “conforme dispuser a lei”, o legislador, atentando-se para o caráter personalíssimo do benefício assistencial, passou a prever que se um idoso recebe o benefício em questão, tal concessão não pode ser obstáculo para o deferimento a outro idoso integrante do mesmo núcleo familiar.
A partir disso, emergiu uma enxurrada de ações judiciais que, em resumo, buscavam aplicar analogicamente o dispositivo para as famílias em que um dos integrantes idosos aufere benefício previdenciário. Após um início titubeante, a jurisprudência tem se guiado por acolher a tese ventilada pelos cidadãos. Com efeito, a Turma Nacional de Uniformização da Jurisprudência (PEDILEF nº 2004.70.95.002805-4/PR, Rel. Juiz Fed. Renato Toniasso, DJ 19.12.2006; PEDILEF nº 2005.43.00.902053-5/TO, Rel. Juiz Fed. Maria Divina Vitória, DJ 26.09.2007; PEDILEF nº 2005.43.00.904018-4/TO, Rel. Juiz Fed. Alexandre Miguel, DJ 02.10.2007; PEDILEF nº 2007.83.00.501082-8/PE, Rel. Juiz Fed. Sebastião Ogê Muniz, DJ 28.01.2009; PEDILEF nº 2007.83.03.504325-3/PE, Rel. Juíza Fed. Jacqueline Michels Bilhalva, DJ 16.03.2009; PEDILEF nº 2007.72.64.000792-3/SC, Rel. Juíza Fed. Rosana Noya A. W. Kaufmann, DJ 09.12.2009; PEDILEF nº 2007.83.02.509253-0/PE, Rel. Juiz Fed. Derivaldo de F. B. Filho, DJ 05.03.2010, entre outros) vem acolhendo o anseio em testilha há algum tempo. Aliás, a interpretação atual é tão extensiva, que o benefício vem sendo concedido mesmo que não se trate de benefício assistencial a ser auferido por idoso em valor mínimo, e sim deficiente (PEDILEF nº 2008.70.95.003443-6/PR, Rel. Juiz Fed. Otávio Henrique Martins Port, DJ 13.11.2009; PEDILEF nº 2007.70.95.014715-9/PR, Rel. Juiz Fed. Otávio Henrique Martins Port, DJ 13.10.2009; PEDILEF nº 2007.70.53.001023-6/PR, Rel. Cláudio Roberto Canata, DJ 13.11.2009; PEDILEF nº 2008.70.95.002492-3/PR, Rel. Juíza Fed. Jacqueline M. Bilhalva, DJ 11.06.2010). Por sinal, mesmo em caso de total ausência de idosos no núcleo familiar, vem sendo acolhida a tese aplicada por analogia (PEDILEF nº 2007.83.00.502381-1/PE, Rel. Juíza Fed. Jacqueline Michels Bilhalva, DJ 19.08.2009). Tal posição levou a Turma Recursal de Santa Catarina a sumular a matéria, emitindo enunciado cujo teor é o seguinte: “o benefício previdenciário de valor mínimo percebido por idoso é excluído da composição da renda familiar, apurada para o fim de concessão de benefício assistencial” (SUM Nº 20, Turmas Recursais Reunidas de SC, julgado em 14/08/2008).
Os Tribunais Regionais Federal pactuam também do mesmo entendimento em apreço, conforme se colige dos precedentes que seguem: TRF1 - AC 0004635-22.2006.4.01.3501/GO, Rel. Desembargador Federal Francisco De Assis Betti, Conv. Juiz Federal Renato Martins Prates (conv.), Segunda Turma, e-DJF1 p.39 de 24/02/2012; TRF2 - APELREEX 480416/RJ - Desembargador Federal MESSOD AZULAY NETO Órgão Julgador: SEGUNDA TURMA ESPECIALIZADA, Data Decisão: 23/08/2010; TRF3, OITAVA TURMA, AC 0002466-11.2011.4.03.6127, Rel. JUIZA CONVOCADA RAQUEL PERRINI, julgado em 26/11/2012, e-DJF3 Judicial 1 DATA: 07/12/2012; TRF4, EINF 5002614-08.2010.404.7108, Terceira Seção, Relatora p/ Acórdão Vivian Josete Pantaleão Caminha, D.E. 12/02/2013); TRF5, APELREEX13151/CE, RELATOR: DESEMBARGADOR FEDERAL EMILIANO ZAPATA LEITÃO (CONVOCADO), Terceira Turma, JULGAMENTO: 04/11/2010, PUBLICAÇÃO: DJE 12/11/2010 - Página 200. Conquanto as posições destoem minimamente na fundamentação exarada, o ponto marcante da tese sustentada nos Tribunais Regionais é que não haveria razão plausível a admitir o afastamento da renda de origem assistencial, e não aquela de origem previdenciária.
No STJ houve uma recente mudança de posição. Originalmente, havia precedentes diversos que afastavam a possibilidade de aplicação analógica do dispositivo do Estatuto do Idoso, sob argumento da necessidade de uma interpretação restritiva da regra (AgRg no REsp 868.590/SP, Relator o Ministro Felix Fischer)[10]. Aliás, é o que estatui a seguinte ementa:
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL. ASSISTÊNCIA SOCIAL. BENEFÍCIO DE PRESTAÇÃO CONTINUADA. REQUISITOS LEGAIS. ART. 20, § 3º, DA LEI Nº 8.742/93. REEXAME DO CONJUNTO PROBATÓRIO. SÚMULA Nº 7 DO STJ. ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, DO ESTATUTO DO IDOSO. NÃO INCIDÊNCIA. ANÁLISE DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. IMPOSSIBILIDADE EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL.
I - Se o v. acórdão hostilizado, com base no material cognitivo constante dos autos, consignou que a autora não faz jus ao benefício assistencial pleiteado, rever tal decisão implicaria reexame de prova, o que não é possível na instância incomum (Súmula 7-STJ).
II - O cônjuge da autora não recebe benefício da assistência social, não se aplicando o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso.
III - Não cabe o exame de matéria constitucional em sede de recurso especial, conquanto se admite apenas a apreciação de questões referentes à interpretação de normas infraconstitucionais.
Agravo regimental desprovido. (AgRg no Resp 868.590/SP, Rel. Min. FELIX FISCHER, Quinta Turma, DJ 5/2/2007).
Ocorre que, com espeque no art. 14, parágrafo 4º da Lei nº 10.259/01, que prevê que “quando a orientação acolhida pela Turma de Uniformização, em questões de direito material, contrariar súmula ou jurisprudência dominante no Superior Tribunal de Justiça-STJ, a parte interessada poderá provocar a manifestação deste, que dirimirá a divergência”, o tema foi novamente levado ao STJ no PET nº 7.203/PE, tendo a ementa apresentado o seguinte teor:
INCIDENTE DE UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. RENDA MENSAL PER CAPITA FAMILIAR. EXCLUSÃO DE BENEFÍCIO DE VALOR MÍNIMO PERCEBIDO POR MAIOR DE 65 ANOS. ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, LEI Nº 10.741/2003. APLICAÇÃO ANALÓGICA.
1. A finalidade da Lei nº 10.741/2003 (Estatuto do Idoso), ao excluir da renda do núcleo familiar o valor do benefício assistencial percebido pelo idoso, foi protegê-lo, destinando essa verba exclusivamente à sua subsistência.
2. Nessa linha de raciocínio, também o benefício previdenciário no valor de um salário mínimo recebido por maior de 65 anos deve ser afastado para fins de apuração da renda mensal per capita objetivando a concessão de benefício de prestação continuada.
3. O entendimento de que somente o benefício assistencial não é considerado no cômputo da renda mensal per capita desprestigia o segurado que contribuiu para a Previdência Social e, por isso, faz jus a uma aposentadoria de valor mínimo, na medida em que este tem de compartilhar esse valor com seu grupo familiar.
4. Em respeito aos princípios da igualdade e da razoabilidade, deve ser excluído do cálculo da renda familiar per capita qualquer benefício de valor mínimo recebido por maior de 65 anos, independentemente se assistencial ou previdenciário, aplicando-se, analogicamente, o disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso.
5. Incidente de uniformização a que se nega provimento.
(Pet 7203/PE, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 10/08/2011, DJe 11/10/2011)
Tal posição foi recentemente ratificada por aquela Corte:
PROCESSUAL CIVIL E PREVIDENCIÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL BENEFÍCIO ASSISTENCIAL. RECURSO ESPECIAL REPETITIVO 1.112.557/MG. POSSIBILIDADE DE DEMONSTRAÇÃO DA CONDIÇÃO DE MISERABILIDADE DO BENEFICIÁRIO POR OUTROS MEIOS DE PROVA, QUANDO A RENDA PER CAPITA DO NÚCLEO FAMILIAR FOR SUPERIOR A 1/4 DO SALÁRIO MÍNIMO. EXCLUSÃO DE BENEFÍCIO DE VALOR MÍNIMO PERCEBIDO POR MAIOR DE 65 ANOS. ART. 34, PARÁGRAFO ÚNICO, LEI Nº 10.741/2003. APLICAÇÃO POR ANALOGIA. JURISPRUDÊNCIA FIRMADA. PET 7.203/PE. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.
1. Conforme entendimento firmado no julgamento do REsp n.º 1.112.557/MG, de Relatoria do Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, o critério previsto no artigo 20, § 3.º, da Lei n. 8.742/1993, deve ser interpretado como limite mínimo, não sendo suficiente, desse modo, por si só, para impedir a concessão do benefício assistencial. Permite-se a concessão do benefício aos requerentes que comprovem, a despeito da renda, outros meios caracterizados da condição de hipossuficiência.
2. O benefício previdenciário de valor mínimo, recebido por pessoa acima de 65 anos, não deve ser considerado na composição na renda familiar, conforme preconiza o art. 34, parágrafo único, da Lei 10.741/2003 (Estatuto do Idoso). Precedente: Pet n. 7.203/PE, Relatora Ministra Maria Thereza de Assis Moura.
3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AgRg no REsp 1351525/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/12/2012, DJe 12/12/2012)
Houve, portanto, nítida revisão da matéria por aquela corte. Todavia, a questão passa pela necessidade de um exame mais acurado acerca de todos os reflexos que são inerentes a tal decisão, até porque, no momento em que o Poder Judiciário “cria” uma regra (ainda que travestida numa ideia de analogia), ou seja, praticamente dirige uma política pública, não se pode olvidar de todos os efeitos gerados a partir da interpretação emprestada.
O primeiro ponto que induz à inaplicabilidade do disposto no art. 34, parágrafo único, do Estatuto do Idoso (Lei nº 10.741/2003), passa pelo exame da literalidade da lei, premissa que seria suficiente para equacionar a controvérsia. Com efeito, a leitura do dispositivo não deixa margem para a interpretação de que o benefício previdenciário também deveria ser desconsiderado.
O segundo ponto exige que se avaliem os motivos de tal premissa legal. No caso, sua finalidade é nitidamente evitar que uma determinada família em condição de miserabilidade não tenha obstada a percepção do benefício assistencial em virtude de outra pessoa já fazer jus à prestação, mormente à vista do caráter personalíssimo da prestação. Portanto, é uma regra que tem o condão único de incluir na assistência social pessoas maiores de 65 anos, pouco importando que haja cônjuge, descendente ou ascendente que também aufira a prestação. Ora, a finalidade do benefício assistencial, diferentemente do benefício previdenciário que tem um viés de proteção não só ao segurado, mas também ao núcleo familiar, tanto que prevê prestações como pensão e auxílio-reclusão, é subsidiar um mínimo existencial especificamente a determinada pessoa que viva em extrema vulnerabilidade social e econômica, sendo lógico e crível que esta renda não interfira no cálculo de um terceiro, o que nitidamente difere da seara previdenciária[11].
Quando se trata de benefício previdenciário auferido por integrante do núcleo familiar, os pressupostos são outros. Para se fazer jus a um benefício previdenciário, a pessoa não precisa nem ser portadora de necessidades especiais, nem ter menos de 65 anos de idade, bastando preencher um dos requisitos legais, de modo que não há uma presunção, como há no recebimento de benefício assistencial, de que o integrante da família que recebe um salário-mínimo não tem condições de laborar. O segurado do RGPS, por ter se inserido formalmente no mercado de trabalho, teve maiores oportunidades de dar condição de vida digna à sua família, que muitas vezes se reflete não só na renda auferida, mas em patrimônio[12] constituído, ao contrário daquele que está à margem do sistema de previdência social e depende, fundamentalmente, da assistência social para sobreviver. Mais que isso, o benefício previdenciário é reflexo do nível econômico do trabalhador, visto que intimamente ligado ao valor auferido quando do labor, enquanto o benefício assistencial não passa de valor padrão para todos os beneficiários.
Quando um casal de idosos, por exemplo, chega aos 65 anos de idade sem respaldo da Previdência Social ou da família, presume-se estar diante de situação desoladora, que deve ser abolida do quadro atual da sociedade. Presume-se a ausência de patrimônio, de oportunidades, de educação, ou seja, uma situação calamitosa de mínimo resquício de amparo, em que cada um dos sujeitos deve ser avaliado em sua individualidade. O próprio capítulo VIII[13] (Assistência Social) do Estatuto do Idoso induz a crer que estas condições sugerem a permanência do idoso em entidade protetiva (senilidade, acrescida de ausência de amparo familiar e de renda), o que ganha ainda mais força a necessidade de cômputo individual de renda do casal. Em contrapartida, estas mesmas premissas não se assentam na hipótese de casal pobre amparado pela Previdência Social. Uma família de baixa renda em que um dos cônjuges teve condições de suprir as necessidades familiares ao longo de toda a vida não indica, por si só, uma situação calamitosa como a antes referida.
A não inclusão da renda do idoso advinda de benefício assistencial emerge também da cognição de que este já tenha demonstrado a existência de situação de miserabilidade. Já o idoso que percebe benefício previdenciário em valor mínimo pode ou não se encontrar em situação de miserabilidade, pois esta não é uma das condições para a concessão de benefícios de caráter previdenciário. O caráter teleológico do benefício assistencial é albergar aquelas pessoas miseráveis que não encontram guarida no sistema previdenciário. Em casos de percepção de benefício previdenciário, o núcleo familiar encontra amparo, não tendo sentido afastar tal abrigo para absorver a pessoa no campo assistencial.
Ademais, o valor do salário-mínimo de dez anos atrás não apresenta o mesmo poder aquisitivo que o atual. É sabido que nos últimos anos o salário-mínimo teve um incremento substancial, de modo que o benefício previdenciário de valor mínimo atual, abstratamente, não confere ao segurado a condição de miserável, sendo incongruente aplicar-se uma regra padrão – como se lei fosse – para todos os casos, quando indicativos sociais dão conta da mais variada gama de situações relativas àqueles grupos familiares em que um dos integrantes aufere um salário-mínimo.
Em verdade, o salário-mínimo, notadamente após a forte evolução que teve nos últimos anos, não pode ser afastado (salvo se a lei expressamente aventar neste sentido) do cálculo da renda mensal. Ou melhor, não há qualquer motivo plausível que autorize sua desconsideração. É bom lembrar que em julho de 1994, o salário-mínimo, pela primeira vez fixado de acordo com a moeda corrente, equivalia a R$ 64,79, de modo que ¼ (critério legal para renda per capita) perfazia R$ 16,20. Em resumo, naquele momento, pouco tempo após o advento da lei de assistência social que, de forma constitucional (entendimento do STF), fixou balizas objetivas para que o cidadão fizesse jus ao benefício assistencial, deveria comprovar que cada integrante de seu núcleo familiar recebia, no máximo, R$ 16,20 por mês. Neste sentido, a fim de visualizar o efetivo incremento do salário-mínimo nos últimos anos e a sua importância no contexto da renda familiar – a inadmitir afastamento de qualquer espécie –, constata-se que a atualização do salário-mínimo no período de julho de 1994 (R$ 64,79) até janeiro de 2013, utilizando, na ocasião, os índices IPC-R (07/94 a 06/96), INPC (07/95-04/96), IGP-DI (05/96-12/03) e INPC (01/04 em diante), os quais são regularmente empregados nos cálculos previdenciários de atualização, implica que o montante alcance, em janeiro de 2013, valor de R$ 363,94[14], quando é sabido que o salário-mínimo, em virtude do Decreto nº 7.872/12, alcança na mesma competência o equivalente a R$ 678,00. O avanço é evidente, mormente quando se compara o fato de que ¼ do salário-mínimo em 07/1994, devidamente atualizado até os dias atuais, seria R$ 90,98 (363,94/4), quando ¼ do salário mínimo atual é R$ 169,50. Pode-se, aliás, concluir que o salário-mínimo subiu próximo ao dobro da atualização do período, razão pela qual, em linhas transversas, o critério legal alcançou renda per capita de quase ½ salário-mínimo atualizado desde o início do Plano Real. Nota-se, pois, que o poder aquisitivo do salário-mínimo de outrora quase duplicou, situação que não pode ser olvidada no exame de casos como o ora debatido, em especial quando se busca manobra analógica não prevista em lei.
Conquanto, como já dito, não seja objeto de exame no presente trabalho, o próprio critério legal de ¼ do salário-mínimo externa parâmetro superior ao que usualmente é utilizado pelo Banco Mundial para fixar a linha da pobreza. Apesar da efetiva análise da condição socioeconômica de qualquer pessoa deva passar por exame minucioso de diversos parâmetros, através de análise multifatorial, tais como vulnerabilidade[15] (atenção especial a crianças, idosos, deficientes), acesso ao conhecimento (analfabetismo, qualificação laboral), possibilidade de ingresso no mercado de trabalho, escassez de recursos, entre outros, o que impede, muitas vezes, uma estatística mundial adequada e confiável sobre níveis de miséria, tem-se como premissa balizadora – sujeita a críticas, em especial por legar à questão monetária (desvalorização da moeda) papel importante – a percepção de U$ 1,25 por dia (algo próximo a R$ 75,00 por mês por pessoa), critério, como visto, bem inferior ao adotado pelo legislador. Por sinal, é mais de duas vezes inferior ao parâmetro legal nos dias de hoje.
Acrescente-se que, apesar da doutrina e jurisprudência moderna, em medida correta e concordante com os princípios salutares que permeiam a Constituição Federal, venham aventando a plena possibilidade de exame pelo Poder Judiciário do atendimento dos direitos sociais elencados na Carta Magna, devendo ser, mesmo que com base unicamente principiológica, erigidos a um plano superior o atendimento das medidas que norteiam a dignidade humana, não se pode olvidar nunca a intenção legislativa quando cria determinada norma, sobretudo na qualidade de poder autônomo incumbido de papel fundamental no Estado Democrático de Direito. Neste panorama, caso a intenção do legislador fosse excluir do cálculo do critério econômico para fins de concessão de benefícios assistenciais todo e qualquer benefício de valor mínimo, teria alterado neste sentido de maneira expressa a Lei 8.742/93. Atitude diversa induz à cognição de que a exclusão não alberga os benefícios previdenciários.
Ademais, analogia aplica-se apenas em casos de omissão legal, conforme art. 4º da LICC. Paulo Nader estatui com precisão que “a aplicação da analogia legal decorre necessariamente da existência de lacunas na lei”[16], o que nitidamente não é o caso.
Por coerência ao debate e a fim de entender os pressupostos que norteiam o acolhimento dos pedidos judiciais, impende examinar o que preconizou a Ministra Maria Thereza de Assis Moura em seu voto como relatora do PET n. 7203/PE (STJ):
Eis a controvérsia: saber se o benefício previdenciário no valor de um salário mínimo, percebido por membro do grupo familiar, deve ser excluído ou não do cálculo da renda mensal per capita familiar, para fins de concessão de benefício assistencial, uma vez que o parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso se refere apenas ao benefício de prestação continuada.
A meu ver, a finalidade da legislação, ao excluir da renda do núcleo familiar o valor do benefício assistencial percebido pelo idoso, foi protegê-lo, destinando essa verba exclusivamente à sua subsistência.
Nessa linha de raciocínio, também o benefício previdenciário no valor de um salário mínimo recebido por maior de 65 anos deve ser afastado para fins de apuração da renda mensal per capita objetivando a concessão de benefício de prestação continuada.
Entendimento contrário, vale dizer, no sentido de que somente o benefício assistencial não é considerado no cômputo da renda mensal per capita, na esteira dos precedentes desta Corte colacionados pelo INSS, desprestigiaria o segurado que contribuiu para a Previdência Social e, por isso, faz jus a uma aposentadoria de valor mínimo, na medida em que este tem de compartilhar esse valor com seu grupo familiar.
Assim, revendo meu posicionamento, entendo que, em respeito aos princípios da igualdade e da razoabilidade, deve ser excluído do cálculo da renda familiar per capita qualquer benefício de valor mínimo recebido por maior de 65 anos, independentemente se assistencial ou previdenciário, aplicando-se, analogicamente, o disposto no parágrafo único do art. 34 do Estatuto do Idoso.
Basicamente, portanto, o fundamento da aplicação analógica origina-se do fato de que se busca não prejudicar o segurado que contribuiu a vida inteira e foi aposentado (isonomia). Nos dizeres da ministra, o fato de ter que compartilhar sua renda com a família implicaria desarrazoada distinção.
Todavia, não bastassem os argumentos expostos anteriormente, creio que tal premissa não se sustenta. Primeiro, porque o fato de uma pessoa compartilhar seus ganhos com sua família não configura motivo de desprestígio, em especial porque a proteção previdenciária tem este viés entre as vertentes de seu caráter teleológico. Pelo contrário, será sempre sinal de que seu trabalho pode proporcionar bem-estar às pessoas que compõem seu núcleo familiar. Segundo, pensemos na seguinte hipótese: de um lado há um casal que laborou durante toda a sua vida, abrindo sempre mão de parte da sua renda para fins de lograr no futuro receber a proteção previdenciária. Após árduos anos de labuta, logra o casal aposentar-se, passando a auferir, cada um, um salário-mínimo. Por outro lado, há um casal, no qual somente um deles labora. O outro ou exerceu atividades esporádicas ou nunca teve interesse em incluir-se no mercado de trabalho – uma dona de casa, quem sabe –. Quando atingido o momento da jubilação, um dos componentes do casal aposenta-se. Ou seja, a equidade se fez presente em cada um dos lares mencionados, sendo que no primeiro a renda será de dois salários-mínimos e, no segundo de um salário-mínimo, montantes que, frise-se, foram os que guarneceram os casais ao longo de toda a vida. Com a aplicação analógica do dispositivo da Lei do Idoso, haverá alguma isonomia no trato da questão? O casal que laborou e contribuiu a vida toda terá a mesma renda, por intermédio de aplicação analógica de dispositivo legal, que aquele em que somente um deles laborou.
Mais que isso. Imaginemos o caso de duas famílias em que ambos os integrantes do casal trabalhem. De todos eles, três contribuem religiosamente todo mês para a Previdência Social e o quarto, embora labore, não promove o competente recolhimento das contribuições sociais que lhe são exigidas (uma faxineira diarista, p.e.)[17]. Quando alcançarem a idade de todos se aposentarem, é equânime e isonômico que ambas as famílias aufiram exatamente a mesma renda? A resposta certamente é negativa. Aliás, tal regra consubstancia-se, sem sombra de dúvida, num inegável incentivo em prejuízo à Previdência Social. Diferente do narrado pela Ministra, tal analogia gera patente falta de isonomia entre os segurados da Previdência Social, sendo oportuno lembrar que o princípio da igualdade ganha respaldo quando se coteja hipóteses estribadas em pressupostos similares (dois beneficiários do RGPS, p.e.), e não quando se alcança mundos distintos, como é o caso da Previdência Social em relação à Assistência Social. A análise da isonomia, em suma, pressupõe mesma base de comparação. Como aventa Alexy, “se não houver uma razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório”[18]. No caso em questão, como visto, há sim razão suficiente para a distinção promovida na lei, não havendo falar em arbitrariedade legal. Com efeito, quando se trata de benefício assistencial, o casal que passará a receber o benefício já foi alocado como em eminente vulnerabilidade social, o que necessariamente não atinge os outros casais que sempre, pelo menos um dos componentes, lograram auferir rendimentos para uma vida digna. Não há, portanto, como tratar com os mesmos reclames famílias que sempre estiveram inseridas na Previdência Social e aquelas que sempre viveram à margem da sociedade, vindo a receber uma prestação mensal apenas aos 65 anos de idade.
No mesmo julgamento do STJ, o Desembargador convocado do TJ/RJ Adilson Vieira Macabu proferiu o seguinte voto:
Qual foi a ratio dessa norma? O motivo de sua existência? Exatamente o que disse o Sr. Ministro Og Fernandes. Foi a sensibilidade às questões de direitos humanos e, também, ao princípio constitucional da razoabilidade.
Nós, julgadores – e o Sr. Ministro Gilson Dipp enfatizou muito bem o trabalho que vem sendo realizado pelas Turmas -, não podemos ser insensíveis a uma realidade social, diante de tantos descalabros, omissões e problemas existentes na própria Administração Pública. Daí porque seria inadmissível deixar de reconhecer uma situação real, que está a exigir, portanto, um tratamento especial, que não se constitui numa benesse, vez que há previsão constitucional dando oportunidade à aludida interpretação.
Sem adentrar no mérito relativo às mazelas da Administração Pública para fundamentar a aplicação em comento, pois são situações distintas que demandam medidas diversas, creio que as sábias palavras do ministro muito bem podem fundamentar, por exemplo, a questão do afastamento do critério objetivo da renda para efeito de aferição da concessão ou não do benefício assistencial. No entanto, não teriam o condão de criar uma regra padrão de afastamento do salário-mínimo para todas as hipóteses, sem atentar para o caso concreto. Ora, caso se constate que uma família vive em condições miseráveis, mesmo que a renda per capita supere ¼ do salário mínimo, que seja concedido o benefício, cumprindo-se o papel social a ele ínsito. Mas, por outro lado, criar-se uma regra que abarque situações dos mais variados tipos, sem exame minucioso do caso concreto, acaba por inverter a lógica do benefício assistencial, benesse criada com nítida índole de exceção.
Vejamos, outrossim, o fundamento ventilado na TNU para acolhimento do pedido:
Em verdade, é intuitivo que assim seja, na medida em que o desiderato da legislação especial do idoso é o de lhe assegurar uma renda mínima que lhe propicie a existência com dignidade. Sabe-se, inclusive, que a maior parte de suas despesas é gasta com medicamentos, de modo que buscou a lei garantir a reserva de um mínimo de recursos para tal fim. nº 2008.70.51.002814-8/PR, Rel. Juiz Fed. Ronivon de Aragão, DJ 25.05.2010.
Eis, assim como já referido em relação à decisão do STJ, fundamento que pode sim nortear a análise da renda per capita de forma subjetiva, mas não tem o condão de justificar o afastamento do salário-mínimo advindo de benefício previdenciário. Ora, o segurado pode receber um salário-mínimo e lograr receber do Poder Público todos os medicamentos que necessita, ou nem mesmo precisar de remédios. Por outro lado, pode haver o caso do segurado que recebe um salário-mínimo e necessita gastar metade do valor somente com medicamento especial não disponibilizado pelo SUS. Tais circunstâncias podem, eventualmente, ser ponderadas no exame do caso concreto, todavia, não sustentam o critério de aplicação analógica do dispositivo do Estatuto do Idoso.
Em outro julgado da TNU restou consignado o seguinte:
Dentre as peculiaridades do caso concreto, a decisão recorrida deixou de sopesar que, no caso do idoso, ante a disposição contida no parágrafo único, do art. 34, da Lei nº 10.741/03, é necessário excluir da renda familiar, para efeito de aferição da renda per capita, aquela proveniente do membro da família que, contando com mais de 65 anos de idade, receba benefício de valor mínimo, seja ele de natureza previdenciária ou assistencial. Importante salientar, neste particular, que embora a norma em referência faça menção apenas à hipótese do benefício referido em seu caput (assistencial), evidencia-se que, em atenção ao princípio da isonomia, deve a mesma ser observada nos casos de qualquer benefício de valor mínimo, atendido, sempre, o requisito etário do respectivo beneficiário. PEDILEF nº 2004.70.95.002805-4/PR, Rel. Juiz Fed. Renato Toniasso, DJ 19.12.2006.
Repise-se a conclusão de que a aplicação em comento não respeita a isonomia. Pelo contrário, refuta-a por criar regra que não atenta para o caso concreto. Com efeito, as incongruências que a aplicação analógica da norma cria não param por aí. Imaginemos o exemplo em que há dois casais de idosos: um deles aufere uma renda total, advinda de um único benefício previdenciário, equivalente a R$ 1.100,00; o outro aufere renda de R$ 678,00, ou seja, um salário-mínimo. A aplicação analógica da regra em questão ensejará, indiscutivelmente, que a família que sempre contribuiu mais para a Previdência Social, mantenha-se auferindo a renda de R$ 1.100,00. Já a outra família, que sempre teve um padrão de vida mais baixo, passará a receber R$ 1.356,00, decorrente do benefício no valor mínimo acrescido de benefício assistencial concedido em virtude do afastamento da renda oriunda do benefício previdenciário. Há alguma lógica e isonomia neste quadro, mormente quando se colige que a primeira família, se tivesse contribuído menos, passaria a ter uma renda maior, pois poderia acrescer ao seu benefício previdenciário o valor de um benefício assistencial? Não há matriz lógica que legitime esta medida. Está-se diante de evidente contrassenso que preconiza o desalento às bases da Previdência Social. O ato de contribuir em valores superiores e por mais tempo pode impingir uma condição surreal do núcleo familiar possuir ganhos inferiores em relação a outra família cuja contribuição ao sistema previdenciário era bem inferior. Em resumo, é o típico fato concreto que, não obstante o poder de persuasão do intérprete, não possui meios de ser justificado.
Outra situação: um casal de idosos no qual apenas um deles recebe benefício previdenciário. O benefício, em meados de 2009 é de, por exemplo, R$ 490,00, época em que o salário-mínimo era de R$ 465,00. O cônjuge que não aufere renda, diante deste quadro, promove ação judicial almejando benefício assistencial na qualidade de idoso. Por não haver falar em benefício de valor mínimo, o magistrado indefere o benefício, aventando ser inviável a aplicação analógica do art. 34 do Estatuto do Idoso. Ocorre que o incremento do salário-mínimo nos anos seguintes induz ao fato de que o segurado passe a receber um salário-mínimo de benefício previdenciário, mais precisamente R$ 678,00. Note-se que, não obstante a família tenha um incremento de renda de cerca de 40% em menos de quatro anos, tal fato ensejará, caso se aplique a previsão do Estatuto do Idoso, de forma analógica, que se passe a admitir a percepção do benefício assistencial. Ou seja, a alteração fática em proveito da família levaria a admitir a concessão de benefício assistencial, deflagrando uma cognição de vulnerabilidade social que, supostamente, inexistia anos antes, quando a renda era bem inferior.
Tais incongruências não parecem ter sido examinadas quando assentado este entendimento na jurisprudência pátria. De qualquer sorte, o tema será finalmente debatido pela Corte Constitucional. Com efeito, no STF a questão teve repercussão geral reconhecida no RE 580.963, nos termos do art. 543-B do CPC, estando, todavia, pendente de julgamento definitivo desde 2008. O feito tomado como parâmetro advém de processo julgado da Subseção Judiciária de Apucarana-PR, com decisão da Turma Recursal do Paraná (processo nº 2007.70.95.0011651-0) acolhendo a sentença por seus próprios fundamentos. O recurso interposto é de titularidade do INSS. Conquanto não tenha a referida Corte se pronunciado em definitivo sobre o tema, havendo apenas um voto[19], impõe transcrever trecho extraído do Informativo de Jurisprudência nº 669 do STF, que relata o voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio no RE 567.985/MT[20]:
Além disso, a superação de regra legal deveria ser feita com parcimônia. Assim, os juízes haveriam de apreciar, de boa-fé, conforme a prova produzida, o estado de miséria. Acrescentou que o critério de renda atualmente estabelecido estaria além dos padrões para fixação da linha de pobreza internacionalmente adotados. Dessa maneira, a superação da regra seria excepcional. Ademais, o orçamento não possuiria valor absoluto. Sua natureza multifária abriria espaço para encampar atividade assistencial, de importância superlativa no contexto da CF/88.
Frise-se que o benefício assistencial é uma benesse de exceção, ou seja, o cidadão somente é contemplado com ele quando não se afigure agasalhado pela proteção familiar ou previdenciária, sendo a exclusão social fator indireto ensejador da proteção pecuniária. Ademais, sonha-se em ser uma benesse temporária, pois focada numa situação de desamparo que, com o passar dos anos e o incremento das políticas públicas, se busca abolir da sociedade pátria. Não se pode ver o benefício assistencial, de conseguinte, como uma opção do cidadão dentre de uma gama de alternativas cabíveis, mas sim a derradeira proteção direcionada àquele que não possui outros meios de prover seu sustento. Não há um maniqueísmo entre assistência social e previdência social, cabendo ao cidadão escolher a opção que melhor lhe agrade, e sim há uma linha de proteção traçada pelo Poder Público que elenca parâmetros e graus de cobertura, visando a agasalhar a todos, num evidente método de organização social.
Dados colhidos juntos ao Ministério do Desenvolvimento Social[21] dão conta de que em dezembro de 1996 havia 304.227 pessoas no Brasil recebendo BPC em decorrência da situação de incapacidade e 41.992 em virtude da situação etária (idoso). Ou seja, naquele momento, havia 346.619 pessoas gozando de benefício assistencial no Brasil. Em dezembro de 2001, o benefício para portadores de deficiência atingiu o número de 870.072 e para idoso o total de 469.047, alcançando uma soma de 1.339.119. Portanto, num período de cinco anos, houve um salto no total de benefícios de 386%.
Ocorre que o salto ganhou contornos ainda maiores. Com efeito, em dezembro de 2011, o Brasil atingiu a marca de 1.907.511 de pessoas auferindo o benefício de prestação continuada em virtude de deficiência. Quanto aos idosos, há um total de 1.687.826 pessoas recebendo benefício assistencial, o que atinge uma marca de 3.595.337 pessoas no Brasil todo auferindo a benesse, o que denota um aumento de 1037% no número de casos.
Por outro lado, dados do IBGE[22] mostram que de 2000 a 2010 a população nacional saltou de 169.799.170 para 190.732.694, ou seja, aumento de 12%. Portanto, nos dias atuais, 1,88% da população recebe benefício assistencial.
Mais que isso, estudos apontam que os gastos com assistência social subiram de 1,5 bilhões de reais em 1995 (0,08% do PIB) para R$ 44,2 bilhões de reais em 2010 (1,07% do PIB). Dentro do GSF - Gasto Social Federal (composto por saúde, assistência social, previdência, educação, cultura, saneamento, etc.), a assistência social é a que teve maior crescimento percentual no aporte de recursos[23]. Mais precisamente, colhe-se que no ano de 2010 os gastos com o benefício de prestação continuada alcançaram R$ 20,4 bilhões, direcionados a 3,6 milhões de pessoas. Já os gastos com o bolsa-família atingiram R$ 13,5 bilhões, respaldando surpreendentes 51 milhões de pessoas[24]. Por sinal, segundo dados do INSS[25], o acolhimento da tese que ora se debate geraria custos aproximados de R$ 25 bilhões, gerando extremas dificuldades para o manejo do sistema assistencial pátrio nas suas mais variadas órbitas, visto que outros projetos, como de amparo à criança, ficariam hoje comprometidos.
Tais números representam algumas situações: aumento da preocupação governamental com a mitigação da miséria, viabilizada por uma melhoria do panorama econômico; maior acesso ao benefício por aquelas pessoas que efetivamente dele necessitam e que se enquadram nos critérios legais, seja pelo incremento da informação, seja pelo maior acesso ao Poder Judiciário; e o inegável alargamento da interpretação legal, passando a ser albergada uma gama de pessoas que não fariam jus ao benefício pelo critério legal.
Infelizmente, não obstante todas as melhorias que nortearam a evolução nacional nos últimos anos, ainda vivemos em um país pobre, fato que deve ser ponderado quando se criam preceitos analógicos com elevada abrangência e efeitos na seara nacional. Tal fato pode ser exemplificado pela informação de que a renda média do trabalhador brasileiro não alcança três salários-mínimos (R$ 1.612,90 em julho de 2011 - Fonte IBGE). Conquanto numa sociedade ideal almejem-se condições mais salutares de vida a todos os cidadãos, sem pobreza e com respeito a todos os direitos consagrados, boa renda, plenas condições de saúde e educação, entre outros, não se pode olvidar que estamos diante de um orçamento com limites inegáveis, mormente porque os recursos do Estado são extremamente limitados. O simples fato de que a renda média do trabalhador brasileiro, que usualmente necessita sustentar outros integrantes do mesmo núcleo (famílias costumeiramente compostas pelo casal e dois filhos), é inferior a três salários-mínimos já denota a inconsistência de incluir no campo assistencial casal que recebe um salário-mínimo e, pela regra, passará a auferir dois. Em resumo, é incongruente que uma família brasileira aufira, na média, pouco mais do que um determinado núcleo familiar receberá por intermédio de assistência social.
O panorama social hoje existente, muito embora evidencie agradável evolução frente ao que se constatava décadas atrás, não permite esquecer que ainda estamos diante de um país cuja renda média se encontra distante de parâmetros ideais, aferidos em países desenvolvidos. Esta conclusão demonstra que, não obstante a luta contra a erradicação da miséria seja basilar, não se pode adotar parâmetros irreais para o contexto atual. Afastar a renda de um salário-mínimo que, em 2010[26], expressava o valor auferido por mais de 15 milhões de beneficiários da Previdência Social equivale a fechar os olhos para o padrão financeiro ainda hoje encontrado na sociedade. Aliás, no ano de 2009, a renda média dos benefícios previdenciários era de R$ 726,31, o que bem reflete que a maciça parcela de beneficiários da Previdência Social é guarnecida com benefício deste valor, situação que tende só a aumentar com o passar dos anos ante a atenção especial direcionada ao salário-mínimo. Demarcar o parâmetro de miserabilidade em meio salário-mínimo – reflexo da tese jurisprudencial questionada que afasta o salário-mínimo auferido usualmente pelo outro cônjuge – resplandece a intenção de utilizar padrão nórdico de miserabilidade no Brasil.
Neste panorama deve-se privilegiar na esfera assistencial a realidade concreta, erigindo a proteção àqueles que mais necessitam, ou seja, os que não possuem sequer o considerado “mínimo existencial”, daí porque da razão de critério legal tão restritivo. Assim, o benefício assistencial em questão não é direcionado às famílias pobres, que alcançam mais do que ¼ da população nacional, e sim àquelas que vivem abaixo da linha da pobreza, em evidente vulnerabilidade social, circunstância que deve ser aferida no caso concreto, e não por meio de regra analógica padrão.
Há, entretanto, outro ponto que leva ainda à rejeição da tese ventilada. Com efeito, a “criação” de novo parâmetro objetivo para aferição da renda per capita exara evidente hipótese de atuação do julgador como legislador positivo. Isso porque, examinar o caso concreto a partir de um olhar atento à efetiva condição cultural, social e financeira vivida pelo cidadão resplandece o que se busca do Poder Judiciário, que não deve ficar vinculado a critérios objetivos. Todavia, utilizar-se uma analogia que explicita uma intenção travestida de legislador, não obstante o caso concreto, acaba por homiziar a intenção clara do Poder Judiciário de prestigiar os direitos fundamentais dos cidadãos.
A premissa de afastar o valor do benefício previdenciário do cálculo da renda familiar é a típica hipótese de escolha política, em que se ponderam valores, princípios e, inclusive, recursos orçamentários. Evidencia-se, no caso, premissa em que se leva em conta a “vontade do povo”, notadamente ante o preceito constitucional antes examinado que remete as soluções do benefício em questão ao Poder Legislativo. Não cabe ao Poder Judiciário produzir normas jurídicas que inovem em seara reservada à atuação dos demais Poderes. Como pontua Fernando Scarff[27], “é o Poder Legislativo que detém a chave do cofre público para a realização dos gastos. E é a ele que a sociedade confere poderes para a realização dessas escolhas trágicas”[28]. Não se pode admitir a prevalência das próprias convicções políticas em prejuízo às escolhas feitas pela sociedade por intermédio de seus representantes[29].
Anote-se, ainda, que a Constituição Federal imputou, dentre tantas outras, a obrigação do Poder Público no art. 194, parágrafo único, de “organizar a seguridade social”, com base na universalidade de atendimento e, mais que isso, na “seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços”. Ora, soa incongruente que o Poder Judiciário imiscua-se no projeto político de tal seara, criando requisitos e premissas não previstas em lei. Isso fica claro quando se examina o teor do art. 204 do CF[30]. Não há dúvida, pois, diante do dispositivo, que a assistência social é permeada pela (a) descentralização político-administrativa e, sobretudo, pela (b) participação da população, o que deixa ainda mais clara a imprópria intromissão do Poder Judiciário na alteração de requisitos legais. Lembre-se que criar uma regra padrão para todos os casos, escorada na suposta premissa de analogia, não condiz com interpretar a lei. É o Poder Legislativo que tem a incumbência de inovar inauguralmente a ordem jurídica. Não é do Poder Judiciário o papel de produzir normas gerais e abstratas, sob pena, inclusive, de prejuízo aos pilares da democracia representativa. Lênio Streck bem examina o tema[31]:
Numa palavra quase final: queremos, todos, uma sociedade democrática. E, fundamentalmente, Instituições democráticas. Um judiciário democrático. Um Ministério Público democrático. Que as decisões de ambos não sejam fruto de opiniões pessoais. Que as decisões não sejam fruto do subjetivismo ou voluntarismo. Ninguém é neutro. A neutralidade é uma fraude. Não é disso que se trata. Já escrevi muito sobre isso. Decidir não é o mesmo que escolher. Por isso, a necessidade de cobrarmos a responsabilidade política das decisões (cf. Verdade e Consenso, posfácio, 4ª Ed., Saraiva, 2011). É o que chamo de accountability hermenêutica.
O STF possui, igualmente, diversos precedentes que abominam a hipótese da condição de legislador positivo do Poder Judiciário[32].
Assim, as políticas públicas, sobretudo quando intentam atacar problemas tão graves da sociedade, devem ser norteadas pelo exame global do contexto enfrentado, mormente em um país de território continental, em que as distâncias físicas talvez sejam menores que as distâncias sociais visualizadas entre regiões. Não é o Poder Judiciário, sem estudos técnicos apropriados e focado num conceito individual de miserabilidade, que deve instituir parâmetros de aferição de vulnerabilidade. Por mais que possa, em casos peculiares e excepcionais, ponderar os limites da lei, cotejando-os com os direitos constitucionais (força normativa da Constituição) a fim de conceder o benefício assistencial a pessoa integrante de núcleo familiar cuja renda per capita supere ¼ do salário-mínimo, não lhe é concedida a prerrogativa de criar um novo parâmetro, um padrão geral e abstrato de aferição de miserabilidade. Não há, em resumo, como o Poder Público manejar uma política pública tão abrangente e fundamental se suas bases não respeitarem a lei.