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Furto famélico: excludente de ilicitude por justificação (estado de necessidade) ou excludente da culpabilidade por inexigência de conduta diversa supralegal?

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09/05/2013 às 15:58
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3 Conceituação e constituição característica do crime, sua excludente e EXculpante no “furto famélico”

3.1 Conceito e constituição do crime

Maria Helena Diniz (1998), define crime como sendo a violação dolosa ou culposa da norma penal, por meio de ato (comissivo ou omissivo) imputável ao agente ou qualquer ação ou omissão que venha a causar dano, lesar ou expor à perigo um bem juridicamente protegido pela norma penal.

O legislador penal não conceituou crime, restando apenas o conceito jurídico. Muitos doutrinadores tentaram formular o conceito de crime. Formalmente o crime é toda conduta que venha a atacar frontalmente a lei penal editada pelo Estado. Já materialmente é a conduta que viole os bens jurídicos mais importantes.

Como estes conceitos não informam o preciso significado de crime, surgiu uma linha analítica em que o crime foi conceituado analisando-se as características que o compõem, obtendo a significação: fato típico, ilícito e culpável. Sendo estes três elementos, que presentes, converterão uma ação em crime ou infração penal.

Fato típico é aquele fato em que o comportamento (ação ou omissão) humano amolda-se perfeitamente aos elementos previstos na lei penal. Aquele que subtrair mercadorias em um supermercado, comete furto conforme descrito no código penal em seu art. 155. Se empregar violência física ou grave ameaça, responderá por roubo, art. 157 do código penal.

Percebe-se que os dois fatos correspondem a conduta descrita na lei penal, sendo definidos como fatos típicos. Não é suficiente que o fato seja típico para ser reprovado pelo ordenamento jurídico, deve também ser contrário ao Direito, sendo ilícito ou antijurídico e culpável.

Os elementos constitutivos do crime estão relacionados logicamente, de forma que cada elemento posterior pressupõe um anterior. Maneira pela qual, pode se depreender que não há crime, caso um dos citados elementos esteja ausente no fato que venha ocorrer.

Portanto, para que o fato típico não seja considerado crime, obrigatoriamente não poderá ser contrário ao direito (ilicitude) e ou o seu agente realizador, afastado de qualquer reprovação por sua conduta (inculpabilidade). Dito de outra forma, deverá ser atípico ou uma causa justificante ou excludente da ilicitude, e ou uma excludente de culpabilidade.

No caso em questão “furto famélico”, pelo estudo realizado percebeu-se que a doutrina e jurisprudência divergem em três posicionamentos, a saber:

  1. havendo caracterização, deixa de ser crime pela aplicação da justificante que afasta a ilicitude – estado de necessidade;

  2. deixa de ser crime quando o agente tem seu âmbito de determinação reduzido pela suas condições socioeconômicas. Aplica-se a inexigibilidade de conduta diversa supralegal.

  3. advoga com maior ênfase a restrição de sua caracterização. Pois, com a descriminalização dos ditos “crimes famélicos”, haveria uma insegurança grandiosa e até um aceite incentivador, por parte do Estado. Há muita gente em condições miseráveis, o que causaria uma grande desordem social.

3.2 Estado de Necessidade

O estado de necessidade é consagrado no Código Penal vigente, que optando pela teoria unitária, o classifica como excludente de ilicitude,

A menos que exista uma causa justificante ou excludente de ilicitude, todo fato típico também é antijurídico. A excludente de ilicitude afasta ou justifica determinada conduta humana - tipificada em lei penal e contrária ao direito – em função da ocorrência de alguma das excludentes descritas no art. 23 do código penal: estado de necessidade; legítima defesa; estrito cumprimento do dever legal ou ainda o exercício regular de direito diante de um fato penal, como por exemplo, “a morte dolosa de um homem realizada por outro, diz-se que há um fato típico. Surge a antijuridicidade se não agiu acobertado por uma excludente de ilicitude (ex.: legítima defesa).” (JESUS, 1998, p. 9).

Havendo a “presença de tais causas, o fato surge lícito (e não apenas justificado in concreto: pode ser justificado o que é injusto, e não o que é congenitamente justo)”. (Hungria, 1978, p. 267).

Continuand,o o renomado jurista afirma que “no estado de necessidade, não há crime, o que vale dizer: o fato necessitado é objetivamente lícito.” (Hungria, 1978, pág. 270).

O art. 24 do código penal brasileiro descreve:

Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

[...]

§ 2.º Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços.(SARAIVA, Vade Mecum, 2006, p. 541).

A doutrina prescreve que o perigo deve ser atual não podendo ser voluntariamente causado pelo agente do fato necessitado. Havendo de se ressaltar o caso fortuito e força maior. A inevitabilidade da lesão ao bem de outrem é outro requisito para o estado de necessidade. Quando a salvação de um bem apenas possa ser feita mediante o sacrifício de um outro, a lei autoriza o sacrifício de um deles. Estes bens em conflito, devem estar protegidos pela ordem jurídica, necessitando ainda realizar o que se denomina de “ponderação dos bens”, em que o bem sacrificado é de menor ou igual valor do bem defendido.

Seguindo este entendimento, “o perigo, isto é, a probabilidade que desencadeia a ação violentadora do bem jurídico alheio. Este perigo, que é assim, o requisito inicial da situação, deve ser atual, isto é, deve estar presente no momento da ação ou na iminência de produzir-se”. (Bruno, apud Greco, 2003, p. 360).

O bem maior prefere ao de menor valor e o “fato necessário deve ser praticado com o intuito de salvar o bem em perigo. Isto basta para satisfazer exigência do elemento subjetivo”. (Toledo, 2002, p.188).

Como norteador do estado de necessidade surge “o princípio da ponderação dos bens. Vários bens em confronto são colocados nessa balança, a exemplo da vida e do patrimônio.” (Greco, 2003, p. 356-357).

Figurativamente Zaffaroni e Pierangeli, exemplificam que seria como se o ordenamento jurídico colocasse os bens em conflito, cada qual em um dos pratos de uma balança. Mesmo ambos estando protegidos pelo ordenamento penal, um deles preferirá ao outro. O estado de necessidade não pode ser alegado por quem o provoque, já que a conduta tipificada que provoca a necessidade não pode fazer com que se torne atípica pela necessidade que ela mesma cria.

A teoria unitária engloba tanto o estado de necessidade justificante, como o eximente da culpabilidade:

o estado de necessidade é justificante quando o mal que se causa é menor do que aquele que se evita. Nos demais casos, em que o estado de necessidade também elimina a responsabilidade penal, de acordo com a fórmula do art. 24 CP, a razão eximente será a inculpabilidade (estado de necessidade exculpante). (Zaffaroni e Pierangeli, 1999, p. 591).

Ainda por essa teoria “todo estado de necessidade é justificante, isto é, afasta a ilicitude da conduta típica levada a efeito pelo agente.” (Greco, 2003, p. 463).

O parágrafo único do art. 23 do Código penal brasileiro sentencia que o agente responderá pelo excesso doloso.

No estado de necessidade, analisando um caso concreto, teremos de aferir a razoabilidade da manutenção de um dos bens em confronto, aquele que se protege, em prejuízo daquele outro bem que se ofende.

Um exemplo interessante que Rogério Greco (2003) expõe, é que supondo que alguém, desempregado, depois de enfadonhamente procurar por emprego ou trabalho honesto, chegando em casa perceba que na dispensa não existem mais alimentos, e suplicando auxilio não o consiga, ao ver sua prole e sua consorte implorando por algo que possam comer, se desespera e indo à um mercado nas redondezas de sua casa, subtraia um saco de feijão. No caso em evidência, tem-se dois bens em conflito: de um lado a sobrevivência, e de outro o patrimônio alheio. No exemplo dado, poderia o agente argüir a causa de justificação.

Entendimento contrário ao raciocínio acima foi manifestado pelo extinto TACrim. – SP, que já decidiu, tendo como relator o juiz Hélio de Freitas: “A miserabilidade do agente do furto não constitui causa excludente da criminalidade, caso contrário, ter-se-ia uma legião de miseráveis praticando furto impunimente, com grave repercussão na ordem pública. (Greco, 2003, p. 374).

Em continuidade Greco assevera que os tribunais não estão totalmente convencidos da miserabilidade e fome que a população mais carente passa, e ignorando o infortúnio fático da realidade e desejando manter a ordem às custas da população mais fraca e amplamente desprezada pelos políticos e juristas que exaram sentenças conflitantes:

Estado de necessidade. Balanceados os interesses contrastantes entre a ordem social e as dificuldades financeiras do agente, reconhece-se o seu estado jurídico de necessidade, se pratica a contravenção do jogo de bicho para sobreviver (ACM 312.953 – Rel. Edmeu Carmesini).

Jogo de bicho – Alegado estado de necessidade. A alegação consistente em ter o agente agido em estado de necessidade não encontra amparo no Direito, posto não ser essa justificativa compatível com as infrações de caráter permanente (TACrim. SP, Ac. – Rel. Jacobina Rabello). (2003, p. 375).

Miguel Sales (1998) relatando sobre o lado sensível da jurisprudência, afirma que há muito se entende que não ocorre crime no caso de furto ou roubo, em qualquer de suas hipóteses, se um ou outro der-se em situação famélica, ou seja, evitando-se a praga da fome própria ou de terceiro. Manifesta ainda, que o art. 135 do código penal tipifica como crime a omissão de socorro, não havendo desamparo maior que a morte por desnutrição, principalmente quando advinda de alguma irresponsabilidade do poder público.

No caso de necessidade oriunda de ação culposa do próprio agente que a sofre, a doutrina dá tratamento diverso, possibilitando a argüição da excludente de ilicitude em questão.

3.3 Excludente de culpabilidade (Inexigibilidade de conduta diversa supralegal)

A culpabilidade é a responsabilidade pessoal por um fato típico e antijurídico atribuída ao agente, ou seja, a responsabilidade pelo injusto imputada a seu autor, sendo a imputabilidade a capacidade de autodeterminar-se com o entendimento ético-jurídico, referido ao homem médio.

Nesse sentido a “Culpabilidade é o juízo de reprovação pessoal que se realiza sobre a conduta típica e ilícita praticada pelo agente.” (Greco, 2003, p. 422).

Nos dizeres de Nelson Hungria (1978), pode acontecer que mesmo sendo o agente, o causador do resultado tido como crime, pode ocorrer que sua culpabilidade seja excluída por uma das excludentes de culpabilidade a saber: erro escusável de fato (eliminativo da consciência de antijuridicidade ou mesmo a possibilidade de tal consciência), obediência hierárquica e a coação irresistível em que haveria ausência de vontade livre.

Para que uma conduta seja reprovável a seu autor é essencial que tenha existido a possibilidade exigível de compreender a antijuridicidade de sua conduta e ter atuado em um âmbito de autodeterminação mais ou menos amplo.

Como sustentado por alguns doutrinadores como Zaffaroni e Pierangeli, a culpabilidade é um conceito eminentemente graduável, admitindo níveis diferentes de reprovabilidade.

Quando os limites da autodeterminação se encontram tão reduzidos que só resta a possibilidade física, mas o nível de auto determinação é tão baixo que não permite a sua revelação para os efeitos da exigibilidade desta possibilidade, estaremos diante de uma hipótese de inculpabilidade. A inexigibilidade não é - como pretendeu a teoria complexa da culpabilidade – uma causa de inculpabilidade, e sim a essência de todas as causas de inculpabilidade. Sempre que não há culpabilidade, é porque não há exigibilidade, seja qual for a causa que a exclua. (Zaffaroni e Pierangeli, 1999, pág. 606).

Zaffaroni e Pierangeli, em continuidade, prelecionam que a culpabilidade somente pode ser edificada sobre a base antropológica da autodeterminação como capacidade do homem. Quando se suprime esta base, desaparece a culpabilidade[...]” (1999, p. 607)

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Fontes (2004) manifesta que “o não cumprimento da norma jurídica em circunstâncias anormais, quando não é possível realizar um comportamento diferente, por via de conseqüência faz desaparecer a culpabilidade.”

Um caso a ser analisado:

Suponhamos que temos dois indivíduos, aos quais chamaremos de A e B. A é um indivíduo socialmente incluído e possui todas as condições favoráveis para ser um "bom" cidadão. B, ao contrario, vive em péssimas condições sociais, ou melhor, numa total miséria. Ambos têm dois caminhos a seguir: o da licitude ou o da ilicitude. Ocorre que no caso de A, os dois caminhos possuem a mesma distância, ou seja, estão totalmente equilibrados. Já no caso de B, o caminho da ilicitude é mais curto, já que a todo o momento ele e empurrado para o crime: logo. o poder de escolha é mais restrito, ou seja, para B é muito mais difícil seguir o caminho da licitude, pois há uma força" que o empurra para o outro lado - o caminho do crime. (TOLEDO, 2002, p244).

O código de 1940, ainda vigente, assumiu e ainda se mantém no posicionamento de que a culpabilidade é o juízo de reprovação do injusto ao seu autor, ou seja, reprova-se a conduta típica e ilícita praticada pelo agente. Conforme Greco, citando Welzel, a “culpabilidade é a reprovabilidade da configuração da vontade. Toda culpabilidade é, segundo isso “culpabilidade de vontade”. Somente aquilo a respeito do qual o homem pode algo voluntariamente, lhe pode ser reprovado como culpabilidade”. (2003, p. 422).

Tratando do determinismo, Moniz Sodré citado por Aragão, diz que segundo a corrente determinista, admitir-se a existência de uma vontade livre, é contrapor-se à influência que educação, o meio social e físico exercem nas pessoas. Não tendo como fugir do dilema: ou a herança genética, o meio social e físico, juntamente com a educação influem grandiosamente no comportamento dos indivíduos, formando-lhes o temperamento, de forma a poder afirmar que a vontade não é livre, mas determinada por motivos de ordem biológica, física e social; ou a vontade é livre, sendo exercida fora das influencias dos fatores mencionados, podendo-se concluir, que é mera ilusão dos cientistas afirmar a influência de tais fatores. (Greco, 2003, p. 424).

Acerca do tema “culpabilidade, todos os fatos, internos e externos devem ser considerados a fim de apurar se o agente, nas condições em que se encontrava, podia agir de outro modo.” (Greco, 2003, pág. 425)

Greco afirma ainda, que o conceito de exigibilidade de conduta diversa é a possibilidade que tinha o agente de no momento da ação ou omissão, agir em conformidade com o direito, tendo em conta sua condição de pessoa humana. E que tal possibilidade ou impossibilidade de agir em consonância com o direito, sofre graduação de pessoa para pessoa, sendo impossível a concepção de um padrão para a culpabilidade. Como as pessoas são diferentes uma das outras, por vários modos, como por exemplo, inteligência e miserabilidade, esses fatores deverão ser analisados para verificação de exigibilidade de outra conduta como critério para exclusão da culpabilidade, isto é, sobre o juízo de censura, de reprovabilidade da conduta típica e ilícita do agente.

A legislação penal brasileira, ao contrário da legislação alemã, não proíbe a utilização do argumento da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade.

Neste ínterim:

a possibilidade de alegação de uma causa supralegal, em algumas situações, como deixou entender Johannes Wessels, pode evitar que ocorram injustiças gritantes”.

O ex-Ministro do STJ, Assis Toledo, abraçando a tese sobre a possibilidade de alegação da inexigibilidade de conduta diversa como causa supralegal de exclusão da culpabilidade na qualidade de relator do Resp. n. 2.492, julgado em 23.05.90, publicado no DJU em 06.08.90, assim decidiu: “inexigibilidade de outra conduta. Causa legal e supralegal de exclusão de culpabilidade cuja admissibilidade no direito brasileiro já não pode ser negada”. (Greco, 2003, pág. 467).

Hoje ainda “não se deve duvidar que a culpabilidade é o capítulo em que a doutrina contemporânea demonstra maior desequilíbrio, acredita fazer grandes descobertas e, emfim (sic), resolve antigos argumentos em meio a intensa desorientação ética e antropológica”. (Zaffaroni, 2001, p.262)

O sistema de culpabilidade vigente em nosso direito (da exigibilidade de conduta diversa) é ilegítimo, trazendo em sua ideologia, a defesa de uma postura moral e a exigência de condutas homogêneas para grupos sociais extremamente heterogêneos, com o claro objetivo de impor valores éticos e morais de um grupo dominante sobre as demais camadas sociais, através de um arcaico Direito Penal do autor do fato e não do fato praticado pelo autor.

Nos dizeres de Moura:

o princípio da culpabilidade exerce seis funções no nosso Direito Penal, a saber:

a) elemento do conceito analítico de crime – crime é fato típico, antijurídico e culpável;

b) fundamento da pena - não basta que o fato seja típico e antijurídico, é preciso que haja culpabilidade – juízo de valor que reprova socialmente o injusto;

c) limite e medida da pena – ou seja, o agente só pode ser punido na medida de sua culpabilidade. Vê-se aqui a sua ligação com o princípio da suficiência e da necessidade antes exposto – ver arts.29 e 59 do Código Penal;

d) atua na aplicação da pena, ou seja, a culpabilidade também é utilizada como circunstância judicial na fixação da pena-base pelo magistrado, na forma do art.59 do Código Penal;

e) veda a responsabilidade objetiva do cidadão – com a transposição do dolo e da culpa para o tipo penal, não há o cometimento de fato típico sem culpa em sentido amplo;

f) veda a culpabilidade de autor e consagra a culpabilidade de fato – o agente responderá pelo fato que efetivamente cometeu e não pela pessoa que ele é (conduta de vida, aspectos morais etc.). Daí a não intervenção penal em casos como os antigos crimes de bruxaria, heresia, prostituição, punidos outrora.

(MOURA, 2006, p. 29).

Ao se tratar da culpabilidade percebe-se a existência direta de associação desta, com o âmbito de autodeterminação do indivíduo. Neste entendimento, surgiu uma teoria que conforme Serrano (2006), denominada de teoria ou princípio da “co-culpabilidade” que aponta a co-responsabilidade da sociedade pelo papel omisso que o estado realiza diuturnamente no cumprimento dos direitos estatuídos em seu diploma maior.

3.3.1 A teoria da co-culpabilidade

Toda ação humana é realizada sobre certas circunstâncias e com um âmbito de autodeterminação variável em consonância com as condições em que se encontra a pessoa. Outro ponto também importante é a personalidade do próprio indivíduo que trás sua contribuição para esse âmbito de autodeterminação.

A sociedade não favorece a todos com as mesmas condições e possibilidades, tendo como conseqüência, pessoas que têm diminuído seu âmbito de autodeterminação em função das causas sociais que condicionam, na maior parte das vezes, suas condutas. Seria possível atribuir tais causas sociais ao sujeito sobrepujando-o no momento da reprovação de sua culpabilidade?

Visando promover menor reprovabilidade do agente de “crime”, em função de se encontrar como hipossufiente, abandonado pelo Estado, a co-culpabilidade surge como a “meia culpa” da sociedade, fundando-se implicitamente nos princípios constitucionais.

Zaffaroni e Pierangeli (1999) informam, que se tem defendido o conceito de co-culpabilidade como sendo originário de uma idéia introduzida pelo direito penal socialista. Afirmando crerem que a co-culpabilidade seja herdeira do pensamento de Marat, faria parte da ordem jurídica de todo Estado social de direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, tendo cabimento no código penal mediante a disposição genérica no art. 66.

Aqueles autores descrevem mais sobre Marat e sua teoria:

Jean Paul Marat (1743-1793), o revolucionário francês, era médico e não jurista, mas em 1799, na suíça, apresentou em um concurso um “plano de legislação criminal”, no qual é desenvolvida uma crítica socialista e revolucionária ao pensamento talional kantiano. Por essa razão, não agradou aos jurados, que deram o prêmio a outro candidato. Marat começa afirmando que a pena mais justa é a talional, mas observa que isto só assim seria na medida em que a sociedade fosse justa.

Com efeito: admite a tese contratualista, como não podia ser de outro modo em seu tempo, afirmando que os homens se reuniram em sociedade para garantirem seus direitos. Mas a primitiva igualdade foi rompida através da violência que exerceram uns sobre os outros, submetendo uns aos outros, despojando-os da parte que lhes correspondia. Através das gerações, a falta de qualquer freio ao aumento das fortunas foi o que fez com que uns enriquecessem à custa dos outros e que um pequeno número de famílias acumulasse a riqueza, enquanto uma enorme massa foi caindo na indigência, vivendo numa terra ocupada pelos outros e sem ter acesso a um quinhão. Perguntava-se, se em tal situação, os indivíduos que não obtêm da sociedade mais do que desvantagens estão obrigados a respeitas as leis, e responde categoricamente que não. “Não, sem dúvida. Se a sociedade os abandona, retornam ao estado de natureza e recobram pela força os direitos que somente alienaram para obter vantagens maiores, toda autoridade que se lhes oponha será tirânica e o juiz que os condene à morte não será mais que um simples assassino”.

Desenvolvendo seus princípios, Marat afirmava que o único título de propriedade justo era o do agricultor e negava todos os outros sobre o fundamento de que nada supérfluo pode pertencer legitimamente a alguém enquanto a outro falte o necessário.

Embora a obra de Marat não seja jurídica nem muito filosófica, o certo é que constitui a denúncia da falácia do retribucionismo talional. É a resposta revolucionária ao pensamento ilustrado da pena talional, sem abandonar-se o esquema contratualista.

Ademais, as teses de Marat eram parecidas às dos teóricos da época (penas fixas etc.), só que seu sistema denunciava a falácia das construções iluministas, quanto à pretensão de que a pena justa fosse a retributiva, em uma sociedade sem justiça distributiva”. (Zaffaroni e Pierangeli, 1999, p.268-269).

No mesmo sentido, Moura afirma se confundir a história da co-culpabilidade com o surgimento do Estado liberal fundado nas idéias iluministas. O advento do Estado liberal e seu contratualismo viu surgir a co-responsabilidade Estatal em algumas ações delituosas, pela quebra do contrato social por tais delitos. No entanto, o Estado por deixar de propiciar aos seus cidadãos o mínimo necessário à sobrevivência, segurança e condição de desenvolvimento humano, também quebra o contrato social. Concluindo ainda, que “a co-culpabilidade, é o reconhecimento jurídico, social e político da quebra do contrato social por parte do Estado, devendo, desta feita, assumir essa “inadimplência” reconhecendo a co-culpabilidade.” (MOURA, 2006, p. 43-44).

Merton, em uma readaptação da teoria da anomia, denominou-a como a tensão surgida do acesso aos fins propostos pela sociedade. Dito de outra forma, seria a relação entre os objetivos culturais e os meios institucionalizados que a mesma disponibiliza, para que seus cidadãos atinjam esses fins. E ao contrário do que o discurso oficial prega, as normas institucionais não permitem que todos atinjam os fins objetivados, ficando as classes sociais mais baixas em exposição maior a tensão anômica.

[...] sabemos por muitas fontes que as estatísticas oficiais a respeito dos crimes mostram uniformemente proporções maiores nos estratos inferiores, e que elas não são dignas de confiança, resulta da nossa análise que as maiores pressões para o comportamento transviado são exercidas sobre as camadas inferiores. Casos que podemos apontar nos permitem descobrir os mecanismos sociológicos responsáveis por essas pressões. Diversas pesquisas têm mostrado que áreas especializadas de vícios e crimes constituem uma reação 'normal' contra uma situação em que a ênfase cultural sobre o sucesso pecuniário tem sido assimilada, mas onde há pouco acesso aos meios convencionais e legítimos para que uma pessoa seja bem-sucedida. [...] É a falta de entrosamento entre os alvos propostos pelo ambiente cultural e as possibilidades oferecidas pela cultura social que produz intensa pressão para o desvio de comportamento. O recurso a canais legítimos para 'entrar no dinheiro' é limitado por uma estrutura de classe a qual não é inteiramente acessível em todos os níveis a homens de boa capacidade. Apesar de nossa persistente ideologia de 'oportunidades iguais para todos', o caminho para o êxito é relativamente fechado e notavelmente difícil para os que têm pouca instrução formal e parcos recursos. A pressão dominante conduz à atenuação de utilização das vias legais, mas ineficientes, e ao crescente uso dos expedientes ilegítimos, porém mais ou menos eficientes. (MERTON, apud MOURA, p. 52).

A pobreza não é elemento isolado que gera a anomia, devendo ter-se em conta outros elementos como a desigualdade cultural, a desigualdade de informação, a exclusão ao consumo etc. que também são importantíssimos, devendo ser considerados na verificação da co-culpabilidade na aplicação da pena.

Moura alega que no sentido proposto por Merton, a co-culpabilidade seria um tentativa de reconhecer e amenizar a pressão maior que surge sobre as classes sociais mais desfavorecidas. A exclusão social gera a conseqüente exclusão do conhecimento do direito. E se o Estado não propicia aos cidadãos o mínimo de conhecimento, bem como os direitos fundamentais, o que seria o básico, como a alimentação, o saneamento básico, a habitação, a educação, a saúde, dentre outros, com maior razão não levará o conhecimento das normas jurídicas. Expondo-se aqui norma jurídicas, por serem inseridas por Merton como meios institucionais, sendo que o Estado não leva ao conhecimento dos cidadão excluídos os meios institucionais objetivando a manutenção dos padrões preestabelecidos pela classe dominante. (2006, p. 54).

Constituindo-se em Estado Democrático de Direito, o Brasil consagra em sua Constituição Federal a igualdade de todos perante a lei. A doutrina, porém denominou tal igualdade, como formal, apontando para insuficiência de se considerar este postulado, vez que para se falar em igualdade pressupõe-se a constatação das diferenças. Dar tratamento igual ao que efetivamente é diverso, é na verdade, tratar de forma diferente.

Deve-se buscar a igualdade material, para haver coerência e justiça no discurso que se refere à isonomia. Uma sociedade que não proporciona as mesmas oportunidades sociais aos seus cidadãos - para não dizer os direitos mínimos de vida digna - é de saber que por mais que seja ignorado o contexto em que a maioria da população vive, esse contingente se conduzirá influenciado por sua realidade.

É notório, como menciona Moreira (2005) que o delito seja um produto do indivíduo em seu contexto social, em que recebe orientação do quadro de valores sob os quais atua. Deve-se, portanto, tomar o sujeito em toda sua dimensão, a individual e a contextualizada socialmente. Se a pessoa fora privada das mínimas condições de dignidade, fica prejudicada em sua motivação, o que influenciará seu juízo de reprovação individual, que se mostrará reduzido.

As políticas adotadas pelo Estado, bem como a criação, interpretação e aplicação da legislação jurídico-penal, refletem diretamente a carga valorativa e as influências da visão ideológica que a sociedade dá ao crime, que é um fenômeno social por excelência.

Deve ser quebrado o paradigma do direito penal seletivo, marginalizador e excludente, que demonstra ser imbuído de anomalias, já que não consegue solucionar os problemas atuais da sociedade.

Principalmente nos países ditos capitalistas, onde a desigualdade sócio-econômica favorece a classe de médio-grande poder econômico, o direito se revela produto dessa classe ao longo dos anos. E o direito penal ainda refletindo a ideologia desta classe dominante, seleciona, marginaliza e exclui socialmente os menos abastados financeiramente, tornando-os alvo primordial das normas penais, o que gera ainda maior exclusão.

Ainda nesse sentido:

[...] o direito penal corre sempre o risco de se tornar um instrumento de dominação e repressão, ou seja, em se admitindo situações repressivas e injustas aplicadas em âmbito individual e social e instrumentos de repercussão ou aplicação à sociedade em nível internacional. No momento em que o direito penal deixa de ser um elemento necessário de controle social para o estabelecimento da ordem interna e para possibilitar a auto-realização do homem e passa a ser um franco instrumento de dominação, sempre será difícil de se estabelecer. Sem dúvida a co-culpabilidade é uma arma bastante efetiva contra esse risco. Na medida em que reconhecemos as desigualdades internas e descarreguemos do homem a culpabilidade que não lhe corresponde e a colocarmos a cargo da sociedade, este direito penal não poderá ser um instrumento de dominação. Assim, poderia se dizer que do respeito e reconhecimento deste princípio praticamente dependerá cada dia mais, a existência de um direito penal liberal no mundo. Seu não reconhecimento fará que sua força perca o caráter jurídico reduzindo-se à mero exercício de poder. (ZAFFARONI, apud MOURA, p.70 [traduzimos]).

3.3.2 Terminologia

O termo co-culpabilidade, que muito é utilizado pela doutrina penal estrangeira e em menor proporção pela nacional, deve ser entendido como sinônimo de culpabilidade pela vulnerabilidade. Significando ainda, que o Estado deve proporcionar aos acusados - que se encontrem na situação de hipossuficiência - menor reprovabilidade, desde que a conduta tenha sido influenciada pela situação, causada pelo próprio Estado, devido sua inadimplência no cumprimento dos direitos de seus cidadãos, principalmente os relativos à inclusão socioeconômica.

A palavra co-culpabilidade não é utilizada em seu sentido técnico-jurídico, mas, como forma de responsabilização indireta do Estado, dada sua omissão no cumprimento de seus deveres constitucionais, gerando conseqüências na cominação, aplicação e execução da pena.

Seria apenas o reconhecimento da inoperância Estatal, no cumprimento de seus deveres, gerando assim uma menor reprovação social ao acusado. Nada tendo haver com a responsabilização penal do Estado.

O Estado não é possuidor dos principais elementos caracterizadores da formação de um delito. Não possui vontade, consciência e discernimento, dentre outras coisas que caracterizam o sujeito ativo do delito. É impossível que o Estado cometa crime, vez que é detentor do direito de punir.

Nos dizeres de Cezar Roberto Bitencourt:

A conduta (ação ou omissão), pedra angular da Teoria do Crime, é produto exclusivo do homem. A capacidade de ação, de culpabilidade, exige a presença de uma vontade, entendida como faculdade psíquica da pessoa individual, que somente o ser humano pode ter [...] Mutatis mutandis este é o mesmo argumento utilizado por aqueles que são contra a responsabilidade penal da pessoa jurídica. Dizemos Isso por que seria de uma incongruência tremenda o Estado ser sujeito ativo do crime, já que sempre é sujeito passivo do mesmo, sob o aspecto formal. (BITENCOURT, 2004, p. 163).

Continuando, leciona que o Estado no aspecto formal, sempre será sujeito passivo de crime (sujeito mediato). Já no aspecto material, o sujeito passivo – imediato - é o titular do bem ou interesse lesado.

Moura (2006) diz que mesmo não sendo o termo ideal para expressar menor reprovação social do indivíduo em virtude de suas condições socioeconômicas, provocadas pela inadimplência Estatal, a co-culpabilidade é o mais utilizado na doutrina, mesmo não aparecendo com essa denominação nos diversos códigos penais que a consagram.

Assim, por apego à tradição ao uso do termo co-culpabilidade, faz-se sua utilização.

3.3.3 Aplicação às avessas da co-culpabilidade

Historicamente a co-culpabilidade era aplicada em favor das classes dominantes, quando se utilizava o critério das chamadas "condições sociais" na aplicação das penas. Tal critério tinha como objetivo aplicar penas mais brandas aos detentores de melhores condições sociais, deixando as penas de multa para os abastados e as penas de prisão e corporais para as pessoas de classe baixa.

Segundo Moura (2006), na legislação, a co-culpabilidade às avessas pode ser manifestada de três formas: uma seria a tipificação de condutas direcionadas às pessoas marginalizadas; outra a aplicação de penas mais brandas para aqueles crimes praticados por pessoas inseridas socialmente, contra o sistema financeiro, tributário etc. bem como os crimes de colarinho branco; a terceira manifestação, descreve um fator de diminuição e também aumento de reprovação sócial e penal.

A reparação do dano no Brasil, em relação aos ditos crimes comuns, é mera causa atenuante, enquanto nos crimes tributários é causa de extinção de punibilidade. Exemplo disso pode ser apreciado no artigo 168-A, § 2º do código penal

A co-responsabilidade estatal no cometimento de determinados delitos varia de acordo com as condições socioeconômicas e culturais do agente (inclusão social em sentido amplo). Quanto menor esta (inclusão social) maior aquela (co-responsabilidade estatal). Tomando por base o outro lado da moeda, teríamos: quanto melhor as condições socioeconômicas e culturais do agente, menor a co-responsabilidade do estado; logo, maior a reprovação social. (MOURA, 2006, p. 43).

3.3.4 O princípio da co-culpabilidade e a constituição de 1988

Ante o exposto anteriormente, as idéias iluministas se concretizam em fraternidade, igualdade, humanidade e justiça.

Implicitamente a Constituição Federal de 1988, tráz as idéias defendidas pela co-culpabilidade, ao tratar da igualdade, da dignidade humana, ao individualizar a pena etc.

Mesmo não estando expressamente prevista na legislação penal brasileira, existe atualmente uma maior sensibilidade por parte da doutrina que defende sua positivação. Não obstante, a jurisprudência – principalmente do Rio Grande do Sul - manifesta-se, ainda que com certa “timidez”, considerando a co-culpabilidade.

Como exemplo temos:

Roubo Concurso - Corrupção de menores - Co-culpabilidade. Se a grave ameaça emerge unicamente em razão da superioridade numérica de agentes, não se sustenta a majorante do concurso, pena de bis in idem - Inepta é a inicial do delito de corrupção de menores (Lei n° 2.252/54) que não descreve o antecedente (menores não corrompidos) e o consequente (efetiva corrupção pela pratica de delito), amparado em dados seguros coletados na fase inquisitorial. O princípio da co-culpabilidade faz a sociedade também responder pelas possibilidades sonegadas ao cidadão - Réu. Recurso improvido, com louvor a juíza sentenciante. (16 fls.).

(Apelação Crime n° 70002250371. Quinta vamara criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Amilton Bueno de Carvalho, julgado em 21/3/2001). Apelação-crime n0 70002250371. (MOURA, 2006, p. 90).

Embargos infringentes Tentativa de estupro. Fixação da pena. Agente que vive de biscates, solteiro, com dificuldades para satisfazer a concupiscência altamente vulnerável à prática de delitos ocasionas. Maior a vulnerabilidade social, menor a culpabilidade. Teoria da co-culpabilidade (Zafraroni). Prevalência do voto vencido, na fixação da pena-base mínima. Regime carcerário inicial. Embargos acolhidos por maioria.

(Embargos infringentes nº 70000792358, Quarto Grupo de Câmaras Criminais, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Tupinambá Pinto de Azevedo. julgado em 28/4/2000).

Esses julgados demonstram a coragem e a perspicácia dos julgadores, atentos aos aspectos econômico-sociais que nos cercam, ao indicarem a necessidade de positivação da co-culpabilidade para alcançar uma grande evolução no Direito Penal brasileiro. (MOURA, 2006, p. 91).

Fica claramente evidenciada a correlação entre a culpabilidade e “co-culpabilidade” vez que ambas tratam das influências internas e externas sofridas pelo indivíduo pelo meio em que se encontra inserido. A especificidade da co-culpabilidade se encontra apenas no fato de exigir do Estado mudanças legislativas, principalmente em alguns delitos em que sua omissão é fator relevante na contribuição de certas ações viciadas por circunstâncias determinadas.

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Sobre o autor
Leonardo Dias da Cunha

Professor da Especialização em Direito Tributário da PUC Minas, Mestre em Direito Tributário pela PUCMINAS, Especialista em Direito Tributário pela FGV. Advogado tributarista em Belo Horizonte, Minas Gerais, do Escritório Coutinho Lacerda Rocha Diniz & Advogados Associados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, Leonardo Dias. Furto famélico: excludente de ilicitude por justificação (estado de necessidade) ou excludente da culpabilidade por inexigência de conduta diversa supralegal?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3599, 9 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24330. Acesso em: 19 abr. 2024.

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