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Teoria geral da insignificância

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06/06/2013 às 14:50
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1.5 Fundamentos de validade

A seguir discorre-se sobre os princípios amplamente reconhecidos do direito penal pelos quais se pode deduzir de modo bastante eloquente o princípio da insignificância e, por que não dizer, pelos quais se torna patente a importância do conceito material de delito. Note-se que os princípios sobre os quais se falará não têm necessidade de demonstração minuciosa, haja vista serem reconhecidos largamente pela doutrina, inclusive com alguns decorrendo de modo lógico de normas-princípio (ver supra, item 1.4.1).

1.5.1Princípio da intervenção mínima e da subsidiariedade

Esse princípio se dirige, principalmente, ao legislador. Ele “orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico” (BITENCOURT, 2011:43).[13]

Daí se segue, logicamente, o princípio da subsidiariedade. Dado que a sanção penal é a mais brusca, mais violenta, mais drástica intervenção estatal na vida do cidadão, retirando-lhe aqueles bens mais caros (liberdade, propriedade e, em alguns ordenamentos, a vida), tem-se que o direito penal é subsidiário, só atuando quando nenhum outro instrumento de controle social possa desempenhar a proteção de bens jurídicos caros à sociedade.[14]

Se assim é – e é –, vê-se que o direito penal é a ultima ratio do sistema jurídico. Ele só estará autorizado a intervir quando algo realmente significativo e dano para a sociedade ocorra. Com toda a razão está Zipf (1979:98):

se requer que as condições da própria convivência social resultem lesadas de modo intolerável. […] As normas penais podem ser empregadas como reguladoras do acontecer social apenas quando o exijam forçosamente necesidades essenciais de proteção da coletividade e intereses vitais do indivíduo.[15]

Em face dessas considerações, vê-se que o princípio da insignificância encontra fundamento nesses dois outros princípios. Ora, se a intervenção penal não se justifica por qualquer coisa, mas só em último caso, parece certo que nem toda e qualquer lesão a um bem jurídico é caso de intervenção penal.

1.5.2 Princípio da fragmentariedade

De início, frise-se que o “princípio” da fragmentariedade de princípio não tem nada; só falamos dessa forma por tradição. Explica-se: a constatação da fragmentariedade do direito penal decorre de maneira inegável do princípio da intervenção mínima e da legalidade. Com efeito, se é verdade que o direito penal somente atua para proteger bens jurídicos de alguma importância para a sociedade, fazendo-o de modo subsidiário, certamente ele só incidirá sobre um fragmento, uma pequena porção dos bens protegidos pelo direito de modo geral. Com efeito, “o direito penal não sanciona todas as condutas lesivas de bens jurídicos, senão somente as modalidades de ataque mais perigosas”(MIR PUIG, 1982:126)[16]. Usando a expressão de Binding (apud BITENCOURT, 2011), o direito penal se revela como um sistema descontínuo de ilicitudes, uma pequena ilha num mar de liberdade.

Destarte, soa mais correto falar que o direito penal possui um caráter  fragmentário ou uma natureza fragmentária, e não que é regido por um princípio de fragmentariedade. A fragmentariedade é inerente a esse ramo do ordenamento jurídico; é um dado imanente do sistema, uma mera constatação, sem estruturar nada. Entendimento em contrário nos autorizaria a dizer que o ar é regido pelo “princípio da incorporeidade” ou que a água se rege pelo “princípio da liquidez”.

Conhecendo esse dado, é patente que o intérprete da norma penal jamais poderá entendê-la extensivamente em detrimento da liberdade, pois assim estaria indo “contra a natureza das coisas”. A interpretação da lei penal deverá ser feita sempre de maneira restritiva no que toca a normas que cerceiam a liberdade do cidadão; essa interpretação restritiva é, precisamente, o que se faz ao aplicar o princípio da insignificância. Logo, tem-se que a nossa descriminante está respaldada na natureza fragmentária do direito penal; quem a aplica nada mais faz do que agir segundo a “natureza das coisas”.

1.5.3  Princípio da proporcionalidade

Este princípio, que é geral do direito, é, com clara certeza, o mais evidente fundamento do princípio da insignificância. Ele demanda que haja uma justa medida entre o ato praticado e sanção correspondente, ou, em termos penais, que a pena seja proporcional ao delito praticado.[17] Deve-se verificar, como diz Canotilho (apud BIANCHINI, 2002:83),

se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à ‘carga coativa’ da mesma. Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, a fim de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de ‘medida’ ou ‘desmedida’ para se alcançar um fim: pesar as vantagens dos meios em relação às vantagens do fim.

Confunde-se, de certa forma, com a própria racionalidade da punição. É irracional que arrancar um cabelo configure lesão corporal, assim como pegar um fósforo para acender um cigarro seja um furto ou levar uma passageiro até o próximo ponto de ônibus seja uma privação de liberdade (ZAFFARONI; ALAGIA; SLOKAR, 2000:471). E por que é irracional? Porque é desproporcional considerar essas ações como crimes e, dessa forma, impingir com a pena seus agentes. Na jocosa expressão utilizada por Gomes (2009), não podemos usar um canhão (o direito penal) para acertar um passarinho.

Eis, então, mais uma razão, mais um fundamento para o princípio da insignificância. Deve-se afastar a incidência do direito penal de infrações de pouca monta porque tomar essas condutas como crime seria desproporcional e, por conseguinte, irracional.

1.6 Insignificância e legalidade

Num primeiro momento, desavisadamente, poderíamos pensar que a legalidade é incompatível com o princípio da insignificância. Contudo, uma análise mais profunda é capaz de demonstrar a falsidade dessa conclusão.

O princípio da legalidade, não só em matéria penal, nasce e permanece até os dias hodiernos como uma garantia democrática para o cidadão. Ele corporifica de forma técnico-jurídica o ideal de segurança individual, admitindo como fato punível criminalmente apenas o que for enquadrável numa definição prévia formulada pelo legislador descrevendo condutas criminosas (LOPES, 1997).

A legalidade, traduzida pela máxima nullum crimen nulla poena sine lege, deve, então, ser entendida de acordo com o telos a que visa, qual seja, a garantia de liberdade e segurança do cidadão. Se assim é, não há como opor o princípio da legalidade à insignificância, eis que os dois princípios caminham em direção à liberdade, não o contrário.

Note-se que, apesar da instituição dessa garantia, não se quis dizer que tudo enquadrado no tipo penal seria tido como crime. Além do nullum crimen nulla poena sine lege praevia[18], nullum crimen nulla poena sine lege scripta[19], nullum crimen nulla poena sine lege stricta[20] e nullum crimen nulla poena sine lege certa[21], a evolução do princípio da legalidade chegou à construção da máxima nullum crimen nulla poena sine iuria, ou seja, não há crime nem pena sem a causação de um dano ou perigo de dano relevante a bem jurídico penalmente protegido (LOPES, 199769). É um postulado legitimador do direito penal, decorrente de sua visão sistemática, interpretando a legalidade com os demais princípios, máxime a intervenção mínima, subsidiariedade e seu caráter fragmentário.

Tudo isso implica, como já se fez alusão, numa mudança de visão metodológica apenas. Trata-se de enxergar a infração penal em seus aspectos substanciais, não mais partindo da lei como ponto de partida. Isso porque o delito surge na realidade, no plano concreto, e não no formalismo da lei. Esta, por sua vez, cumpre um papel secundário de operacionalizar, tornar maleável, manipulável o crime, que, repita-se, é um dado concreto surgido contexto social, histórico e político.

De fato,

o legislador constrói os modelos jurídicos a partir da realidade que vem a recortar, elevando ao plano abstrato ações que constituem um todo indecomponível, cujas partes se inter-relacionam e se polarizam em torno de um sentido, de um valor, que se apresenta negado pela ação delituosa (REALE JR., 2009:133).

Se essa lógica está correta, se o crime nasce na realidade é apenas é transformado em tipo penal, em modelo jurídico de conduta punível, só se pensará na lei se, efetivamente, o valor que levou o legislador a incriminar a conduta foi negado pela ação delitiva. Se isso inexistiu, a tipificação legal da conduta se torna irrelevante para o operador do direito, porque a aplicação da lei penal perderá a sua razão de ser.

Como se vê, então, a aplicação do princípio da insignificância não constitui uma negação do princípio da legalidade, mas tão somente uma reformulação e ampliação do modo de operação do direito penal, transcendendo o simples formalismo e dando atenção para uma visão sistemática e dinâmica da teoria do delito, voltando os olhos para os aspectos concretos da ação tida como delituosa.

1.7 Outras técnicas de descriminalização material

A seguir, mostrar-se-ão outras construções doutrinárias que, a exemplo do princípio da insignificância, têm o condão de superar a simples concepção formal do delito, criando técnicas de descriminalização. O rol não é nem pretende ser exaustivo; trata-se de breve exposição que mais visa estremar essas outras construções do princípio objeto deste trabalho do que outra coisa.

1.7.1 Adequação social

Deve-se a Welzel a formulação da teoria da adequação social, segundo a qual, em grossas linhas, estão excluídas da esfera de incidência do tipo penal as condutas que, embora formalmente típicas, não são mais objeto de reprovação social (MAÑAS, 1994:31). Essa regra geral de hermenêutica repousa na ideia de que o tipo penal é um modelo de conduta proibida, algo que vai de encontro à concepção de lícito, de aceitável na esfera social. Daí se segue, por certo, que não é possível interpretar o tipo penal como se estivesse alcançando condutas socialmente aceitas e adequadas (TOLEDO, 1994:131).

No exemplo dado por Toledo (op. cit.), um ferimento causado por um pontapé em uma partida de futebol, se o agente agiu dentro do que é normalmente aceito e tolerado em disputas dessa natureza, desde logo está excluído o crime em seu aspecto material. É uma conduta aceita por todos, logo não pode ser crime.

Um outro exemplo, talvez, seria a eutanásia em uma sociedade mais evoluída. Imaginemos que, superadas as ardentes polêmicas atuais envolvendo a eutanásia, chegue-se a um ponto em que haja certa unanimidade em considerá-la como correta, lícita. Nesse contexto, matar um familiar moribundo a pedido deste, apesar de formalmente se enquadrar no art. 121 do CP (matar alguém), não poderia ser considerado ação típica, segundo a teoria da adequação social.

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A adequação social tem o condão de excluir a tipicidade, não sendo mera causa de justificação. Explica-se:

Não se deve confundir “adequação social” com “causa de justificação”, pois a ação aceita pela coletividade está desde o início excluida do tipo, já que se efetiva dentro do âmbito de normalidade social, ao passo que a ação amparada por alguma causa excludente da ilicitude só não é crime, não obstante socialmente inadequada, em razão de uma autorização especial para a realização do comportamento típico. (TOLEDO, op. cit.: 131-132)

Como anota Paliero (apud SANGUINÉ, 1990), a aplicação dessa teoria se mostra necessária, principalmente, nos casos de “esclerotização legislativa”, “quando os velhos esquemas normativos são dificilmente adequáveis, com os só instrumentos exegéticos, à realidade econômica-social em radical transformação”. É o que acontecia, por exemplo, com a exploração de motéis no Brasil antes da nova redação dada ao art. 229 do CP pela lei 12.015/2009 (MAÑAS, 1994:32).[22]

Embora Zipf (1979) considere em parte coincidentes os princípios da insignificância e a adequação social, e Welzel enxergasse sua teoria como suficiente para solucionar os delitos de bagatela, o certo é que há léguas de distância entre as duas coisas. Bem disse Mir Puig (apud SANGUINÉ, 1990:38): “A adequação social supõe a aprovação social da conduta enquanto o princípio da insignificância somente uma relativa tolerância por sua escassa gravidade”. Numa linguagem menos científica, diria que, segundo a adequação social, diz-se “sem problemas!” e, seguindo o princípio da insignificância, “deixa pra lá, não vale a pena”.[23]

1.7.2  Ausência de periculosidade social

A periculosidade social da ação – que não se confunde com a periculosidade social do autor, frise-se – é um conceito tido como núcleo essencial da teoria geral do delito, nos países socialistas (NUVOLONE, 1967). De acordo com essa visão, o fato punível criminalmente deve, além de conter os requisitos típicos descritos normativamente, revelar-se concretamente perigoso à sociedade em medida relevante (SOLNAR apud NUVOLONE, 1967). É, como se vê, outra forma de conceber materialmente o delito.

Em exemplo, diz (ou dizia) o art. 3º do Código Penal da antiga Tchecoslováquia: “o fato, cujo grau de periculosidade social é mínimo, não é punível, embora apresente os caracteres formais de crime”(MAÑAS, 1994:35). Semelhantes dispositivos mantêm (ou mantinham) países como a extinta República Democrática da Alemanha, no art. 3º seu CP de 1968; China, no art. 10 do CP de 1979; Rússia, no art. 7º do CP de 1960, dentre outros.

A diferença entre essa concepção material do delito e a nossa é de que o conceito de periculosidade social da ação possui caráter nitidamente ideológico e político, próprio dos regimes socialistas. Veja-se, como nota Ribeiro Lopes (1997), que nos sistemas socialistas é a classe no poder que estabelece quais fatos se tomam como socialmente perigosos ou não. E, permita o leitor a observação, faz-se classista um regime que pretendia em última instância abolir a dominação de classe...

Mesmo juristas marxistas reconhecem que existe certa inclinação axiológica do juízo de periculosidade social da ação, e admitem, ainda, haver maior interesse do regime socialista na personalidade antissocial ou político-social do agente que no caráter impessoal do crime praticado (GREGORI apud MAÑAS, 1994:37).

Não é apenas e tão somente a imprecisão conceitual que diminui o prestígio da concepção material socialista do delito, pois a mesma crítica – embora respondível[24] - pode ser feita ao princípio da insignificância, e nem por isso o rechaçamos nem deixamos de reconhecê-lo como princípio de direito penal. A grande crítica é que a periculosidade social da ação é uma ideia tão vaga e elástica que pode ser preenchida por juízos político-ideológicos segundo a vontade do poder estatal.

É importante que se estabeleça a precisa diferença entre a exclusão da materialidade do delito pelo princípio da insignificância e pela ausência de periculosidade social, nos ordenamentos em que esta é tida como elemento estrutural do delito. Pelo juízo de insignificância, embora, com efeito, o intérprete julgue subjetivamente o que é ou não insignificante, se o faz com um parâmetro bem claro: a ínfima afetação ou perigo de lesão a bens jurídicos não possui dignidade penal. Já segundo a concepção socialista, baseia-se o intérprete no perigo social da ação, cuja noção não é, nem de longe, intuitiva, mas manipulável.

1.7.3        Concepção realística do crime ou princípio da ofensividade

Ao passo que a teoria da insignificância seja criação da doutrina germânica, ela encontra seu correlato na doutrina italiana sob a formulação da concepção realística do delito, a qual está expressa na exigência da necessária ofensividade do delito (SANGUINÉ, 1990:39).

Essa concepção nada mais faz do que impor à interpretação das normas penais a evolução do princípio da legalidade à máxima nullum crimen sine iniuria, ou, como escrito no projeto preliminar de reforma do código penal italiano, da chamada Comissão Grosso, em 2000, “as normas incriminadoras não se aplicam aos fatos que não determinam uma ofensa ao bem jurídico” (D'ÁVILA, 2005:51). Vale dizer, embora formalmente típicas, segundo essa concepção, não é crime a conduta que não se mostra “boa o bastante” para ofender o interesse protegido pela norma penal (SANGUINÉ, 1990:39).

Afigura-se um tanto difícil a distinção precisa entre o princípio da insignificância e o da ofensividade, a começar que todos podem se basear na máxima nullum crimen sine iniuria. Em um primeiro momento, poderíamos mesmo pensar que as duas ideias se confundem, mas não é bem assim. Note-se: um crime de bagatela, ao qual se aplica o princípio da insignificância, fatalmente afeta, embora de modo pífio, o bem jurídico tutelado pela norma penal. Não se duvida que furtar uma laranja na feira livre, de uma forma ou de outra, diminui o patrimônio do feirante. Porém, não ofender o interesse tutelado pela norma é coisa bem diferente. Um exemplo dessa situação seria falsificar um documento de identidade por pura “pirraça” e guarda-lo em casa, sem uso algum. Perguntamos: houve um crime? Houve, mais precisamente o descrito no art. 297, caput, do CP. Mas, guardando o documento contrafeito em casa, qual foi a lesão à fé pública, bem jurídico tutelado pelo art. 297? Nenhuma. Descriminalizar-se-ia esta última conduta usando o princípio da ofensividade, não da insignificância.

1.7.4        Irrelevância penal do fato

Pela teoria da irrelevância penal do fato, certos delitos nos quais se preenchessem alguns requisitos, ainda que, formal e materialmente se constituíssem em injusto culpável, não mereceriam pena. A distinção entre esse princípio  e o da insignificância é feita por Gomes (2001), para quem o princípio da insignificância atuaria como excludente de tipicidade, ao passo que a irrelevância penal do fato seria uma causa de dispensa de pena.

A diferença básica entre a insignificância e a irrelevância penal do fato é que esta permite a valoração pessoal do agente, diferentemente do outro princípio. Explica-se: ou determinado fato ou é insignificante ou não é, não se tornando significante porque foi cometido por Tício reincidente ou por Mévio funcionário público.[25] Já seguindo a teoria da irrelevância penal do fato, que não se baseia na afetação do bem jurídico penalmente tutelado, mas sim na necessidade de pena, atendidos os requisitos de desvalor mínimo do resultado, conduta e culpabilidade, poder-se-ia dispensar a pena, com fundamento no art. 59 do CP, já que este fala em estabelecer a pena necessária para prevenção e repressão do delito (GOMES, 2001, grifo nosso).[26] Ora, se a pena se mostrar desnecessária para os fins que visa, sua aplicação perde a razão de ser.

Da distinção entre insignificância e irrelevância penal do fato surge a distinção terminológica a que já aludimos no item 1.3.

1.8 Delimitação entre o significante e o insignificante

Uma das críticas opostas ao princípio da insignificância é, como noticia Sanguiné (1990), é sua imprecisão conceitual. Vale dizer, o conceito de crime de bagatela é por demais impreciso, podendo levar à insegurança jurídica a aplicação indiscriminada do princípio da insignificância.

Essas críticas não prosperam, pois, embora difícil seja, é perfeitamente possível estabelecer critérios científicos, tanto na doutrina quanto na jurisprudência, para precisar o significante do insignificante.

Ensina-se que

A doutrina apresentou dois modelos destinados a concretizar o conceito do crime de bagatela. O "clássico" constituído pelos índices do "desvalor da ação", "desvalor do resultado" e "culpabilidade", para precisar a global insignificância e  com a possibilidade de graduação do ilícito penal. O modelo que utiliza todos os critérios de uma "antecipada medição da pena" (atualmente predominante na doutrina alemã), para estabelecer o "merecimento de pena". Optando pelo modelo clássico, Krümpelmann indica os critérios da "gravidade do dano" (o desvalor do evento) e a "modalidade da conduta" (desvalor da ação), bem como o "grau " e a "intensidade" da culpabilidade. (SANGUINÉ, 1990:45)

Partiremos primeiro do que o autor citado convencionou chamar de “modelo clássico”, estabelecendo como bagatelar o fato formalmente típico cujo desvalor da ação e o do resultado sejam ínfimos. Esclarece Silva (2004:153) que

Ocorre a insignificância do desvalor da ação quando a probabilidade da conduta realizada de lesionar ou pôr em perigo o bem jurídico tutelado apresenta-se material e juridicamente irrelevante, evidenciando que o grau de lesividade do fato típico praticado é qualitativamente e quantitativamente ínfimo em relação ao bem jurídico atacado. [...] Por seu turno, a insignificância do desvalor do evento ocorre quando o resultado do ato praticado é de significado juridicamente irrelevante para o Direito Penal; a gravidade do dano provocado não chega sequer a pôr em perigo o bem jurídico atacado.

Ainda assim, os critérios não se mostram claros o suficiente: o que é uma ação desvaliosa e quando um resultado é irrelevante? Essas perguntas permanecem em aberto, devendo ser respondidas pelo intérprete da norma penal incriminadora.

Demais disso, cada espécie delitiva comporta diferentes ângulos de avaliação sobre sua significância. Não se pode esperar que o ínfimo desvalor do resultado e da ação sempre concorram para tornar um delito de bagatela, pois nem todos os tipos penais incriminam resultados e nem todos dão importância para a ação, ainda que esta seja fundamental na teoria da tipicidade. Por exemplo, nos crimes contra a ordem tributária previstos no art. 1º da Lei 8.137/90[27], a insignificância se mede pelo valor do crédito tributário gerado em decorrência das condutas tipificadas no dispositivo, pouco importando qual foi praticada.[28] Já no crime de injúria, previsto no art. 140 do CP, o que se valora é a ação apenas, mesmo porque se trata de crime de mera conduta.

Partindo dessa premissa, tem-se que não é uma regra absoluta a concorrência do pequeno desvalor do resultado e da ação para se configurar um crime de bagatela, mas apenas em alguns tipos penais cujo desvalor de ambos é incriminado pela norma penal, embora algum prepondere. Pensamos que é valido o exposto por Sanguiné (1990:46) que, com base nas lições de Paliero, leciona:

Adquire importância também a estrutura legal do tipo, a partir das modalidades que adotam seus elementos objetivos. Se o tipo é construído sobre a mera causação do evento, se valoriza a medida da ofensa ao bem encarnado no evento; quando  o tipo dá destaque à forma de comissão de um evento ofensivo é valorizado o grau mais ou menos agressivo da conduta ocorrida, p.ex., no estelionato a modalidade do engano pode decidir sobre o caráter bagatelar do ilícito.

Outro critério para a aplicação do princípio da insignificância seria afastar a incidência do direito penal por “irrelevância do interesse tutelado”. Nessa ordem de ideias, antes de se analisar a lesão ou perigo de lesão, o próprio bem jurídico tutelado pela norma penal deve ser investigado, deve-se indagar sobre a real importância do bem para o direito penal, afastado sua condição de bem jurídico-penal se não for importante (MARTINELLI, 2008:22). Com a devida vênia, esse critério é descabido.

Como adverte Bitencourt (2011), não cabe ao juiz decidir se determinado bem possui dignidade penal ou não, eis que a seleção de bens jurídicos tuteláveis pelo direito penal (e como fazê-lo) é tarefa do legislador, não do poder judiciário, em homenagem ao princípio da separação dos poderes, insculpido no art. 2º de nossa Constituição Federal. Com toda a propriedade diz Cornejo (1997:51): “Si entendemos que un bien jurídico es aquel que merece protección por ser socialmente valioso, nunca podrá ser insignificante en sí mismo, sino que lo insignificante residirá en el grado en que se lo haya afectado”.[29]

Não olvidamos, todavia, que o legislador penal pode se exceder na incriminação e, desse modo, ofender a Constituição pátria. O porém é que, constatado esse fato, não se aplicará o princípio da insignificância, mas sim se fará um juízo de inconstitucionalidade, afastando a incidência da norma penal por motivos outros que não a bagatelaridade do ilícito.

Há, ainda, quem associe a tipicidade material à teoria da imputação objetiva[30], adotando como parâmetro a noção de risco criado. Para estes, será insignificante uma ação em que falte a criação de um risco proibido ou intolerável, ou quando esse risco criado for insignificante (CERQUEIRA, 2004:55). Diz-se que

Deparando-se com o caso concreto, o operador do direito deve analisar, primeiramente, se o risco criado pelo agente é relevante ao direito penal por meio de efetiva lesão. Se o resultado lesivo for de pouca relevância, o resultado não se encontrará no alcance da norma (MARTINELLI, 2008:26).

Para os adeptos da teoria da imputação objetiva, o enunciado faz todo o sentido. Nada obstante, não podemos resolver o problema da imprecisão conceitual do princípio da insignificância com a mesma imprecisão de que é dotada a ideia de risco criado...

Outro ponto colocado pela doutrina é que sempre se deve valorar a insignificância no caso concreto e pensando na vítima.  Diz Gomes (2009:19):

O furto de uma garrafa d’água, em princípio, é absolutamente insignificante. Mas para quem está no deserto do Saara não o é. Como se vê, ser insignificante ou não o fato depende de cada situação concreta. Uma bicicleta para um grande empresário é absolutamente insignificante. A mesma bicicleta para quem ganha R$ 200,00 por mês pode não ser.

É arriscada essa valoração. Vale a indagação feita em voto proferido pelo Desembargador Sylvio Baptista, em julgamento de embargos de declaração opostos perante a Oitava Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) com relação a acórdão julgando a apelação 70007545148. Em uma peça mal humorada (e com razão de assim ser), o magistrado faz uma pergunta retórica ao Ministério Público, que pregava justamente a valoração da condição econômica da vítima para afastar a aplicação do princípio da insignificância: “E   se   o ladrão   furtar   cem   mil   reais   de   um   grande   banco,   teremos   um   crime insignificante?”. Se a resposta for positiva e, consequentemente, a premissa de que se deve pensar na condição econômica da vítima for válida, estaremos diante de um teratológico inaceitável.

Pensamos estar com a razão Zaffaroni, Alagia e Slokar (2000:471), para quem uma lesão usualmente insignificante pode se tornar insignificante para o concreto sujeito passivo quando alguma circunstância particular deste ou de sua situação lhe cobre significação para sua existência, citando como exemplo uma lata de soda no deserto, que não é o mesmo que um café em Paris. Sendo assim, determinada lesão, em geral, ou é insignificante ou não é, independentemente da vítima; porém, a lesão pode se tornar significante, como no exemplo citado. Isso é bem diferente de usar as condições pessoais da vítima sempre como parâmetro para medir a insignificância. Pensando do nosso modo, estabelece-se que certos atos são de bagatela como regra, independentemente da condição econômica da vítima, mas, por exceção, as tradicionais bagatelas podem deixar de sê-lo.

Encerrado esse ponto, é interessante anotar certo entendimento expresso no acórdão do TJRS anteriormente citado. Assinala-se no aresto que, dentre outros fatores, a identificação de uma infração bagatelar depende da verificação, quanto agente, da “a ausência de ambição de sua parte em atacar algo mais valioso ou que aparenta ser”, como que erigindo um desvalor da intenção (CERQUEIRA, 2004) como critério para a aplicação do princípio da insignificância. Com a devida vênia, trata-se de um equívoco dos grandes.

Ora, se o fundamento da descriminalização mediante o princípio da insignificância é a ínfima afetação ao bem jurídico tutelado pela norma penal, que importância real tem a intenção do agente? Se não houve afetação digna de aplicação do direito penal, encerra-se a discussão. E não custa lembrar o velho brocardo: cogitatio nemo poena partitur. Não estando presentes os elementos objetivos e materiais do crime, pouco importa a presença de seu elemento subjetivo.

Resta, por fim, comentar sobre o que a jurisprudência pátria vem entendendo como vetor para aferição do princípio da insignificância. Os vetores usados vêm sendo quatro, desenhados no julgamento do habeas corpus (HC) 84.412-SP, julgado em 19.10.2004 pela segunda turma do Supremo Tribunal Federal, de relatoria do Ministro Celso de Mello. Na ocasião, decidiu-se que a desconsideração da tipicidade material pelo princípio da insignificância[31] dependia de: a) a mínima ofensividade da conduta do agente, b) nenhuma periculosidade social da ação, c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e d) a inexpressividade da lesãojurídica provocada.

Como se vê, os itens a e d dizem respeito, respectivamente, ao que chamamos de desvalor da ação e do resultado. Até aí, perfeito aresto. O problema são os itens b e c. O primeiro parece confundir a teoria da periculosidade social da ação, de cunho socialista, com o princípio da insignificância, que tem construção diversa, como já nos referimos. O “reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento” merece algumas reflexões.

Grau de reprovabilidade não pode ser tomado como sinônimo de culpabilidade do agente. Isso porque a insignificância se baseia na afetação do bem jurídico tutelado pela norma penal, e não no autor do fato formalmente típico. O juízo de reprovabilidade a que se refere a jurisprudência, então, só pode ser o resultado da valoração racional dos critérios de aferição da bagatelaridade, que consideramos ser o desvalor da ação e do resultado. Deve-se compreender da seguinte maneira: será de bagatela o delito se o juízo de reprovabilidade do fato, avaliados apenas o desvalor do resultado e da ação, resultar ínfimo, não se confundindo esse juízo com o de culpabilidade.

Pondo as coisas nesses termos, temos que os vetores apresentados no HC 84.412-SP, excluída a ideia de periculosidade social da ação, são condizentes com a formulação teórica da insignificância, desde que a reprovabilidade do comportamento seja entendida conforme a correção que fizemos supra.[32]

Feitas as considerações necessárias, podemos criar uma certa fórmula geral para fugir da casuística e delimitar o significante e o insignificante. Para saber se se tem em foco um delito de bagatela, deverá o intérprete: a) considerar que seu juízo sobre a relevância material da conduta terá por nortes apenas e tão-somente o desvalor do resultado e da ação; b) identificar, no tipo penal, qual o bem jurídico tutelado e a forma pelo qual é tutelado, de modo a precisar se o tipo dá mais relevância à ação ou ao resultado, desprezando o juízo de desvalor da ação ou do resultado se esta ou aquele não for relevante para configuração do tipo penal; c) proceder à avaliação dos desvalores mencionados, de acordo com o tipo, verificando apenas o grau de afetação ou de perigo de lesão ao bem jurídico protegido pela lei penal; d) após essas verificações, informadas sempre pelos princípios de direito penal, concluir se os dissabores da pena são proporcionais e necessários ao fato formalmente típico.

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Sobre o autor
Leilson Roberto da Cruz Lima

Graduando em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estagiário de Direito na área cível.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Leilson Roberto Cruz. Teoria geral da insignificância. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3627, 6 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24616. Acesso em: 26 abr. 2024.

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