Reflexos da inadmissibilidade dos embargos declaratórios no prazo do recurso ordinário
Quando diz que nenhum juiz prestará a jurisdição senão depois de provocado, a lei quer dizer que a jurisdição é inerte. O ato de reclamar o exercício da atividade jurisdicional é, por assim dizer, primal, o que inaugura a jurisdição, desperta a jurisdição da sua inércia. O exame da validade desse ato postulatório é o exame da validade do próprio procedimento, do qual esse ato faz parte. Todo ato postulatório, qualquer que seja, se sujeita a um duplo exame pelo juiz da causa. Num primeiro juízo, verifica-se se o conteúdo da postulação é possível: trata-se de juízo de admissibilidade ou de inadmissibilidade. No segundo, se, sendo possível, a pretensão procede ou improcede: trata-se de juízode procedência ou de improcedência. Somente se chega ao segundo juízo ? se a pretensão procede ou improcede ? se superado, com êxito, o juízo de admissibilidade. Quando o órgão julgador não pode superar o juízo de admissibilidade do recurso, diz-se que o apelo não foi admitido, ou não foi conhecido. O juízo de admissibilidade opera no plano da validade dos atos jurídicos, pertence à teoria geral do processo e se aplica ao procedimento. Apoia-se em pressupostos de admissibilidade, que se dividem em intrínsecos e extrínsecos. Os intrínsecos dizem respeito à própria existência do poder de recorrer: cabimento, legitimação, interesse e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer. Os extrínsecos, referem-se ao modo de exercitar o direito de recorrer: preparo, tempestividade e regularidade formal. Como todo recurso, os embargos declaratórios sujeitam-se a esses dois juízos(com exceção, como se disse, do preparo).
Questão interessante, já examinada em concreto, diz com a extensão da expressão “para todos os outros recursos”, constante da regra de direito. Imagine-se que, proferida uma sentença, um dos litigantes interpõe embargos de declaração. Como está no art.538 do CPC, esse ato faz interromper o prazo de qualquer outro recurso para ambas as partes, inclusive para aquela que não embargou. Seria possível que, após a decisão desses embargos, e já que o prazo de qualquer outro recurso está suspenso para todos, a parte que não embargou interpusesse embargos de declaração não contra a sentença que decidiu os embargos do adversário, mas contra a sentença originária, que inicialmente não havia embargado? O STJ decidiu que sim, mas a solução não é bem-vinda na doutrina. O correto — concordo — seria admitir embargos declaratórios apenas contra a sentença que decidiu os embargos, pela própria parte ou pela parte contrária, até por que a parte que embargou não pode, depois de julgados os seus embargos, continuar embargando a sentença já embargada, ainda que por outros fundamentos, mas apenas a sentença que decidiu os embargos de declaração.
Questão que ainda desafia a doutrina trabalhista diz respeito aos efeitos do não conhecimento dos embargos declaratórios na contagem do prazo de interposição do recurso ordinário. Na antiga redação dos arts.464 e 535, do CPC, a interposição dos embargos declaratórios suspendia o prazo de interposição do recurso seguinte. Hoje, embargos interrompem o prazo de qualquer outro recurso, mesmo para a parte que não embargou. Na suspensão, o prazo peremptório para o aviamento do recurso subsequente fluía inexoravelmente, mesmo em face da interposição dos embargos, de sorte que a parte, dispondo de oito dias para interpor o recurso ordinário no processo do trabalho, ou de quinze para o de apelação no processo civil, e tendo aviado embargos no 3º dia do prazo, somente poderia dispor dos cinco dias sobejantes para manejar o recurso próprio, se se tratasse do recurso ordinário do processo do trabalho, ou de doze, se de apelação do processo civil. Com a interrupção, todo o prazo é-lhe devolvido por inteiro a partir da intimação da sentença que julgar os embargos.
Como dito, no juízo de admissibilidade, o juiz verifica a satisfação dos pressupostos intrínsecos (cabimento, legitimação, interesse e inexistência de fato impeditivo ou extintivo do poder de recorrer) e extrínsecos(preparo, tempestividade e regularidade formal) de admissibilidade dos embargos. Ainda que esses embargos não possam ser conhecidos por falta de um ou mais desses pressupostos, o prazo para a interposição do recurso subsequente estará automaticamente interrompido.
A única hipótese em que os embargos não conhecidos não interrompem o prazo do recurso seguinte é aquela em que os próprios embargos foram interpostos forado prazo legal, ainda que dentro do prazo de interposição do recurso subsequente. Nesse caso, como não se interrompe prazo extinto, e os embargos declaratórios foram aviados de modo tardinheiro, o prazo de interposição do recurso subsequente ao de embargos continuou fruindo normalmente a partir da intimação da sentença. Se a parte interpuser o recurso próprio, fiando-se na suposição de que os seus embargos, embora intempestivos, interromperam o prazo do recurso principal, muito provavelmente terá deixado escapar o prazo legal e permitido a formação da coisa julgada material[16]. Mesmo aqui, há divergência, pois doutrina muito aplaudida diz que a interposição dos embargos declaratórios interrompe o prazo dos recursos ainda que feita a destempo. Segundo esse entendimento, os embargos declaratórios somente não interromperiam o prazo do recurso se viessem após o decurso do prazo do próprio recurso cabível contra a sentença que se pretendeu embargar. Como não se interrompe prazo já escoado, essa seria, em rigor, a única hipótese em que não haveria interrupção. Fora disso, e desde que o recurso próprio seja interposto dentro do prazo legal, haveria interrupção. Assim, por exemplo, se a parte dispõe de cinco dias para interpor embargos de declaração, e de oito para recorrer ordinariamente no processo do trabalho, haverá interrupção mesmo que interpostos embargos declaratórios no sexto dia, desde que o recurso ordinário seja aviado até o oitavo dia. Corrente jurisprudencial ainda mais rigorosa entende que embargos declaratórios interpostos no prazo, mas com a manifesta intenção de postergar a entrega da prestação jurisdicional, não interrompem o prazo do recurso subsequente[17].
Recurso de cognição estrita
Dissemos que embargos são recursos de fundamentação vinculada ou decognição estrita. A cognição é estrita porque ninguém pode interpor embargos a torto e a direito, por este ou aquele motivo. Somente os casos expressamente previstos pelo legislador comportam embargos. Assim, a cognição nos embargos deve restringir-se aos casos de omissão, contradição e obscuridade da sentença, decisão ou acórdão (CPC, art.535). Por isso que a cognição é restrita a esses três aspectos. Para toda e qualquer outra objeção que se tiver de fazer no processo há recurso próprio, ou não há recurso nenhum. Vejamos uma e outra:
Obscuridade, contradição, omissão
O art.535 do CPC diz que cabem embargos declaração quando houver, na sentença ou no acórdão, obscuridade, contradição ou for omitido ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.Obscuridade é “ausência de luz”. Em sentido figurado, obscuro é aquilo ao qual “falta claridade”; é o “estado do que é ininteligível”, “difícil de compreender”, “vago”, ”indistinto”, “pouco definido”. Poderá haver obscuridade em um julgado quando encadear a conclusão para A ou para B, mas não concluir nem A nem B. Dúvidassubjetivas (dúvidas da parte) nunca serviram de supedâneo aos embargos. Até mesmo a dúvida objetiva (que decorre da sentença ou do acórdão em si mesmos) foi extirpada do rol do art.535 do CPC pela Lei nº 8.950,de 13/12/94,que reduziu o cabimento da declaração à obscuridade, à contradição e à omissão sobre ponto sobre o qual devia pronunciar-se o juiz ou tribunal.Duas proposições contrárias são de tal modo inconciliáveis entre si que se neutralizam, equivalem a zero. Se uma é verdadeira, a outra é falsa, e isso, se ocorre no processo, torna o julgamento incerto, pois o jurisdicionado não tem nenhum elemento concreto para inferir qual das duas deve prevalecer. Contradição é “uma afirmação contrária ao que se disse“.A contradição que autoriza a interposição de embargos é interna, isto é, somente pode ser aferida entre as premissas ou entre os capítulos do próprio julgado, umas em relação a outras, na própria decisão[18]. Haveria contradição se do encadeamento lógico das premissas aceitas pelo juiz como verdadeiras e provadas devesse decorrer naturalmente que a conclusão seria A, mas o juiz concluísse B[19]. Não há contradição se o juiz decide contra a afirmação da parte ou contra o que dizem a doutrina majoritária ou a jurisprudência prevalente porque, nesse caso, a contradição é ficta e exógena, isto é, em relação a uma premissa externa ao próprio conteúdo da decisão. Há contradição, “se houve determinada linha de afirmação ou posicionamento na decisão, mas esta operou-se de forma diversa daquela que seria indicada pela lógica, ou como consequência inderrogável e fatal do pensamento alinhado. A contradição advém de inclusão na decisão de proposições entre si, absolutamente inconciliáveis. O raciocínio se desenvolve na sentença através de proposições que devem estar harmonizadas entre si”.Não sendo um caso típico de erro material, a contradição da sentença traduz um error in procedendo do juiz porque representa um descompasso entre a situação de fato apurada nos autos e a elaboração do comando sentencial. Ou seja: o juiz conclui contrariamente ao que apurou nos autos e disso resulta uma contradição existente entre o que deflui dos autos e o que foi efetivamente decidido.
Dá-se omissão quando o juiz deixa de apreciar ponto jurídico controvertido, relevante e que efetivamente influa no conteúdo da decisão. Esse ponto controvertido deve ter constado necessariamente do recurso, ou não se considera devolvido[20].Se o ponto jurídico não é controvertido, não é relevante e não influi na decisão, inclui-se na categoria dos fatos simples processuais e sobre eles não há necessidade de pronunciamento expresso. Sanar uma omissão não significa satisfazer o capricho ou o excesso de zelo da parte, mas completar a jurisdição, integrar uma decisão judicial com os requisitos mínimos que a tornem compreensível, justa e exequível. Admite-se interposição de embargos para corrigir omissão consistente na falta de juntada de voto vencido. Diz-se que o voto, embora vencido, integra a decisão prevalente e a parte tem o direito de conhecer o seu teor[21]-[22].É sempre útil considerar que a função essencial dos embargos é “a revelação do verdadeiro sentido da decisão, bem como repor a decisão nos limites traçados pelo pedido da parte”. Embargos declaratórios não se prestam a “obrigar o juiz ou o tribunal a responder a questionários da parte sobre meros pontos de fato (fatos simples), não tidos como relevantes para o julgamento“. Nos embargos, “o que se pede é que declare o que foi pedido, porque o meio empregado para exprimi-lo é deficiente ou impróprio. Não se pede que se redecida, pede-se que se re-exprima”.Segundo a jurisprudência, “não ocorre omissão quando o acórdão deixa de responder exaustivamente a todos os argumentos invocados pela parte, certo que a falha deve ser aferida em função do pedido, e não das razões invocadas pelo litigante. Não há confundir ponto do litígio com argumento trazido à colação pela parte, principalmente quando, para a solução da lide, bastou o exame de aspectos fáticos, dispensando o exame da tese, por mais sedutora que possa parecer. Se o acórdão contém suficiente fundamento para justificar a conclusão adotada, na análise do ponto do litígio, então objeto da pretensão recursal, não cabe falar em omissão, posto que a decisão está completa, ainda que diversos os motivos acolhidos seja em primeira, seja em segunda instância.Os embargos declaratórios devem referir-se a ponto omisso ou obscuro da decisão e não a fatos e argumentos mencionados pelas partes”.
Prequestionamento
Na maioria dos casos de embargos no processo do trabalho, o embargante pré-avisa que o faz para “prequestionar” a matéria. A Súmula nº 356, do STF, costumeiramente citada para justificar a interposição dos embargos quando se quer o prequestionamento, diz que “o ponto omisso da decisão, sobre o qual não foram opostos embargos declaratórios, não pode ser objeto de recurso extraordinário, por faltar o requisito do prequestionamento”. A súmula fala em “ponto omisso da decisão”. É preciso, portanto, que a decisão não tenha enfrentado a questão jurídica objeto dos embargos, por isso que se exige a sua interposição para que sobre o ponto omitido o juízo deixe expresso o seu entendimento. Se a questão jurídica objeto dos embargos foi enfrentada expressamente pelo juiz ou tribunal, e rejeitada, ou provida em parte, ou provida de maneira que não agrada ao embargante, de nada servem os embargos porque não se trata de omissão que prejudique o recurso extraordinário, mas de pronunciamento direto do órgão julgado contra o qual o recurso obviamente não é o de embargos. Nessa hipótese, não é possível interpor embargos “para prequestionar” porque, em tese, m nada o recurso extraordinário seria prejudicado.
Prequestionar é questionar antes, debater. Assim dizendo, o embargante deixa subentendido que, qualquer que seja o resultado dos embargos, irá interpor recurso de revista para o TST. Esse pré-aviso seria mesmo necessário? Mais que isso: embargos de declaração se prestam a isso? Para ambas as perguntas a resposta é “não”. Somente se admite o manejo de embargos declaratórios para prequestionar certa matéria quando se tratar de questãofederal ou de questão constitucional, “para efeito de viabilizar a interposição de recurso especial ou recurso extraordinário. Trata-se de requisito necessário à admissão desses recursos, nos quais não se pode ventilar questões que não foram objeto de tratamento no acórdão recorrido“.
Vamos dissecar o conceito. Em primeiro lugar, o prequestionamento é necessário apenas quando se tratar de questão federal ou constitucional. Não é, portanto, qualquer matéria que exige prequestionamento, mas apenas aquela que envolver questão federal ou constitucional. Esse é o primeiro ponto. Além disso, o prequestionamento é necessário quando os recursos cabíveis após o ordinário forem o especial ou o extraordinário. Se esses recursos não são cabíveis, não há necessidade de prequestionamento. Assim é porque esses recursos são excepcionais e não admitem discussão de matérias que não tenham sido objeto de tratamento no acórdão recorrido, por isso se maneja embargo declaratório como forma indireta de completar a discussão sobre o ponto. Mas, em regra, essa discussão não é possível nem cabível em embargos de declaração. De fato, não há espaço para nenhumprequestionamento nos embargos de declaração se a tese neles debatida, e que se diz não enfrentada expressamente no acórdão, já foi ali examinada, ainda que sob outros fundamentos, ou sem menção expressa ao fato em si. O que rende ensejo aos embargos, com o fim específico de prequestionar, é, primeiro, a efetiva arguição da questão federal ou constitucional, antes da interposição dos embargos, pois não se admite que a parte se valha dos embargos para levantar nos autos, pela primeira vez, questões que não foram alvo de seu prequestionamento e padecem, assim, de completa falta de exame no acórdão embargado. O que a Constituição Federal exige como fundamento do recurso de revista não é prequestionamento, mas que a causa tenha sido decidida pelo Tribunal em face da questão federal ou constitucional. O que se exige é que a questão a ser debatida na revista tenha sido deduzida no recurso, como ônus das partes, e decidida pelo Tribunal, dentro do princípio da devolutividade, e não o simples questionamento. Prequestiona-senas razões de recurso, por meio das quais se põe ao Tribunal a necessária dialeticidade que estabelecerá o diálogo recursal. Assim, a doutrina:
“O prequestionamento é realizado, ordinariamente, pela parte através das próprias razões recursais (v.g. as razões de apelação), que ensejarão a manifestação do órgão a quo acerca do tema levantado. Fora desse modo, não há como efetuar-se o prequestionamento. Se realizado a partir de embargos de declaração, deve ter como pressuposto um anterior debate em sede das razões recursais acerca do tema, já que, sendo defeso ao juízo a quomanifestar-se acerca da matéria não arguida pelas partes, de igual modo sequer seriam passíveis de conhecimento os embargos de declaração que visassem apenas e tão somente incitar o órgão judicante a declarar-se acerca de determinado tema, se o assunto já não tivesse sido levantado em razões recursais. Vê-se, pois, que através de embargos de declaração não é possível realizar-se prequestionamento, uma vez que, a rigor, o prequestionamento eminentemente necessário já é de ter sido realizado quando da apresentação das razões recursais. Os embargos declaratórios prestar-se-iam, apenas, a incitar o órgão julgador a suprir determinada omissão, e nesse suprimento talvez fique demonstrada a existência de violação a disposição federal. No máximo, poder-se-ia entender que a parte reprequestionaria, através dos embargos de declaração. Isso porque já teria ocorrido o prequestionamento e,não havendo manifestação do órgão julgador a respeito da questão constitucional ou federal, através dos embargos de declaração se visaria a alcançar a supressão da omissão, mas não o prequestionamento, que já é de ter ocorrido. Quando a própria decisão viola a norma jurídica não há que se falar em necessidade de prequestionamento pela parte, através de embargos de declaração. Efetivamente, não há razão lógica para tal exigência, pois o requisito imposto pela Carta Magna à admissibilidade do recurso extraordinário ou especial já se encontra presente. Ademais, os embargos de declaração não se podem prestar a agitar matéria que já existe na decisão embargada, a não ser que haja contradição, obscuridade e omissão”.