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Exigência do comum acordo para a propositura do dissídio coletivo: inconstitucionalidade principiológica

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07/05/2013 às 14:52
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5 REFORMA DO PODER JUDICIÁRIO

Globalização, comunicação em massa, avanços tecnológicos e velocidade antes inimaginável dos meios de transportes são apenas algumas das características da atual sociedade. As mudanças ocorrem tão rapidamente que as pessoas acabam por não percebê-las ou por considerar grandes feitos como coisas normais, quotidianas. Nesse contexto, o mundo impôs, e vem diariamente impondo, uma nova dinâmica às relações sociais, que se tornaram por deveras intensas.

Uma das grandes discussões do presente envolve a temática da urgente necessidade de reformas do Estado. Sim, pois ele, seja pelos burocráticos procedimentos e meios de administração, pela inoperância e lentidão do legislativo ou pela desatualização das normas que balizam a atividade do judiciário, está longe de atender adequadamente às necessidades sociais.

Observou-se, historicamente, que a esperança e a confiança do povo costumaram residir no Judiciário, o qual ainda continua sendo considerado uma viga mestra para a manutenção da democracia. As pessoas vêem nesse poder uma espécie de garantia de respeito aos seus direitos, de uma convivência pacífica e de concretização da justiça. Logo, uma reforma no Estado tem de focar alterações no Judiciário.

A maioria das normas e dos códigos hoje vigentes foi elaborada em um contexto social, tecnológico e mercadológico totalmente diferente dos atuais padrões. Por conseguinte, o sistema jurídico não se mostra apto a disciplinar, atender e solucionar as modernas questões, o que faz crescer a certeza de que o ordenamento encontra-se ultrapassado, arcaico. Nesse contexto, tornam-se cada vez mais frequentes os casos polêmicos, situações para as quais não há previsão legal, ficando os juízes inseguros sobre como solucionar as lides, o que gera, por muitas vezes, sentenças totalmente contrárias sobre um mesmo problema. Afirma Ismael Marinho Falcão:

“Temos que reconhecer, forçosamente, que a falência do sistema que compõe o aparato governamental do Estado, na estrutura da tripartição do poder em funções, os chamados estamentos, já não atende mais aos anseios sociais, porque se trata de uma estrutura arcaica e carcomida, fundada num modelo concebido no Século XVIII, para realidades diametralmente diversas das que temos nos dias presentes. Ali, convém lembrar, uma parcela muito pequena da população era sujeito de direito, enquanto hoje, de modo diferente, todos quantos nascem e vivem sobre o globo terrestre, seja de que cor for e a que gradação social pertença, é sujeito de direitos e pode exercitá-los”[80].

Não mais poderia continuar passando despercebida a imobilização do Judiciário, que há muito se manteve engessado nos moldes antigos e já ultrapassados, assentado em fórmulas não mais condizentes com a realidade do mundo moderno. Consequentemente, o inegável descompasso vem norteando mini-reformas da legislação processual ordinária, como uma espécie de paliativo, e também a proposta de reforma do Poder Judiciário, que tem como principal fonte de inspiração a morosidade, aparentemente o maior problema a ser combatido[81].

Dentre as causas da lentidão, aponta-se como a mais evidente o excessivo número de demandas. Esse fator, associado à própria estrutura do Judiciário (carente de aparelhamento em nível administrativo), à desproporção entre o número de juízes e a quantidade de causas, além do evidente despreparo dos operadores do direito, contribui para a intolerante demora das soluções judiciais.

A celeridade é de transcendental importância para a concretização da justiça. Neste diapasão, a reforma do Poder Judiciário visava extirpar, ou, ao menos, reduzir as causas que obstavam o andamento regular dos processos, a fim de torná-lo mais efetivo e eficaz, dando aos cidadãos a resolução para seus conflitos de interesse de modo breve, sem, contudo, prejudicar a qualidade das decisões.

Variados foram os meios de solução para os problemas encontrados pela reforma, a exemplo do controle e fiscalização do Poder Judiciário, da criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público, do efeito vinculante das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade, etc. Dentre eles, vale destacar a ampliação da competência constitucionalmente conferida à Justiça Laboral e a modificação de institutos que lhes eram próprios, objetivando adaptar esta especializada à nova realidade emergente das relações sociais e internacionais, que repercutem nas relações trabalhistas.

Em suma, a “grande reforma do Judiciário” envolvia, principalmente, alterações legislativas aptas a efetivamente contribuir para que a Justiça, como instituição, conseguisse granjear o prestígio e a força social indispensáveis em uma democracia[82]. Paralelamente, buscou-se preparar a legislação pátria para uma futura intervenção internacional nas protecionistas normas trabalhistas, adaptando-as ao quanto recomendado pela Organização Internacional do Trabalho.

5.1 AMPLIAÇÃO DA COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA LABORAL

Em 2004, depois de demorados e numerosos anos de tramitação, foi aprovada, pelo Congresso Nacional, a reforma do Poder Judiciário através da Emenda Constitucional nº. 45. Ela objetivou, principalmente, promover o alcance de maior celeridade na justiça. Para tanto, veio repleta de eficazes provimentos, aptos a efetivamente atender os numerosos conflitos de interesses diariamente postos aos magistrados, bem como de dispositivos legais balizados por tal escopo.

Destaque-se que a mencionada reforma conferiu maior proeminência à Justiça do Trabalho. As alterações foram intensas e profundas, possuindo, inclusive, o condão de alterar a visão que se possa ter dessa Justiça Especializada. A dita Emenda gerou inúmeras repercussões na seara laboral, dadas a modificações por ela promovidas no artigo 114 da Constituição Federal de 1988.

 Antes da modificação, o texto constitucional, no inciso I do citado artigo, atribuía à Justiça do Trabalho competência para julgar os dissídios individuais e coletivos decorrentes da relação de emprego e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho. Perceba-se que, basicamente, somente poderiam ser resolvidos pelos juízes trabalhistas conflitos entre trabalhadores e empregadores, desde que configurada a relação de emprego com todos os seus requisitos essenciais, cuja análise ultrapassa o objeto desse trabalho. Isso porque a competência para tratar das relações de trabalho dependia de lei específica, a exemplo do que ocorria com os dissídios resultantes de pequena empreitada, em que o empreiteiro fosse operário ou artífice (inciso III, alínea a, do art. 652 da CLT). Em relações às demais, a incompetência era latente.

No inciso I, art. 114 da CF/88, houve a substituição da expressão “relação de emprego” pela expressão “relação de trabalho”. Aparentemente, apenas foi feita a troca de uma palavra por outra que, inclusive, é considerada sinônima pelos leigos em direito. Entretanto, tal alteração causou enorme repercussão na Justiça do Trabalho, pois ampliou veementemente a sua competência. Essa Especializada recebeu, então, numerosas ações que tramitavam nas Justiças Comum e Federal, quais sejam, aquelas quem envolviam relações que não possuíam os requisitos da onerosidade, não eventualidade, subordinação e pessoalidade, caracterizadores da relação de emprego. Assim, os magistrados trabalhistas passaram a ser responsáveis pelo trâmite de muito mais processos do que antes, o que causou um abarrotamento das secretarias.

Além desse elastecimento, outra mudança ocorrida diz respeito ao procedimento utilizado no julgamento dos dissídios coletivos de natureza econômica, objeto do exercício normativo atribuído aos tribunais trabalhistas. Não se pode olvidar que as relações trabalhistas estão inseridas num contexto de globalização da economia, o que repercute nas crises econômicas, na acirrada competitividade entre os mercados, na flexibilização, na terceirização e, principalmente, no enfraquecimento do movimento sindical.

Como citado, variadas foram as alterações que ocasionaram a significativa ampliação da competência da Justiça do Trabalho, mas não cabe aqui detalhar cada uma delas. Houve ainda a inserção de expressões no texto constitucional, algumas das quais passaram a constituírem-se em verdadeiros requisitos para a propositura de ações, tais como a exigência de “comum acordo” para o ajuizamento do dissídio coletivo. Esse assunto, entretanto, será detalhadamente abordado em capítulo próprio.

Acrescente-se também que, como consequência da reforma, surgiu grande discussão envolvendo a extinção do poder normativo dessa Especializada. No Brasil, a Justiça Trabalhista, além de mais avançada em variados procedimentos quando comparada à Justiça Comum, representa uma evolução dos quadros regulamentares das relações de trabalho. Isso decorre do fato de ela tratar-se de uma Justiça extremamente especializada. Consequentemente, emerge o seguinte questionamento: a quem interessaria uma reforma tão drástica a ponto de indagar-se se esta não representaria, na realidade, a extinção daquele poder? Isso não seria um retrocesso às conquistas já galgadas pela classe operária[83]?

Fazendo uma brevíssima alusão ao direito comparado, em países onde a legislação é mínima, a exemplo dos Estados Unidos da América, a variedade de métodos estabelecidos pelas próprias partes para a solução dos conflitos é bastante desenvolvida e efetiva. Inversamente, no Brasil, a variedade é mínima, atribuindo-se ao Estado, praticamente, um monopólio da resolução dos conflitos[84]. Saliente-se que os brasileiros sempre preferiram a imposição de soluções pela figura do juiz do que a tentativa de autocomposição de seus problemas, talvez por vislumbrar no magistrado a garantia de que será feita a justiça.

As primeiras deliberações sobre Tribunais do Trabalho adotadas pela OIT faziam nítida distinção entre a natureza jurídica e a natureza econômica dos conflitos trabalhistas, sendo que estes deveriam ser confiados a órgãos extrajudiciais, enquanto àqueles deveriam ser submetidos à análise do Poder Judiciário[85]. A solução brasileira, contudo, assim como a de outros países da América Latina, prima por uma Justiça do Trabalho competente tanto para a solução dos conflitos econômicos, como pela resolução dos conflitos jurídicos.

5.2 REPERCUSSÕES DA EC Nº. 45/2004 NO DISSÍDIO JURÍDICO

Apesar não integrar o foco deste trabalho, válido abrir parênteses para tecer brevíssimos comentários sobre os impactos da EC nº. 45 sobre o dissídio coletivo de natureza jurídica.

Foi acrescida à redação do §2º, art. 114 da CF/88 a expressão “natureza econômica” adjetivando o já existente termo “dissídio coletivo”. Ora, com a alteração, não é mais possível o ajuizamento de dissídios coletivos de natureza jurídica? Vários doutrinadores passaram a defender que restou extinta a possibilidade de ajuizamento deles[86].

Porém, esse posicionamento, data vênia, não é o mais coerente. Como acima elucidado, o objetivo dos dissídios coletivos jurídicos é a interpretação ou a aplicação de normas preexistentes[87]. Esse escopo claramente integra o bojo das típicas atividades jurisdicionais, que consistem, simplificadamente, na análise de normas integrantes do ordenamento para a sua consequente aplicação ao caso concreto. Por conseguinte, fundamenta-se o ajuizamento do dissídio jurídico no inciso I, art. 114 da CF, que trata da competência genérica da Justiça Trabalhista.

Assim, ao apreciar a instância coletiva jurídica, o tribunal laboral nada mais está fazendo a não ser exercer sua atividade típica. Nas palavras de Andréa Presas:  

“A rigor, ao atuarem na apreciação de um dissídio de natureza jurídica, as Cortes Trabalhistas exercem atividade própria do Poder Judiciário, tal como ocorre, ainda que de forma genérica, nos julgamentos das reclamações trabalhistas, ações civis públicas, mandados de segurança, ações de cumprimento, e, bem assim, nas variadas ações coletivas que buscam a interpretação de norma jurídica atinente a interesse meta-individual, a exemplo dos mandados de segurança coletivos, ações civis públicas, ações diretas de inconstitucionalidade, dentre outras”[88].

O TST, julgando um dissídio coletivo, deixou claro seu entendimento de que a EC nº 45 não acabou com a possibilidade de ajuizamento dos dissídios coletivos jurídicos:

AUSÊNCIA DE PREVISÃO CONSTITUCIONAL DE DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA JURÍDICA. POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. Questiona-se a possibilidade jurídica do pedido, em face da ausência de previsão constitucional, após a Emenda Constitucional 45/2004, de dissídio coletivo de natureza jurídica. Ocorre que o art. 114, inc. I da Constituição da República trata da competência da Justiça do Trabalho para julgar litígio oriundo da relação de trabalho. Ora, o dissídio coletivo é a ação destinada a dirimir o conflito coletivo de trabalho nascido da relação empregatícia. Assim, ainda que o objeto do litígio seja mera interpretação de texto normativo, matéria própria do dissídio coletivo de natureza jurídica, competirá à Justiça do Trabalho apreciar a demanda decidindo o conflito. O art. 1º da Lei 7.701/1988, editada sob a égide da Constituição da República de 1988, contempla a modalidade de dissídio coletivo de natureza jurídica. Preliminares de extinção do processo sem resolução do mérito que se rejeitam. (...) (TST-DC-1746116-74.2006.5.00.0000, Rel. João Batista Brito Pereira, DJ 11/02/2007). (grifos nossos).

Em suma, mesmo depois da reforma, é totalmente possível o ajuizamento de dissídio coletivo de natureza jurídica, não havendo necessidade de sua expressa previsão no §2º do art. 114 da CF, pois sua admissibilidade encontra-se tacitamente prevista na competência genérica da Especializada (inciso I, art. 114 da CF).

5.3 IMPACTOS DA REFORMA SOBRE O PODER NORMATIVO

Já fora afirmado que nas lides coletivas trabalhistas há o confronto de interesses de uma categoria, podendo haver o estabelecimento de novas condições de trabalho quando da solução do dissídio. A resolução desses conflitos ocorre, variadas vezes, à margem do direito em vigor e acaba por criar norma vinculante ao grupo, o que é possível graças ao poder normativo.

O projeto inicial de reforma do Judiciário, que aguardava votação conclusiva antes da promulgação no plenário do Senado, eliminaria o parágrafo 2º do artigo 114 da Constituição, que assegurava o poder normativo aos tribunais do trabalho. De acordo com a PEC, a Justiça Laboral continuaria processando e julgando as ações oriundas das relações de trabalho, nos planos individual e coletivo, mas não poderia mais criar obrigações de natureza econômica.

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Assim, os dissídios coletivos seriam apenas de natureza jurídica. Caberia ao tribunal interpretar e determinar a aplicação do texto de lei, de acordo ou convenção em vigor, sem, contudo, poder atender às reivindicações que motivaram a ação judicial. Logo, se houvesse, por exemplo, impasse em uma negociação relacionado ao índice de reajuste, o tribunal do trabalho não poderia, caso uma das partes ingressasse com dissídio coletivo, resolver a pendência, já que não disporia mais do poder normativo[89].

Tratando-se de greve, entretanto, a Justiça do Trabalho seria obrigada a julgar eventuais pedidos de suspensão do movimento paredista, inclusive com a prerrogativa de fixar multa em caso de desobediência quanto à data de retorno às atividades, mas não poderia atender a reivindicação que motivou a greve, salvo se as partes resolvessem, de comum acordo, designá-la como árbitro.

A mudança na competência da Justiça Laboral, no que se refere ao fim do poder normativo, sem alternativa para a solução dos dissídios de natureza econômica, seria adotada de forma precipitada. O pretexto para a supressão de tal poder – que, na proposta que chegou da Câmara ao Senado, já era mitigado, na medida em que só permitia o dissídio coletivo quando fosse ajuizado "de comum acordo" entre trabalhadores e empregadores – foi de que o direito coletivo do trabalho deveria ser disciplinado na reforma sindical, que está em fase de formulação e que expressamente prioriza a arbitragem, pública ou privada, em caso de impasse nas negociações coletivas. Enquanto não fosse encaminhada, aprovada e promulgada a reforma sindical, ficaria um vácuo na legislação, caso se confirmasse a decisão de supressão do poder normativo da Justiça do Trabalho na reforma do Judiciário[90].

O que preocupava nesse processo, além do vácuo que ficaria entre a promulgação da reforma do Judiciário e a sindical, é que se suprimiria uma fonte de direito (a sentença normativa) sem qualquer garantia ou contrapartida em termos de manutenção do poder de compra dos salários[91].

Antes da Emenda Constitucional nº. 45, dispunha o art. 114, § 2º da CF/98:

“Recusando-se qualquer das partes à negociação ou à arbitragem, é facultado aos respectivos sindicatos ajuizar dissídio coletivo, podendo a justiça do trabalho estabelecer normas e condições, respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”. (grifos nossos).

Depois da reforma, eis o novo teor do dispositivo:

“Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”. (grifos nossos).

Observe-se que não mais consta expressamente do texto constitucional a possibilidade da Justiça Laboral estabelecer normas e condições de trabalho. Assim, passou-se a questionar a existência do poder normativo, que consiste justamente no possível estabelecimento das ditas normas e condições. Teria ele sido extinto pela EC nº. 45? Entretanto, não seria exagero se falar em extinção?

5.3.1 EXTINÇÃO DO PODER NORMATIVO?

Antes da EC nº. 45/2004, o § 2º do art. 114 da CF expressamente atribuía poder normativo à justiça do trabalho através da faculdade de estabelecer normas e condições. Com a supressão dessa possibilidade, instaurou-se grande cizânia em torno da extinção ou não de tal poder, já que ele fundamentava-se, justamente, nesta autorização legal.  

Se antes o tribunal trabalhista era competente, por autorização constitucional, para exercer atividade legiferante, com o advento da reforma passou a apenas poder “decidir o conflito”. Ora, se o poder normativo exercido em seu conceito stricto sensu se baseava justamente na possibilidade de criar, confeccionar e estabelecer normas, extirpadas tais autorizantes e reduzida a sua atividade à solução do conflito posto, onde estaria o antigo poder normativo?

Por uma interpretação exclusivamente literal, poder-se-ia defender que, tendo restado apenas o condão de decidir o conflito, estaria extinto o poder normativo. Seguindo essa linha de raciocínio, Nelson Mannrich afirma que a justiça laboral não mais possui tal poder, aludindo:

“Assim, apenas na hipótese de comum acordo entre as partes, é possível o ajuizamento de dissídio coletivo de interesse. Mas, mesmo nesse caso, serão respeitadas não só as condições mínimas de proteção legal, como as convencionadas anteriormente. Portanto, com o ajuizamento de comum acordo do dissídio, cabe à Justiça do Trabalho, decidindo o conflito, submeter-se àquelas restrições, ou seja, respeitar as condições mínimas de proteção, previstas em lei ou em negociação anterior, não subsistindo mais o poder normativo”[92].

Adotando posicionamento contrário, para Ives Gandra Filho, a reforma apenas diminuiu o poder de atuação normativo dos tribunais, que está “quantitativamente reduzido e qualitativamente alterado” [93], já que ainda lhes resta a possibilidade de decidir o conflito posto, objetivando uma ampliação da capacidade negocial dos sindicatos e transformando a corte especial numa verdadeira corte arbitral. O eminente doutrinador entende que não houve extinção do poder normativo, entretanto, defende ter a atuação da Especializada, nesse tocante, transformado-se arbitragem.

 Seu entendimento é o mais coerente, ressalvada a afirmação de ter o poder normativo virado uma espécie de arbitragem, o que não ocorreu, como será adiante demonstrado. É certo que, quando da decisão do conflito, a Especializada ainda tem o poder de estabelecer normas e condições de trabalho. Caso contrário, porque haveria de se falar em respeito às disposições mínimas de proteção ao trabalho e às anteriormente convencionadas? Sem a possibilidade de estabelecer normas e condições, não teria como a Justiça Trabalhista resolver o conflito.

Na maioria das vezes, a simples interpretação da literalidade das palavras de uma norma não é suficiente para a sua compreensão, pois não reflete por completo o seu significado. O sistema jurídico deve ser visto como um todo harmônico para que atenda aos ditames da justiça. Assim, conjugadas, as interpretações literal, gramatical, sistemática, teleológica e histórica refletem uma realidade deveras satisfativa. Lógico que não se pode afirmar que o poder normativo permanece intacto, como concebido em sua origem, dada a supressão das expressões do texto constitucional acima mencionadas, que deixavam expressa a possibilidade de criação. Entretanto, persiste o poder criativo da Justiça Laboral, entendimento que decorre de uma análise sistemática dos institutos.

 Assim, permanece vivo o poder normativo da Justiça do Trabalho, que apenas sofreu mais algumas limitações. Ele é livre para criar novas garantias ou mesmo maximizar as garantias legais, desde que dentro dos limites constitucionais e, sobretudo, observando as mínimas disposições protetivas e as anteriormente convencionadas. Aliás, em uma análise mais aprofundada, o magistrado não é um simples um aplicador do direito, exercendo, claramente, atividade criativa para solucionar os casos concretos que lhe são postos, ainda mais quando se encontra diante das lacunas legais. Afirma Sérgio Pinto Martins:

“De fato, se houver a extinção do poder normativo da Justiça do Trabalho, muitos direitos dos trabalhadores conquistados em dissídios coletivos não mais poderão ser discutidos e acabarão sendo perdidos, salvo se forem mantidos em convenção ou acordo coletivo”[94].

Nessa mesma linha de raciocínio, aduz Ives Gandra:

“Pela nova redação do art. 114, § 2º da Constituição Federal, o poder normativo da Justiça do Trabalho saiu fortalecido e, de certa forma, ampliado, uma vez que não sujeito quer à limitação da lei ordinária ao seu exercício, quer à interpretação castrativa levada a cabo pelo Pretório Excelso”[95].

Importante destacar que o poder normativo lato sensu, ou seja, aquele atribuído aos tribunais e a outros órgãos emanadores de decisões para criarem suas próprias regras regimentais continua incólume, pois não foi ou é objeto de qualquer alteração legislativa.

As mudanças introduzidas causam debates entre os doutrinadores que, até então, não pacificaram um entendimento quanto à alteração ou não da natureza jurídica conferida ao poder normativo dos tribunais trabalhistas.

5.3.2 MUDANÇA DA NATUREZA JURÍDICA DO PODER NORMATIVO?

Para a composição dos dissídios coletivos econômicos trabalhistas, é necessária a elaboração de uma norma jurídica que regule o interesse da categoria envolvida. Evidente que há, nessas ações, atividade normativa que envolve a criação. Assim, atribui-se às sentenças normativas a qualidade de fonte formal do Direito Trabalhista.

Neste diapasão, divergem os doutrinadores no tocante à classificação do poder normativo após as alterações promovidas pela reforma do judiciário. Continuaria ele sendo o exercício de atividade legiferante ou teria se transformado em atividade tipicamente jurisdicional? Ademais, teria a EC nº. 45/2004 transformado o seu exercício pela justiça laboral em uma Corte Arbitral? No intuito de responder a tais questionamentos, faz-se necessário o breve confronto entre alguns institutos.  

5.3.2.1 ATIVIDADE JURISDICIONAL OU ATIVIDADE LEGISLATIVA?

A palavra jurisdição deriva de duas expressões em latim: jus ou júris, que significa direito e dictio ou dictionis, significando ação de dizer. Assim, corresponde a dizer o direito. A função jurisdicional surgiu da necessidade de por um fim à temerária prática da autodefesa, quando a justiça era feita com as próprias mãos. O Estado, objetivando evitar a desordem na sociedade, chamou para si o dever de administrar a justiça em substituição às partes, no intuito de garantir, através do devido processo legal, soluções imparciais e ponderadas que dessem uma justa composição aos litígios, dotadas de caráter imperativo.

Destaque-se, entretanto, que no Estado organizado a atividade jurisdicional preexistiu mesmo à legislativa, à formação de normas jurídicas. Desde sua origem, aos juízes se delega a tarefa de sancionar a conduta dos grupos sociais, aplicando a justiça como se somente eles tivessem acesso ao que é certo. Na sociedade moderna esta realidade não se alterou, sendo o Estado o detentor dos instrumentos através dos quais se procura manter a ordem[96].

Como garantia de provimentos imparciais, o Estado autolimitou o seu poder, dando aos órgãos jurisdicionais a função de pacificar a contenda utilizando-se, para tanto, de forma soberana, da norma vigente no ordenamento jurídico que disciplinasse o caso concreto. Assim, a atuação deve ocorrer dentro dos ditames legais, aplicando-se a lei ao caso concreto. 

Em síntese, tipicamente judiciária, a atividade jurisdicional é aquela em que o Estado, quando provocado, tutela o interesse dos cidadãos através da aplicação de normas, sem a possibilidade do afastamento das decisões prolatadas. É a imposição coercitiva da decisão de um terceiro, quando este é instado a se manifestar.

Diferentemente, a atividade legislativa corresponde à elaboração de leis que regulam o Estado, ou seja, compreende atos tidos por normativos. Assim, compete tipicamente ao poder Legislativo a criação de normas de direito dotadas de abstração e generalidade, com abrangência geral ou individual, aplicáveis a toda a sociedade.

Para o desempenho de suas missões, a Constituição Federal prescreve algumas garantias ao Poder Judiciário. Essas garantias são classificadas em duas espécies: as institucionais, que dizem respeito à instituição como um todo, especialmente quanto ao relacionamento com os demais Poderes, e as funcionais, que possibilitam aos magistrados exercerem a função jurisdicional com dignidade e imparcialidade.

Como já afirmado, há funções desempenhadas pelo Poder Judiciário que se caracterizam como não judiciais, que não se sujeitam às espécies de controles ditados pela Constituição e pelas normas de processo. Explica Hely Lopes Meirelles:

"... todos os poderes têm necessidade de praticar atos administrativos, ainda que restritos à sua organização e ao seu funcionamento, e, em caráter excepcional admitido pela Constituição, desempenham funções e praticam atos que a rigor seriam de outro Poder"[97].

Nesse contexto está inserido o poder normativo, criativo dos órgãos não legislativos, inclusive dos tribunais trabalhistas. A peculiaridade deste, todavia, reside no fato de o exercício de parcela deste poder abranger a possibilidade de ser imposto a terceiros, ou seja, indivíduos não vinculados diretamente aos tribunais podem ser afetados pela imposição normativa dos mesmos.

Neste viés, a atividade legislativa dos órgãos judiciários, em especial dos tribunais laborais, divide-se pelo âmbito de sua atuação em externa ou interna. O âmbito de atuação interna, pelo qual há criação de normas dispondo sobre a organização dos próprios órgãos, não gera conflito na seara doutrinária. A delegação da atividade legislativa, neste aspecto, faz-se imprescindível para a manutenção da própria separação entre os Poderes, garantindo a imparcialidade e operatividade do Judiciário.

Já a atuação externa, entretanto, intimamente ligada com o exercício do poder normativo e o alcance da sentença normativa, gera inquietação entre doutrinadores, sendo rejeitado por uns[98] e aceito por outros[99]. Ora, o poder normativo da Justiça Trabalhista a distingue dos demais ramos do Judiciário justamente pela amplitude e abstração da sentença normativa. Havendo conflito coletivo de natureza econômica endereçado aos tribunais laborais, manifesta-se a sua competência criativa. Lembre-se que a sentença normativa é uma norma caracterizada pela abstração, pela criação de direito novo, produção de nova norma, podendo, inclusive, ser invocada como fundamento de processos ulteriores. Logo, ao produzi-la, a Justiça Laboral atua de modo atípico.

Aqueles que defendem ser o exercício do poder normativo uma atividade jurisdicional embasam seu posicionamento na equidade, mecanismo próprio de integração e interpretação do ordenamento jurídico[100]. Entretanto, existe mesmo o uso da equidade na criação de normas genéricas e abstratas pelo juiz? Ela é o adequado instrumento para o exercício do poder normativo?

Em verdade, a equidade orienta o aplicador do direito na busca da justiça no caso concreto, já que se trata de um método de aplicação e interpretação do Direito. Está intimamente ligada à concreção do direito e à individualização da norma. Maria Helena Diniz elucidou de forma brilhante a questão, afirmando que “não é a equidade uma licença para o arbítrio puro, mas uma atividade condicionada às valorações positivas do ordenamento jurídico”[101].

Na elaboração de novas normas, o legislador age discricionariamente, estando apenas limitado pela Constituição Federal, que, inclusive, também foi por ele elaborada. Ele faz opções valorativas e estabelece regras genéricas. Assim, se utiliza a equidade, não é da acima definida, tratada pela filosofia e ciência do Direito, mas sim, simplesmente, àquela relacionada à abstrata idéia de equilíbrio[102]. Já o juiz não possui a mesma liberdade, o que é característico do poder por ele exercido. Nesse tocante, a equidade lhe funcionada como um mecanismo para melhor compreender o direito existente e não para criação arbitrária, pois, como afirma Maria helena, “a equidade é um ato judiciário e não legislativo. É poder conferido ao magistrado para revelar o direito latente...”[103], adequando a norma geral ao caso concreto. 

Assim, não há utilização da equidade (entendida como meio de integração e aplicação de normas) no poder normativo da Justiça Laboral. A sentença normativa, como afirmado, possui caráter abstrato e genérico, típico de uma lei, o que difere do ideal da justiça para o caso concreto, próprio da equidade. Nela, há criação de direito novo, novas normas e condições com eficácia genérica para as categorias envolvidas no conflito.

Do exposto, resta claro, através do poder normativo, age o juiz do trabalho em nítida atividade legiferante, embasado na oportunidade e conveniência, com arbítrio semelhante ao de um legislador. Nas palavras de Pedro Garcia, “não busca temperar nem aplicar um corretivo à lei genérica na sua aplicação a um caso concreto, pois na atuação normativa o Juiz do Trabalho cria a regra genérica, que depois será ou não bem aplicada”[104]. O próprio TST já se posicionou nesse sentido, conforme abaixo transcrito:

EXIGÊNCIA DE COMUM ACORDO PARA INSTAURAÇÃO DE DISSÍDIO COLETIVO DE NATUREZA ECONÔMICA (...) I - A Emenda Constitucional nº 45/2004 não aboliu o poder normativo da Justiça do Trabalho, nem lhe subtraiu sua função jurisdicional, desautorizando assim a tese sustentada aqui e acolá de que teria passado à condição de mero juízo arbitral, extraída da exigência de comum acordo para instauração do dissídio coletivo. II - A atividade jurisdicional inerente ao poder normativo da Justiça do Trabalho qualifica-se como atividade atípica, na medida em que, diferentemente da atividade judicante exercida no processo comum, não tem por objeto a aplicação de direito preexistente, mas a criação de direito novo, detalhe a partir do qual se pode divisar situação sui generis de ela, na sua atividade precípua como órgão integrante do Judiciário, desfrutar ainda que comedidamente da atividade legiferante inerente ao Poder Legislativo. (...) (TST-RODC-3626/2005-000-04-00.9, Min. Barros Levenhagen, DJ - 16/02/2007). (grifos nossos). 

Assim, quando a Justiça do Trabalho, julgando os dissídios coletivos econômicos, estabelecer norma genérica e abstrata, estará exercendo atividade legislativa e não propriamente julgando.

5.3.2.2 ARBITRAGEM?

Em decorrência das alterações promovidas pela Emenda Constitucional n.º 45/2004 no § 2º do art. 114 da CF/88, emergiu a seguinte discussão: o exercício do poder normativo teria se transformado, no fundo, em arbitragem? No afã de responder a esse questionamento, faz-se necessário tecer breves considerações a respeito desse instituto.

As modernas relações sociais e contratuais exigem que eventuais conflitos delas decorrentes sejam solucionados de maneira dinâmica, eficiente e célere, pois o tempo é um elemento crucial no estágio em que se encontra o mundo, marcado por transformações cada vez mais velozes. Frente a tantas variáveis, é essencial a busca pelos meios não estatais de solução de conflitos, pois o Poder Judiciário, cada vez mais abarrotado com a crescente quantidade de ações que lhe são postas, não tem condições de atender, com a devida presteza e em tempo razoável, as demandas a ele submetidas.  

Nesse panorama, vem sendo feito enorme estímulo às soluções extrajudiciais dos litígios, tais como a Arbitragem, a Mediação e a Conciliação. A Arbitragem e a Mediação, chamadas coletivamente de solução alternativa de controvérsias ou ADR (Alternative Dispute Resolutions), são dois processos principais dentro de um amplo espectro de meios para a solução de controvérsias[105]. Alguns autores brasileiros, a exemplo de Pedro Antônio Batista, utilizam-se da expressão “substitutos processuais” para fazer menção à atividade arbitral:

 “A complexidade dos vários sistemas legais, a integração dos países em mercados comuns e a especialização do direito, leva-nos a buscar uma via mais prática e objetiva de realização de justiça. Nesse particular, amplia a importância dos substitutos processuais, do qual a arbitragem é espécie”[106].

Segundo José Eduardo Carreira Alvim, a arbitragem:

 “É a instituição pela qual as pessoas capazes de contratar confiam a árbitros, por elas indicados ou não, o julgamento de seus litígios relativos a direitos transigíveis. Esta definição põe em relevo que a arbitragem é uma especial modalidade de resolução de conflitos; pode ser convencionada por pessoas capazes, físicas ou jurídicas; os árbitros são juízes indicados pelas partes, ou consentidos por elas por indicação de terceiros, ou nomeados pelo juiz, se houver ação de instituição judicial de arbitragem; na arbitragem existe o “julgamento” de um litígio por “sentença” com força de coisa julgada”[107].

Pode-se definir a arbitragem como um processo no qual as pessoas escolhem um árbitro (terceiro desinteressado) para tomar uma decisão sobre os seus problemas, após ouvir os seus argumentos e examinar as provas. Essa decisão terá força de sentença para elas.

Em uma segunda definição, pode-se conceituar a arbitragem como um processo legal, porém não-judicial, já que não se processa no âmbito do judiciário. Além de mais simplificado e mais rápido, dito processo apresenta muitas vantagens. Nela, as partes solicitam a intermediação de um profissional técnico com larga experiência no assunto, nomeado perito, para o esclarecimento do problema[108].

Pode-se afirmar que a arbitragem é um meio alternativo ao Judiciário para solução de controvérsias, ao qual as partes (pessoas físicas ou jurídicas), livre e voluntariamente (não há lei que obrigue), se submetem, para obter soluções ágeis e de custo reduzido. Segundo Carlos Alberto Carmona:

“A arbitragem é uma técnica para a solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial.[109]

Em síntese, pode-se afirmar que a arbitragem é uma jurisdição privada autônoma, instituída por convenção entre as partes (que devem ser pessoas capazes), envolvendo matéria afeta aos direitos disponíveis. Elas escolherão um terceiro com a missão de resolver o conflito por meio de uma sentença arbitral, que não é passível de recurso.

Dentre as suas características, vale destacar a especialidade e neutralidade do árbitro, voluntária e livremente escolhido pelas partes. Não havendo consenso em torno de um único profissional apto para solucionar o problema, cada parte escolherá aquele de sua confiança e ambos escolherão um terceiro, ou as partes delegarão poderes à entidade arbitral para que ela designe o terceiro árbitro.

Como vantagens da arbitragem, enumeram-se a celeridade, a confiabilidade, a confidencialidade, a informalidade do procedimento, a especialidade e a flexibilidade[110]. Segundo Fredie Didier Júnior, não há qualquer vício de inconstitucionalidade na instituição da arbitragem, a qual não é compulsória. Trata-se de uma opção conferida a pessoas capazes para a solução de problemas relacionados a direitos disponíveis, não se admitindo o uso deste instituto para resolução de causas penais[111].

O instituto agora em análise classifica-se em diversas formas a depender de variados fatores, tais como o grau decisório conferido ao árbitro, a coercibilidade conferida às decisões e o local em que a sentença arbitral é proferida. Entretanto, a análise pormenorizada de cada uma de suas modalidades extravasaria o foco deste trabalho[112].

No Brasil, a arbitragem é regida pela Lei 9.307/96 e pode ser constituída por meio de um negócio jurídico denominado convenção de arbitragem, compreendendo tanto a cláusula compromissória quanto o compromisso arbitral. Trata-se, então, de um contrato onde pode ser expressamente renunciada a atividade jurisdicional do Estado, a fim de eliminar uma controvérsia específica, e não somente especificável[113]. Lembre-se que a convenção arbitral ou o contrato tem de prever, com exatidão, as cláusulas que serão objeto da arbitragem, não podendo o árbitro adentrar em outro âmbito senão naquele especificamente delimitado pelo negócio.

Pois bem. Um grupo de conceituados doutrinadores atuantes na seara laboral sustenta o entendimento de que as mudanças operadas pela EC nº. 45, notadamente a nova exigência do comum acordo, transformaram o dissídio coletivo econômico em uma forma de arbitragem. São alguns deles Ives Gandra Martins Filho[114], Pedro Sampaio Garcia[115] e Otávio Brito Lopes[116].

Ora, é certo que a dita Emenda Constitucional passou a exigir o mútuo consentimento, ou seja, o “comum acordo” para o ajuizamento do dissídio coletivo de natureza econômica. Entretanto, tal necessidade não é suficiente para conferir natureza arbitral à função desempenhada pela Justiça Laboral, pois existe enorme diferença entre os contornos da anuência para o dissídio coletivo e para a arbitragem.

Como visto, é pressuposto da arbitragem o assentimento das partes, seja através de cláusula ou de convenção de arbitragem. Porém, essa concordância não visa apenas legitimar a escolha da solução da lide por um terceiro. Vai além, extrapolando a propositura da demanda, haja vista que também implica na prévia aceitação dos termos da sentença arbitral pelos contendores. Em outras palavras, ao anuir com o procedimento arbitral, as partes já se submetem ao que eventualmente for decidido pela sentença, já que, sendo a mesma irrecorrível, apenas pode ser atacada através da ação anulatória. Diferentemente, o consentimento das partes no dissídio coletivo econômico trata-se apenas de um requisito necessário ao ajuizamento da demanda junto ao Tribunal competente.

Na jurisdição trabalhista, as partes não escolhem livremente aquele que irá decidir a contenta, pois o processo corre de acordo com as vigentes normas processuais reguladoras da competência, que são garantidoras do princípio do juiz natural. Contrariamente, no procedimento arbitral o árbitro é escolhido ao arbítrio dos conflitantes, ou seja, eles já sabem, desde o início, qual será a pessoa que colocará fim ao problema. 

Outra diferença reside na inexecução dos provimentos, pois o descumprimento de uma sentença normativa dá lugar à propositura da ação cognitiva de cumprimento, nos termos do art. 872 da CLT, enquanto o não cumprimento da sentença arbitral permite a imediata execução[117].

Além disso, para a resolução do conflito, o árbitro deve seguir as normas do direito vigente, salvo se as partes previamente elegerem a utilização do critério da equidade. Já no julgamento do dissídio coletivo, o Tribunal Trabalhista irá fazer a composição da norma reguladora. Nota-se, assim, que há flagrante diferença entre os critérios de apreciação dos litígios.

Já foi acima afirmado que a sentença arbitral é irrecorrível, pelo que contra ela só cabe ação anulatória. Distintamente, a sentença normativa é recorrível, podendo, nos termos do artigo 873 da CLT, ser revista quando modificadas as circunstâncias que a ditaram. Acrescente-se ainda que ela não tem de obedecer aos critérios fixados na lei nº. 9.307/ 96 para a sentença arbitral.

Defendendo a diferenciação, leciona Jorge Luis Machado:

“Apesar de as alterações da norma constitucional terem acrescentado um novo pressuposto processual específico (condição da ação, para alguns) para a instauração do dissídio coletivo de natureza econômica, qual seja, a necessidade de haver acordo entre as partes para o ajuizamento da instância, tal fato, por si só, não possui o condão de transformá-lo em espécie do gênero arbitragem. Ora, o artigo 114 da Constituição Federal trata especificamente da arbitragem em seu parágrafo 1° e no início do parágrafo 2°, dispondo, de forma expressa, que o ajuizamento da instância só ocorrerá quando houver recusa das partes à negociação coletiva e àquela forma de heterocomposição”[118].

Observe-se que o próprio texto da CF/88 diferencia a arbitragem do poder normativo, pois somente havendo recusa das partes a ela é facultada a instauração da instância, ou seja, do dissídio coletivo econômico.

Lastreando-se nos argumentos supra, pode-se afirmar, sem nenhum medo, mas com total respeito às opiniões em contrário, que não procede a tese segundo a qual, depois da Reforma, o exercício do poder normativo tornou-se atividade arbitral. Não se pode olvidar, entretanto, que a Constituição implantou o requisito do mútuo consentimento na seara coletiva trabalhista, que é também é típico da arbitragem. Mas essa identidade de requisitos nem de perto faz com que haja identidade entre os institutos.

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Sobre a autora
Paula Leal Lordelo

Advogada, formada em Direito pela UFBA - Universidade Federal da Bahia. Pós graduação em Direito Processual e Material do Trabalho pelo JusPodivm.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LORDELO, Paula Leal. Exigência do comum acordo para a propositura do dissídio coletivo: inconstitucionalidade principiológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3597, 7 mai. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24378. Acesso em: 19 abr. 2024.

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