“Es justo lo que es justo para todos”.
JOHN RAWLS
Uma das principais conquistas das sociedades democráticas é ter alcançado a consagração do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. O fato de que toda pessoa, com independência de sua origem, possa aceder à justiça, supõe um verdadeiro salto qualitativo, pois se todos somos iguais perante a lei, também iguais devemos ser na possibilidade de fazer valer nossos direitos ante a jurisdição de qualquer Estado. Por outro lado, a consagração deste direito como fundamental resultaria diminuída se ao mesmo tempo não se regulasse ou garantisse o direito à assistência judiciária gratuita e à justiça gratuita, que constituem seus complementos indispensáveis.
Em termos gerais, se pode definir a tutela jurisdicional efetiva como o direito que toda pessoa têm a que se lhe faça justiça, de sorte que sua pretensão seja atendida por um organismo jurisdicional, em cumprimento de um processo rodeado de garantias mínimas, isto é, um direito fundamental que assiste a toda pessoa para obter, como resultado de um processo consubstanciado com todas as garantias previstas no ordenamento jurídico, a proteção jurisdicional de seus direitos e interesses legítimos. A previsão desse direito fundamental, longe de significar uma simples proclamação de intenções não vinculantes, implica a organização de procedimentos e garantias capazes de viabilizar a efetiva tutela jurisdicional[1].
Por sua parte, a justiça gratuita é um direito constitucional com projeção processual, segundo o qual o sujeito que litigue por direitos próprios e que acredite insuficiência econômica para exercer seu direito de acesso aos tribunais, se vê exonerado de pagar todas as custas e despesas judiciais e extrajudiciais relativas aos atos indispensáveis ao andamento do processo até o seu provimento final. Engloba as custas processuais e todas as despesas provenientes do processo.
Dessa forma, o direito à tutela jurisdicional efetiva e a gratuidade judiciária formam uma espécie de simbiose cujo bom funcionamento beneficia todo aquele cidadão necessitado economicamente, e que, sofrendo lesão ou ameaça a um direito, é beneficiado com a isenção de pagamento das despesas inerentes ao processo judicial para a solução do litígio. O problema, contudo, é que nem pode haver justiça gratuita para todos, nem se pode aplicar este benefício com critérios demasiado amplos ou restritivos, de tal maneira que resulte vulnerada a tutela judicial efetiva. A questão, portanto, reside em determinar em que consiste essa relação entre o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva e o instituto da gratuidade judiciária, harmonizando-os e sem abrir mão do objetivo de reafirmar um sistema processual justo, célere e seguro, destinado a alcançar um grau tolerável de justiça social e constitucional.
De um modo geral, são duas as posições adotadas com relação a essa questão: de um lado, os defensores da tese de que a Constituição atual teria recepcionado o art. 4º da Lei nº 1.060/50, mediante o qual a concessão da gratuidade da justiça é deferida mediante apresentação de simples requerimento instruído com declaração do estado de pobreza alegado, resguardada ao juiz a possibilidade de indeferi-lo quando houver fundadas razões para fazê-lo[2]; de outro lado, os que defendem a ideia de que não tendo a Constituição Federal de 1988 recepcionado integralmente a Lei n.º 1060/50, a isenção do recolhimento de custas e da taxa judiciária só cabe quando a parte comprovar nos autos sua condição de necessitado e/ou estiver assistida pela defensoria pública[3].
Pois bem, para começar, diremos que esse tipo de discussão põe em evidência um dos mais delicados temas da teoria jurídica contemporânea: a relação entre o juridicamente permitido e o moralmente tolerável, e o problema da concorrência e/ou colisão entre princípios jurídicos consagrados na Constituição da República. No caso, uma prioritária e peculiar “contradição” ou “concorrência” entre o princípio da tutela jurisdicional efetiva (art. 5º, XXXV CF/88) e o princípio segundo o qual o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, isto é, o princípio que determina ao Estado promover as condições para que o acesso à justiça de todo cidadão sejam reais e efetivas, removendo os obstáculos que impedem ou dificultam seu pleno exercício (art. 5º, LXXIV CF/88).
Os princípios são exigências de tipo moral que estabelecem direitos e/ou deveres e que, à diferença das leis (que determinam pautas relativamente específicas de conduta), sua estrutura não contém uma previsão de fatos e uma consequência jurídica bem definida. Tal característica não somente torna impossível qualquer aplicação isolada de cada um dos princípios consagrados na Constituição, senão que supõe, por sua vez, uma tarefa de prudente ponderação e harmonização com outros princípios, igualmente válidos e relevantes, capazes de representar em um determinado momento histórico, uma fonte de exigências de diferente significado às do princípio eventualmente posto em questão. Dito de outro modo, os princípios têm uma dimensão de peso ou de importância: quando se utilizam para legislar ou resolver uma determinada situação ou conflito social, devem ser ponderados entre si e a solução, sempre condicionada às circunstâncias historicamente concretas (do caso), será aquela derivada ao peso relativo atribuído a cada um dos princípios concorrentes[4].
Na hipótese a que nos referimos, a concorrência (ou colisão) parece ocorrer entre o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e o princípio da gratuidade da justiça, sendo a garantia deste último buscada por meio de um discurso moral em que a pobreza se associa com uma “cultura da pobreza”, uma de cujas manifestações é a de que os necessitados têm uma ordem de prioridades que na maioria dos casos não reflete o que realmente necessitam (educação e saúde pública de qualidade, emprego e trabalho digno, segurança pública...) e nem tampouco o que (realmente) necessita a sociedade em seu conjunto. De acordo com seus defensores, a pobreza, ainda que só declarada (e não comprovada), é prioritária e, por definição, isto significa que deve estar livre dos riscos inerentes ao processo judicial - uma atividade estratégica que aspira, em considerável medida, obter uma utilidade e não só conhecimento verdadeiro, pois não é autônomo.
O primeiro que se deve tomar nota é o simples fato de que, em qualquer circunstância, o valor de um discurso depende dos argumentos que o preparam e o justificam. O seguinte, que não se deve deixar de observar, é o indiscutível fato de que todo discurso não costuma ser mais racional que a vontade, as emoções e o conhecimento de quem o produz – ainda que levem a maus resultados, não porque os seres humanos são incrivelmente deficientes no uso da razão, senão porque sistematicamente se esforçam por argumentos que justificam e confirmam suas crenças, inclinações e/ou suas ações.
Neste particular sentido, e pese a sua popularidade, os argumentos apresentados pelos operadores do direito que estimam que o art. 4º da Lei nº 1.060/50 foi recepcionado pela Constituição atual, traduzem uma noção pasmosamente errônea e seriamente equivocada do fenômeno da gratuidade da justiça, uma vez que manifestam uma espécie de ideologia promíscua no que à pobreza se refere, um tipo de condescendência com relação a esta que só realça a insuficiência que a caracteriza. Não tratam de expressar a realidade, senão que se limitam a usar um tipo de raciocínio tendencioso, uma fascinação perigosa pela gratuidade que favorece e apoia determinados pontos de vista que são fáceis de justificar e de receber aplausos entusiastas, mas não necessariamente melhores. Para dizer de forma mais simples, os argumentos que expressam representam os curiosos malabarismos que podem ser feitos com os princípios, normas e/ou métodos interpretativos para inferir as conclusões que valoram como positivas e que trabalham a favor de suas preferências, crenças e desejos, torcendo de forma idiossincrática o significado que atribuem à informação que tomam do mundo[5].
Como há maneiras alternativas de interpretar ou “moldurar” o que encontram nas normas e princípios, alguns operadores parecem ser bastante adictos a encontrar a conclusão (justificações e argumentos) que lhes convêm, um objetivo que lhes leva a afilar, limar e alterar seletivamente a mensagem normativa. E é precisamente através dessas facciosas inclinações das interpretações relativamente sutis que se podem encontrar muitos dos defeitos e equívocos mais significativos da pretendida gratuidade da justiça ilimitada. Parafraseando a Scott Atran, que a gratuidade sozinha basta e é suficiente para interpretar, justificar, aplicar ou superar as exigências e imposições das demais normas, princípios e valores “consagrados”, somente o concebem os acadêmicos descarrilados e algumas pessoas do grêmio dos juristas; ninguém mais[6]. Vejamos por parte.
Os princípios constitucionais em questão se caracterizam por ser o fundamento de toda ordem política democrática. Os dois são conceitos fundamentais para qualquer proposta consistente e coerente acerca de questões jurídico-processuais e morais. Assim, parece não haver lugar legítimo para uma contraposição ou irremediável vinculação entre inafastabilidade/gratuidade. O argumento d a não recepção do art. 4º da Lei nº 1.060/50 - destinada à proteção dos necessitados - viola o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, é tão demagogicamente falso, como verdadeiro é o fato de que a plena e real tutela jurisdicional efetiva, implica certo grau de restrições no que à gratuidade se refere.
É certo que as diferentes tendências de diretrizes normativas acabam por levar a soluções contraditórias, muitas vezes difíceis de aplicar na prática sem passar por cima de um ou outro preceito constitucional, ou sem buscar, pela via da interpretação, o princípio que deve prevalecer no caso de supostas contradições. Nestes casos, parece razoável inferir que a melhor postura a ser adotada pelo sujeito-intérprete deve consistir já não no fato de ponderar e aplicar um ou outro dos princípios que protagonizam a colisão ou a concorrente vinculação, senão em tratar de alcançar um estado de coisas onde todos os princípios em questão alcancem seu mais alto grau de vigência e eficácia possível.
Portanto, o primeiro a fazer é começar por afastar a falsa lógica de que a gratuidade da justiça constitui um elemento essencial ou condição sine qua non da tutela jurisdicional efetiva – aliás, uma das ideias mais estendidas e, provavelmente, um dos mitos que mais circulam no meio legal, amplamente compartilhado por alguns atores do mundo jurídico. Em efeito, o argumento de que a justiça deve ser gratuita e dessa forma garantir o acesso pleno e igualitário aos tribunais de todos que sintam afetados seus direitos, é pouco mais que uma falsa etiqueta que frequentemente não coincide com a realidade – a despeito do fato de que, em um “País de pobres”, mais se parece a um demencial idealismo[7].
A defesa incondicional da gratuidade da justiça parece esquecer que o Estado enfrenta restrições pela limitação de seus recursos, que lhe impedem garantir um efetivo, pleno e universal acesso à justiça. A administração da justiça e o Estado em geral, não dispõem de recursos ilimitados e sua escassez requer um desenho que permita distribuir ditos recursos da melhor forma possível, maximizando-os e impondo determinadas limitações. Justiça gratuita para todos, universal, não é mais que uma fantasia em um mundo de pobreza e de recursos escassos, onde os Estados somente devem aspirar, em matéria de serviços judiciais, a mais tutela, mais dissuasão de ilícitos e menos conflitualidade potencial, ao menor custo possível.[8] Ademais, a universalidade – tão peculiar nesse tipo de discurso - não demonstra nada, inclusive poderia ser suspeitosa. Se algo é universalmente admirado significa que também o admiram os malvados e os imbecis; que a gratuidade da justiça possa ser uma aspiração universal em princípio, não significa que tenha um êxito universal e que não possa servir para tudo, tanto para o bem como para o mal.
Desde um ponto de vista mais coletivo, é possível sustentar que o acesso ilimitado à justiça não será sempre socialmente desejável. Para o bem ou para o mal, isto supõe aderir a um enfoque baseado em critérios de bem-estar social, questão esta que, cabe advertir, não implica em descartar o princípio da efetiva tutela jurisdicional, no sentido de sustentar o direito absoluto de qualquer pessoa recorrer à administração da justiça. Segundo este ponto de vista, o mais razoável é sustentar a necessidade de se estabelecer critérios uniformes tendentes à regulação do acesso gratuito à justiça pelos mais necessitados, evitando dessa forma seu uso excessivo e abusivo. Como é sabido, o sistema judicial é uma instituição social custosa, cujos recursos provêm quase em sua totalidade, do aporte fiscal, resultando relevante perguntar-se se uma maior quantidade de litígios é socialmente apropriada.
Por uma parte, porque se produz uma tendência francamente negativa toda vez que uma pessoa, quando decide resolver um conflito recorrendo ao sistema judicial, não leva em consideração os custos legais que induz a outros a incorrer. De fato, o demandante, quando decide recorrer à justiça, na maioria das vezes não leva em conta, no momento de avaliar se lhe convém ou não ajuizar seu conflito ou buscar uma solução particular amigável, os custos em que deverá incorrer o demandado como resultado do processo judicial, assim como tampouco os custos que este acarretará ao sistema de administração da justiça[9].
Essa situação, isto é, a divergência que parece possível advertir entre os incentivos particulares e sociais para usar o sistema judicial, se deve, entre outras coisas, à gratuidade da justiça. Em realidade, uma desmedida gratuidade gera níveis de litigiosidade que não são ótimos desde uma perspectiva do bem-estar para o conjunto da sociedade real, toda vez que os custos (sociais e públicos) são maiores que os benefícios sociais que geram os litígios. Dito de outro modo, a gratuidade do sistema judicial incentiva o incremento de litígios a níveis socialmente inapropriados, já que as pessoas, isentas de riscos e gastos, não contabilizam, no momento de decidir litigar, todos os custos envolvidos em juízo. Ao contabilizar custos mais baixos (ou inexistentes) que os reais, já que só contabilizam os benefícios pessoais deixando de fora os custos públicos do sistema, os autores da ação, potencialmente beneficiados pela gratuidade, sempre terão incentivos para recorrer à justiça, ainda quando, desde um ponto de vista social, seja manifestamente ineficiente e minimamente custoso[10].
O excesso de litígios, por seu turno, se traduz em maior congestionamento e dilação na resolução dos conflitos. Quanto maior seja o número de processos que se ingressam nos tribunais, maior é a demora na atenção de novas pretensões e a proporção de processos resolvidos através de sentenças, diminui consideravelmente no tempo. A falta de restrições no que se refere à gratuidade da justiça provoca uma sobrecarga e delonga processual que se traduz, em termos econômicos, em um preço ao litígio, encarecendo-o e excluindo, em última instância, aos setores realmente pobres da sociedade. São estes setores que terminam subsidiando com sua exclusão aos litigantes mais favorecidos e os que se beneficiam da falta de critérios adequados para a concessão da gratuidade, assim como as grandes empresas e/ou instituições que podem suportar financeira e indefinidamente a demora nas decisões judiciais.
Da mesma forma, esse excesso de litígios e o congestionamento que implica se traduzem também em uma menor qualidade das decisões judiciais. Dita menor qualidade torna mais provável a existência de erros e equívocos judiciais ao diminuir o tempo destinado à avaliação dos argumentos das partes e ao devido valor das provas apresentadas no processo[11]. Frente a um alto nível de demanda, é inevitável que os tribunais terminem alargando a duração dos juízos ou estabeleçam mecanismos de seleção que na maioria das vezes não estão contemplados na lei, nem há possibilidade de controlá-los, e que implicam, de fato, em não resolver de maneira adequada ou em retardar indefinidamente a resolução dos conflitos.
Todos sabemos que os labirintos dos tribunais estão entre os lugares mais inseguros do País e que impetrar uma ação judicial, na grande maioria das vezes, representa para o cidadão (pela enraizada, pervertida e “caconômica”[12] morosidade da justiça) uma verdadeira “suspensão” de sua dignidade. Todos temos uma ideia fixa, verdadeira ou não, comprovável ou não, do imperfeito, demorado e às vezes deficiente desempenho do Poder Judiciário. Mas há um limite. Não se pode permitir que alguns operadores jurídicos confundam a gratuidade com uma ferramenta ocasional de critérios e idiossincrasias pessoais, mais que de critérios jurídicos e interesses comunitários. A gratuidade só é boa se é eficaz, ao menos na medida em que possa ser concedida sem faltar por isso a nenhum outro dever jurídico mais alto e/ou interesse social mais urgente.
Por último, um nível de processos ineficiente, sobre os níveis ótimos desde um ponto de vista social, tem consequências adversas para as pessoas de escassos recursos e que realmente necessitam da tutela jurisdicional. Isto, somado à gratuidade da justiça, termina excluindo aos mais pobres, aos verdadeiramente necessitados, do sistema judicial. E o argumento é simples. Um novo usuário do sistema judicial, despreocupado com o pagamento das custas processuais e não tendo nada que perder, no contexto de tribunais sobrecarregados de trabalho (principalmente produto do alto número de processos que se tramitam hoje em dia), importa um prejuízo real para que outros potenciais litigantes, principalmente os que efetivamente necessitam do amparo da gratuidade, possam usar eficazmente o sistema por meio de alguma forma de assistência jurídica gratuita.
Claro que uma das características de uma sociedade justa é sua maneira de tratar aos pobres, mas o que não parece definitivamente prudente é que em nome de um sentimento de piedade em relação aos “desgraçados” em geral, não se duvide em fazer alguns “desgraçados” mais (Hannah Arendt). A gratuidade não é a regra, senão uma exceção. Considerada em si mesmo, é secundária, irrisória, quase insignificante; comparada com o princípio da inafastabilidade do controle judicial ou da tutela jurisdicional efetiva (aplicável a todo e qualquer cidadão independentemente de sua situação econômica) não é praticamente nada. E isto é o que a gratuidade, como instituto processual de exceção, deve também expressar: quando concedida irrestritamente representa um descomedido gasto de recursos públicos, com graves consequências para os demais membros da comunidade e para o Estado[13].
Essas circunstâncias, por si só, já deveriam obrigar o juiz, na tarefa interpretativa de delimitação do sentido e alcance da gratuidade da justiça, a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre os fatos, as normas constitucionais e infraconstitucionais a concretizar, de tal forma que considere, através de alternativas reais e factíveis, os princípios e normas aplicadas não como regras isoladas e/ou dispersas, mas sim como preceitos integrados em um sistema unitário e aberto de normas, princípios, direitos e garantias assegurados na Constituição da República, sob pena de destruição da unidade axiológico-constitucional do ordenamento jurídico.
Trata-se, ademais, de pôr em prática uma ética da responsabilidade, segundo a qual, sem renunciar aos princípios e normas constitucionais (como poderia fazê-lo?), se preocupa também com as consequências previsíveis de suas respectivas aplicações. Um bom princípio ou norma, considerado isoladamente, pode conduzir a uma catástrofe, e a pureza dos motivos relativos a uma situação de pobreza, não devidamente demonstrada, jamais bastará para impedir algo pior. Há que desconfiar desses operadores do direito ofuscados pela pobreza, dominados por determinados princípios ou normas para considerar a sociedade e o Estado, seguros de suas intenções e crenças para preocupar-se das consequências de seus argumentos. A pobreza não é uma garantia, nem a gratuidade uma escusa.
Em outras palavras, a pobreza não é suficiente para a gratuidade; também é necessário saber escolher os meios adequados para protegê-la. Um princípio ou uma norma sem prudência é cego e perigoso. “Caute” dizia Baruch Spinosa. É a máxima da prudência: há que desconfiar também da gratuidade quando esta desconhece seus limites e/ou suas incertezas. É imprudente escutar somente à gratuidade, e é imoral ser imprudente. Depois de tudo, a miséria é um problema social e exige uma solução social e ação política concretas para erradicá-la; o Judiciário não está obrigado a fazer o impossível.
Por conseguinte, a não limitação da gratuidade, que nos condena à litigiosidade, à ineficiência judicial, à eternização dos litígios e/ou ao desprestígio da própria justiça, parece mais uma enfermidade ou deficiência da imaginação, uma incapacidade para deliberar corretamente acerca do que é bom ou mau para a cidadania (não em si mesma, senão no contexto da sociedade e do Estado) e para atuar, em consequência, de acordo com os bons meios para determinar o que e quando é necessário decidir a favor da gratuidade e o que e quando há que denegá-la. Não é questão de suprimir a gratuidade – a insensibilidade é um defeito -, mas sobretudo, e na medida do razoável, de controlá-la, de regulá-la e/ou de limitá-la. Uma tarefa, aliás, que depende menos do dever institucional que do sentido comum.
A conclusão de tudo isto não poderia ser mais simples: a suposição de que a “pobreza” equivale incondicionalmente à “gratuidade” é errônea. Daí a necessidade e o inteiro acerto de se instituir critérios adequados e realistas, ainda que aproximativos, para a concessão da gratuidade judiciária, isto é, de se estabelecer um equilíbrio entre este instituto de ordem processual e o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva, acusadamente no que se refere ao direito fundamental de todo cidadão (rico ou pobre) a um processo célere, imparcial, seguro e justo.
Afinal, se é certo que a “justiça tardia não é justiça” [... é vingança ou castigo], não menos certa é a constatação de que a base da sociedade é a justiça, que o julgamento constitui a ordem da sociedade, e que, por isso, um julgamento célere, reto e eficaz representa a mais legítima expressão da aplicação da justiça (Aristóteles). Dito de outro modo, a negação da justiça em virtude de sua lenta e/ou tardia realização é infinitamente mais indesejável que a exigência de limites ou restrições para a concessão dos benefícios da justiça gratuita.