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A responsabilidade pessoal dos sócios pelas dívidas sociais e o artigo 1.003 do Código Civil

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30/04/2013 às 09:35
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A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

A última consideração que devemos fazer é quanto à aplicação da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade para se atingir o patrimônio dos sócios, ou mais especificamente, do administrador, prevista no artigo 50 do Código Civil, e, que, a nosso ver, deve ser feita com extrema cautela e com a estrita observância do devido processo legal (dueprocessoflaw), sob pena de resvalarmos para a mais absoluta arbitrariedade contra o Estado de Direito.

Dispõe o artigo 50 do Código Civil que:“ Artigo 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”

Como salienta Fabio Ulhôa Coelho, a desconsideração da personalidade jurídica, aplicada pelos juízes sob o manto do disposto no artigo 50 do Código Civil, não implica a revogação das normas atinentes à responsabilidade limitada dos sócios, nesse tipo societário, mas apenas para desconsiderá-la para determinados e precisos efeitos da ação do administrador: “A aplicação da teoria da desconsideração não implica na anulação ou o desfazimento do ato constitutivo da sociedade empresária, mas apenas a sua ineficácia episódica.”[10]

Resumindo a teoria da responsabilidade dos administradores, e tendo em vista que o artigo 1.052 do Código Civil, taxativamente, determina que a responsabilidade dos sócios, na sociedade limitada, é restrita ao valor de suas quotas, determinam os artigos 1.024 do Código Civil e o artigo 596 do Código de Processo Civil que:

Artigo 1.024. Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais.

e

Artigo 596 - Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade.

Os artigos 1.024 do Código Civil e o artigo 596 do Código de Processo Civil consagram a teoria da personalização da sociedade cujo patrimônio é distinto do patrimônio dos sócios que a compõem, e que só poderá ser atingido se presentes as hipóteses legais constantes da dicção do artigo 50 do Código Civil (acima reproduzido); do artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei Federal n?. 8078, de 1990):

Artigo 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

e do inciso III do artigo 135 do Código Tributário Nacional (Lei Federal n?. 5.172/66):

Artigo 135.  São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:

I - as pessoas referidas no artigo anterior;

II - os mandatários, prepostos e empregados;

III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

É importante se observar que a responsabilidade pessoal dos sócios ou dos administradores das sociedades limitadas pelas dívidas da sociedade, ou mesmo pelas dívidas e obrigações por eles contraídas em desacordo com a lei ou com os ditames do contrato social, para com seus fornecedores, consumidores ou para com o Fisco, como preconizado pelos artigos 50 do Código Civil, artigo 28 do Código de Consumidor e inciso III do artigo 135do Código Tributário Nacional, respectivamente, devem obedecer ao benefício de ordem estabelecido nos artigos 1.024 do Código Civil e artigo 596 do Código de Processo Civil.

Primeiro, respondem os bens da sociedade, e na falta destes, os bens particulares dos sócios e dos administradores. Quando demandados para o pagamento da dívida, podem exigir que primeiro sejam executados os bens da sociedade, e somente na falta destes é que o seu patrimônio pessoal responderá pelo pagamento.

Esse, em resumo, é o desenho legal da responsabilização pessoal dos sócios e administradores pelos prejuízos causados para terceiros pelas ações por eles praticadas em nome da pessoa jurídica.


O LIMITE TEMPORAL DA RESPONSABILIDADE

Além dessas observações, cumpre, para completar o quadro, analisarmos o limite temporal da responsabilidade dos sócios e administradores estabelecido pelo arts. 1.003 do Código Civil:

Art. 1.003. A cessão total ou parcial de quota, sem a correspondente modificação do contrato social com o consentimento dos demais sócios, não terá eficácia quanto a estes e à sociedade.

Parágrafo único. Até dois anos depois de averbada a modificação do contrato, responde o cedente solidariamente com o cessionário, perante a sociedade e terceiros, pelas obrigações que tinha como sócio.

A jurisprudência cível acompanha, “in totun”, a letra da lei:

"CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. SOCIEDADE COMERCIAL POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LIMITADA. RETIRADA DOS SÓCIOS. AVERBAÇÃO DA ALTERAÇÃO IMPREGNADA NO CONTRATO SOCIAL JUNTO À JUNTA COMERCIAL. APERFEIÇOAMENTO DA MODIFICAÇÃO. OBRIGAÇÕES SOCIAIS DOS RETIRANTES. TERMO LEGAL. EXIGÊNCIA APÓS O IMPLEMENTO DO LAPSO LEGALMENTE ASSINALADO. IMPOSSIBILIDADE. DESOBRIGAÇÃO. INTERESSE DE AGIR EVIDENTE.1. (...)

2. Às sociedades por cotas de responsabilidade limitada, de conformidade com o apregoado pelo legislador, são aplicadas, ante as omissões da normatização que lhes é específica, os dispositivos aplicáveis às sociedades simples, determinando que, em não contando com disciplinação própria quanto à responsabilidade dos sócios que deixaram o quadro social, sujeitem-se aos regramentos destinados a esta espécie de sociedade (CC, art. 1.053).

3. Retirando-se o sócio do quadro social da sociedade comercial e promovido o registro da alteração derivada da retirada junto ao órgão competente - Junta Comercial -, as obrigações sociais passíveis de lhe serem imputadas devem ser exigidas dentro do prazo de até 02 (dois) anos após o aperfeiçoamento da modificação contratual, e, implementado esse interregno, resta integralmente alforriado, independentemente da data em que a obrigação social se tornara exigível ou de quando se implementara seu fato gerador, devendo, se cobrado por dívidas sociais, ser absolvido da obrigação de solvê-las mediante a declaração da sua desobrigação (CC. arts. 1.003 e 1.032).

4. Recurso conhecido e improvido.

TJDF. Unânime.20050110514327APC, Relator TEÓFILO CAETANO, 2ª Turma Cível, julgado em 02/05/2007, DJ 10/07/2007 p. 109)

e

"CIVIL E COMERCIAL. SOCIEDADE EMPRESARIAL. ALTERAÇÃO

 CONTRATUAL. RETIRADA DOS SÓCIOS. AÇÃO DE COBRANÇA. HAVERES DE SÓCIO EXCLUÍDO RECONHECIDO JUDICIALMENTE.

 RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. CONDENAÇÃO. PROCEDÊNCIA.

01. Decretada a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, os bens particulares dos sócios respondem pelos débitos da sociedade.

02. Na forma dos artigos 1497 do Código Civil de 1916, artigo 1.032 e o parágrafo único do artigo 1.003 todos do Código Civil, o sócio que cede a sua participação na sociedade e dela se retira, responde solidariamente com o cessionário, durante dois anos, pelas obrigações contraídas durante a sua administração.

03. O embargante de terceiro que alega fato constitutivo de seu direito, a impedir a penhora de valores em sua conta bancária, assume o ônus da prova da origem dos depósitos, na forma do inciso I do artigo 333, do Código de Processo Civil.

04. Recurso conhecido e desprovido. Sentença mantida.

TJDF. 20070111122457APC, Relator JOÃO BATISTA TEIXEIRA, 4ª Turma Cível, julgado em 22/04/2009, DJ 04/05/2009 p. 168).

O disposto no parágrafo único do artigo 1.003 do Código Civil, tomado em sua expressão literal, como se viu nos julgados, dá a sensação de que concretiza o mandamento maior e pressuposto da criação da sociedade por quotas, que é a responsabilidade limitada dos sócios, como destacado antes. Porémessa regra conduz, inexoravelmente, ao endosso legal da fraude aos credores da sociedade existentes à época da retirada. Imaginemos que uma sociedade empresária é demandada em juízo para a reparação de danos causadas a um terceiro, e dada quase certeza de sua condenação, os sócios, confiantes na morosidade do poder judiciário, promovem a sua saída dessa sociedade transferindo as quotas sociais para o porteiro ou a faxineira de plantão. Antes da decisão final do processo, decorridos os dois anos previstos no artigo citado, estão eles imunes à responsabilização.

A interpretação deve ser sistemática com o desenho de fraude a credor contida no inciso II do artigo 593 do Código de Processo Civil, ou mesmo das disposições dos arts. 158 e seguintes do Código Civil, que tratam da matéria:

Art. 593 - Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens:

.......................................................................

II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência;

..............

Art. 158. Os negócios de transmissão gratuita de bens ou remissão de dívidas, se o praticar o devedor já insolvente, ou por eles reduzido à insolvência, ainda quando o ignore, poderão ser anulados pelos credores quirografários, como lesivos dos seus direitos.

A norma contida no parágrafo único do artigo 1.003 do Código Civil, vista sob a ótica de uma interpretação sistemática com as regras que condenam a fraude a credores e com as regras que tratam da prescrição, apontam no sentido de que existe a responsabilidade aos sócios, pelos atos praticados enquanto faziam parte do quadro societário da empresa, por um período de até 02 anos após seu desligamento.  Essa regra deve ser entendida no sentido de ser o sócio retirante responsável por todos os atos por ele praticados, e os praticados pelo cessionário em até dois anos após a sua retirada.  Se assim não for, o direito estaria privilegiando a fraude, pois absolveria todos os sócios retirantes por todas as dívidas e obrigações decorrentes de seus atos ilícitos, face ao mero decurso do prazo de dois anos da prática do ato, independentemente da existência ou não de ação judicial contra a sociedade ou contra ele próprio, o que é, manifestadamente, inconcebível.

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O exercício do direito de recesso pelo sócio, por óbvio, não deve colocar em risco os credores da sociedade, ou os próprios sócios que continuam integrando seu quadro societário, por atos jurídicos ocorridos no período anterior à sua retirada ou até em dois anos após essa saída da sociedade. Os artigos 1.003, 1.057 e mesmo o artigo 1.032 do Código Civil de 2002, consagram o princípio da segurança jurídica, abordando de forma satisfatória a matéria. Os aludidos dispositivos contemplam a responsabilidade do sócio, ou seus herdeiros, pelas obrigações sociais anteriores à data de sua retirada, exclusão ou morte, obrigação esta que subsistirá, por todos os atos jurídicos praticados no período, até 2 anos após a exclusão.  Como se observa, este dispositivo tem por objetivo evitar a utilização da pessoa jurídica como instrumento de fraude, conhecida no mercado pelo jargão de “alaranjamento” da sociedade. Ao estipular que a responsabilidade do sócio retirante para com as obrigações sociais poderá ser estendida às obrigações contraídas dentro do período de até dois anos após a data da retirada, pretendeu-se evitar surpresas para credores, como a alteração do quadro societário, para que terceiros desprovidos de condições financeiras sejam apresentados como “sucessores” dos sócios com os quais os credores contrataram ou sofreram suas ações danosas.

A interpretação da norma contida no parágrafo único ao artigo 1.003 do Código Civil não pode ser literal, mas de forma sistemática, principalmente tendo-se em vista o que dispõe o artigo 1.016 do mesmo Código Civil:

Art. 1.016. Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções.[11]

Nossa jurisprudência trabalhista é firme no sentido da interpretação sistemática do prazo prescricional previsto no artigo 1.033 do Código Civil, prestigiando o respeito ao direito dos credores que são prejudicados pela retirada de sócio de sociedade devedora. O critério por eles utilizado é o do período no qual o fato se deu. Se a despedida do empregado se deu ao tempo em que o sócio era administrador da sociedade, este será responsável, ilimitadamente, pela recomposição dos direitos do reclamante.

“O importante é que a relação contratual existente entre o reclamante e a empresa reclamada ocorreu em período no qual o agravante figurou como sócio. A sua responsabilidade patrimonial não deixou de existir em razão do ajuizamento da ação ter ocorrido após dois anos.

Ao contrário do que entendem os agravantes, o art. 1003 do Código Civil não limita a responsabilidade do sócio ao prazo de dois anos após a sua retirada da sociedade, não se tratando de prazo decadencial ou prescricional, até porque tal restrição contraria toda a sistemática estabelecida pelo Título IV do diploma legal citado, que criou diversos mecanismos para prestigiar o direito do credor.”

PROCESSO Nº TST-AIRR-1356-57.2011.5.15.0016

(8ª Turma)

Rel. MARIA LAURA FRANCO LIMA DE FARIA

Desembargadora Convocada Relatora

outro:

“Quanto aos sócios JOSÉ EDUARDO MACHADO BUENO e DANIEL JOSÉ DE CARVALHO, considerada a retirada do quadro societário ocorrida em 25.10.2006, não há que se falar em ausência de responsabilidade. Além do mais, durante a vigência do contrato de trabalho da obreira (19.4.2005 até 15.3.2006), os ex-sócios compunham o quadro societário da empresa executada, residindo aí a responsabilidade ilimitada quanto àqueles empregados que para eles laboraram enquanto figuraram no quadro societário.”

TST. 2ª. TurmaPROCESSO Nº TST-AIRR-379900-94.2006.5.02.0089

Rel.MARIA DAS GRAÇAS SILVANY DOURADO LARANJEIRA

Desembargadora Convocada Relatora

O que se observa nesses julgados é o cuidado de compatibilizar a regra da responsabilidade dos sócios de sociedades limitadas com a responsabilidade pelos atos ilícitos praticados na sua gerência. Ou, em outras palavras compatibilizar a regra do parágrafo único ao artigo 1.003 com a regra da responsabilização dos sócios gerentes pelos atos ilícitos ou abusivos cometidos no exercício da gerência da pessoa jurídica, como se vê do disposto no artigo 1.016 do mesmo Código Civil.

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Sobre o autor
Luiz Gonzaga Modesto de Paula

Professor de Direito Comercial na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo desde 1978. Mestrando em Direito Empresarial na PUC-SP Advogado em São Paulo

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PAULA, Luiz Gonzaga Modesto. A responsabilidade pessoal dos sócios pelas dívidas sociais e o artigo 1.003 do Código Civil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3590, 30 abr. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24309. Acesso em: 10 mai. 2024.

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