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Histórico do Direito das Sucessões

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18/06/2013 às 19:58
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Formula-se um histórico do direito das sucessões para demonstrar que é necessária a reintrodução do Estado na ordem de vocação hereditária.

Sumário: 1. Conceito preliminar: sucessões. 2. Histórico. 2.1 Antiguidade: direito e religião. 2.2 A Lei mosaica (1.200 a.c.) .2.3 O Código de Hamurabi. 2.4 O Código de Manu: a questão do filho primogênito na antiguidade. 2.5 Grécia antiga. 2.6 Direito romano. 2.7 Idade Média. 2.8 O Século das luzes: revolução francesa e revolução industrial. 2.9 O Código Napoleão. 2.10 O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB) . 2.11 A Revolução Russa de 1917. 2.12 A contemporaneidade. 2.13 Brasil. 2.13.1 Antes do Código Beviláqua. 2.13.2 O Código de 1916. 2.13.3 O Código de 2002. Conclusão.


INTRODUÇÃO

O presente trabalho objetiva fazer uma análise de questões históricas de formação do Direito das Sucessões, tendo em vista a relevância de tal análise para a compreensão do estágio atual do Direito.

José Reinaldo de Lima Lopes,[1] em obra específica sobre o Direito na História, chama a atenção para o fato de que, nos últimos tempos, uma nova metodologia de pesquisa histórica tem sido utilizada, não mais baseada no mero registro dos fatos ocorridos a partir das estruturas estatais, mas também tomando como base o cotidiano e as questões materiais destacadas nas pesquisas. Assim, por exemplo, provoca o autor a imaginação do leitor com questões do tipo:

“Quando foi mesmo que o relógio foi colocado nas torres das praças das cidades?; Quando foi que se passou a contar as horas como fazemos hoje, substituindo o modo romano de dividir o dia em períodos, que equivalem para nós a muitas horas?”.

E prossegue tecendo considerações provocantes a respeito do necessário esforço que deve fazer o pesquisador para que a análise que faz, o texto que pesquisa, o estudo que inicia, sejam tratados com muito cuidado, uma vez que aquilo que se registra não necessariamente corresponde à realidade. Suspeitar do poder, suspeitar do romantismo das escritas, suspeitar das continuidades históricas, suspeitar da ideia de progresso e evolução são algumas das recomendações de José Reinaldo Lopes a quem se propõe a escrever sobre o passado.

No presente trabalho, dada natureza do objeto a ser analisado, a análise histórica configura importante meio de sistematização dos processos que nos trouxeram até a atual fase do direito e as percepções que podemos ter para o futuro. Deste modo, não é salutar que se descure deste relevante ponto.

A análise histórica faz-se necessária por conta da necessidade de disciplina metodológica a ser empregada para dar ao direito status de ciência.

O historicismo metodológico, que privilegia a análise da história como alicerce do conhecimento crítico em ciências sociais, é colocado em oposição, por alguns autores,[2] ao individualismo metodológico, concepção que empresta maior valor aos conceitos abstratos que orientam as ações individuais, afastando, assim, concepções coletivistas no estudo das ciências sociais, dentre elas o direito.

Karl Popper opõe-se fortemente ao historicismo metodológico, imputando a ele forte tendência a procurar antecipações de ocorrências sociais a largo tempo e, com base em fatos, chegar a previsões com “precisão astronômica”, o que seria impossível em face da complexidade dos eventos sociais.[3]

A análise histórica em ambiente filosófico que logo chegou às ciências sociais e, obviamente, ao direito, surge, como assevera Jürgen Habermas,[4] a partir de Hegel e da tomada de consciência da temporalidade própria da modernidade.

É a partir dela (da modernidade), e sua propensão a voltar-se sempre para o futuro, que há a tomada de ciência da dinâmica espaço-temporal na qual está inserida.

A partir de Hegel – ainda que de modo diverso – Karl Marx utiliza-se de construções baseadas na análise histórica para desenvolver sua dialética marxiana, e, daí em diante, o método histórico ganha forte impulso e diferentes concepções, especialmente para os teóricos da Escola de Frankfurt (Adorno, Marcusi, Horkheimer, Benjamin etc.).

No direito o método é utilizado principalmente pela Escola Histórica do Direito (de caráter mais metafísico), pois busca fundamento na racionalidade de uma lei positiva que é desenvolvida historicamente pela consciência do povo [volksgeist][5] e pela Escola Crítica do Direito, de bases frankfurtianas.

Embora a forma de análise das instituições do direito variem, há uma motivação muito simples para a utilização da análise histórica, especialmente em sede de direito civil: os institutos jurídicos nascem e se desenvolvem a partir da experiência humana incubada na consciência e na ação sociais o que leva à conclusão que voltar-se para o passado é condição necessária para compreender as construções teóricas do presente e aperfeiçoar o ordenamento para que no futuro seja recebido com menor grau de complexidade pela sociedade, realizando, assim, a função a que o direito está destinado: cuidar da estabilização das expectativas normativas da sociedade.

Sob outro aspecto – que não deixa de ser relevante –, Miguel Reale classifica como sociologismo jurídico “todas as teorias que consideram o direito sob o prisma predominante, quando não exclusivo, do fato social, apresentando-o como simples componente dos fenômenos sociais e suscetível de ser estudado segundo nexos de causalidade não diversos dos que ordenam os fatos do mundo físico”.[6]-[7]

Mas é justamente para observar o fenômeno jurídico sob os três aspectos dinâmicos apontados pela teoria tridimensionalista do direito de Reale, é que o estudo das bases fundamentais dos institutos jurídicos ao longo dos principais períodos históricos se faz necessária.

Essa relação entre direito e história é tão forte que Reale, ao abrir o Título X de sua obra Filosofia do direito, reservada à teoria tridimensional, intitula o Capítulo XXXIV – inicial ao tema –, de “O termo ‘direito’ e sua tríplice perspectiva histórica” (grifo nosso).[8]

E será para escapar das análises simplistas que não enxergam no Código Civil de 2002 senão uma mera modificação caprichosa do Código Civil de 1916, que a análise das fundações que historicamente influenciaram – e continuam a influenciar – nas modificações do direito, dão base ao presente estudo.

Assim, a análise histórica servirá como um instrumento que nos possibilite mergulhar na nova realidade do direito das sucessões. Realidade esta marcada por um direito civil modernizado e que espera do jurista, quando de sua interpretação e aplicação prática, uma análise complexa – porém completa –, que caminha dos fatos sociais para as normas positivadas, sempre com a observação dos valores sociais que configuram importantes vetores a guiar os outros dois elementos acima citados.

Ao longo dos principais períodos históricos, demarcados por fatos relevantes que modificaram o rumo da existência humana e, especialmente do direito, podemos, enfim, observar o desenvolvimento dos institutos, em específico, de fatores axiológicos relativos ao ser humano, com as consequentes inflexões no direito e, sem a pretensão de aplicar lógica cartesiana à ciência do direito, podemos compreender e, talvez, contribuir para a evolução da ciência do direito.

O presente trabalho terá um objeto específico de observação científica: o direito das sucessões. E dentro dele, verificaremos o Estado como sucessor de particulares em determinadas situações, observando as razões pelas quais o legislador de 2002 retirou o Estado da ordem de vocação hereditária.


1 CONCEITO PRELIMINAR: SUCESSÕES

Clóvis Beviláqua[9] ensina que a sucessão causa mortis, também chamada hereditária, é a “transmissão dos direitos e obrigações de uma pessoa morta a outra sobreviva, em virtude da lei ou da vontade do transmissor”.

A palavra “suceder”, no dizer de Caio Mário da Silva Pereira,[10] “tem o sentido genérico de virem os fatos e fenômenos jurídicos uns depois dos outros (sub + cedere). Sucessão é a respectiva sequência”. Continua:

“No vocabulário jurídico, toma-se a palavra na acepção própria de uma pessoa inserir-se na titularidade de uma relação jurídica que lhe advém de outra pessoa, e, por metonímia, a própria transferência de direitos, de uma a outra pessoa”.

Da sucessão hereditária, ou causa mortis, continua Caio Mário:

“Não se exclui a participação volitiva, que subsiste ao lado da que opera apenas ope legis. Esta última chama-se legítima, e aquela outra recebe o nome de testamentária, porque o testamento é o instrumento da manifestação de vontade destinado a produzir consequências jurídicas com a morte”.

Rubens Limongi França[11] refere-se ao tema utilizando a expressão “direito das heranças”, definindo a herança como sendo a “sucessão na universalidade dos direitos que possuía o defunto”, definição trazida do Digesto.

Em todas essas definições, temos um caráter comum que servirá a este trabalho: o direito das sucessões trata da transferência dos direitos e das obrigações de uma pessoa natural a outrem, em virtude de sua morte.

Ou seja, as relações jurídicas firmadas por alguém durante sua vida, em regra, não deixam de existir pelo simples fato da morte do titular. Elas se transferem a terceiros, seja por vontade do de cujus, seja por imposição da lei. Giselde Hironaka,[12] falando sobre as modificações a partir do Código de 2002, salienta:

“Em todo momento de transição legislativa, surge sempre renovada a questão de se reavivar os fundamentos do direito sucessório como forma de justificar a transmissão da titularidade de direitos e obrigações que compunham o acervo do ser humano que falece. Adiante-se que o fundamento da sucessão modificou-se ao longo da história, influenciado pelos movimentos econômicos e sociais verificados. O que não se modificou, entretanto, foram os seus pressupostos considerados de forma abstrata: a morte e a vocação hereditária. A sucessão pressupõe a morte que, natural ou presumida, põe fim à existência da pessoa natural. Mas não basta a morte. A sucessão pressupõe, ainda, a vocação hereditária que pode ter sido instituída pelo de cujus quando em vida (fonte imediata), de forma ampla ou restrita, decorrente do poder de designar herdeiros, ou ainda por disposição legal supletiva (fonte mediata). O poder de designar herdeiros encontra, no mais das vezes, limitação na legislação ou nos costumes de todos os povos, tendo havido épocas em que tal limitação foi absoluta, mormente em decorrência de motivos de ordem religiosa. Contudo, a ausência do poder de designar herdeiros não acarreta a ausência do pressuposto da vocação hereditária. Herdeiro há. O que não há – em certas épocas ou lugares – é a liberdade de instituí-lo segundo critérios que o autor da herança julgasse apropriados. Presentes, portanto, ambos os pressupostos – morte e vocação hereditária – legitimada estará a sucessão.”

A partir do tópico seguinte, discorreremos sobre a questão histórica de formação do direito das sucessões.


2 HISTÓRICO

2.1 Antiguidade: Direito e Religião

Na Antiguidade, a separação entre diversos ramos das ciências não eram tão claros como na atualidade de modo que vestígios do pensamento jurídico são encontrados em textos literários, políticos etc.

Partindo-se do Oriente próximo para o Ocidente europeu, pode-se verificar alguns textos com conteúdo jurídico que podem ser assim apresentados:

2.2 A Lei Mosaica (1.200 a.C.)

Com relação ao povo judeu, há claros traços jurídicos no texto no corpo do Pentateuco, inclusive no que tange ao direito das sucessões.

Nesta tradição, o primeiro ponto relevante está na vinculação da pessoa com toda sua linha de antepassados, o que demonstra a firmeza da vinculação individual à família dando a esta relação um caráter bastante sacro.

“1. Então vieram as filhas de Zelofeade, filho de Hefer, filho de Gileade, filho de Maquir, filho de Manassés, das famílias de Manassés, filho de José; e os nomes delas são estes: Macla, Noa, Hogla, Milca e Tirza;

2. apresentaram-se diante de Moisés, e de Eleazar, o sacerdote, e diante dos príncipes e de toda a congregação à porta da tenda da revelação, dizendo:

3. Nosso pai morreu no deserto, e não se achou na companhia daqueles que se ajuntaram contra o Senhor, isto é, na companhia de Corá; porém morreu no seu próprio pecado, e não teve filhos.

4. Por que se tiraria o nome de nosso pai dentre a sua família, por não ter tido um filho? Dai-nos possessão entre os irmãos de nosso pai.”

A questão posta perante uma espécie de Conselho (que reunia o líderes religiosos e líderes políticos) dizia respeito à morte do patriarca familiar sem que houvesse herdeiro do sexo masculino que receberia os bens deixados pelo de cujus. As filhas e os tios reivindicavam a fortuna deixada pelo falecido.

A súplica das irmãs reflete o caráter eminentemente masculino da linha de sucessões do patrimônio até então empregada naquela sociedade. A resposta ao pedido foi a seguinte:

“5. Moisés, pois, levou a causa delas perante o Senhor.

6. Então disse o Senhor a Moisés:

7. O que as filhas de Zelofeade falam é justo; certamente lhes darás possessão de herança entre os irmãos de seu pai; a herança de seu pai farás passar a elas.

8. E dirás aos filhos de Israel: Se morrer um homem, e não tiver filho, fareis passar a sua herança à sua filha.

9. E, se não tiver filha, dareis a sua herança a seus irmãos.

10. Mas, se não tiver irmãos, dareis a sua herança aos irmãos de seu pai.

11. Se também seu pai não tiver irmãos, então dareis a sua herança a seu parente mais chegado dentre a sua família, para que a possua; isto será para os filhos de Israel estatuto de direito, como o Senhor ordenou a Moisés.”

Ou seja: daquele momento em diante passou-se a utilizar um paradigma mais centrado no núcleo familiar em sentido estrito, independentemente do sexo do descendente direto a herdar.[13]

Há que se considerar, também, a manutenção de um direito sucessório restrito à família do de cujus, sem intervenção pública, ou seja, não há remissão a uma coleta por parte da coletividade, dos bens do falecido em caso de inexistência de parentes.

O trecho ora transcrito apresenta: a modificação das normas sucessórias e a inexistência de repartição dos bens para a coletividade. O montante do patrimônio era preservado dentro da família consanguínea, sem que houvesse preocupação de redistribuição de riquezas na sociedade.

Havia, portanto, um direito eminentemente privatístico, patriarcal e preocupado com a manutenção do status quo.

2.3 O Código de Hamurabi

Um dos primeiros (remonta aproximadamente 2.000 anos a.C.) aparatos legislativos sistematizados do direito universal, o Código de Hamurabi (rei da Babilônia),[14] “abrangia questões como agricultura pecuária, funcionários, médicos, mestres de obra, contratos de empréstimo, de mediação, de comissão, salário de marinheiros, responsabilidade do barqueiro no caso de perda a ele imputável, do barco e da carga etc.” e foi uma das codificações que mais influenciou os direitos dos povos da Assíria, da Judeia e da Grécia.

Nele, havia normatizações sobre o direito das sucessões como as que seguem:

“162º Se alguém toma uma mulher e ela lhe dá filhos, se depois essa mulher morre, seu pai não deverá intentar ação sobre seu donativo; este pertence aos filhos.

163º Se alguém toma uma mulher e essa não lhe dá filhos, se depois essa mulher morre, e o sogro lhe restitui o presente nupcial que ele pagou à casa do sogro, o marido não deverá levantar ação sobre o donativo daquela mulher, este pertence à casa paterna.

164º Se o sogro não lhe restitui o presente nupcial, ele deverá deduzir do donativo a importância do presente nupcial e restituir em seguida o donativo à casa paterna dela.

165º Se alguém doa ao filho predileto campo, horto e casa e lavra sobre isso um ato, se mais tarde o pai morre e os irmãos dividem, eles deverão entregar-lhe a doação do pai e ele poderá tomá-la; fora disso se deverão dividir entre si os bens paternos.

(...)

167º Se alguém toma uma mulher e esta lhe dá filhos, se esta mulher morre e ele depois dela toma uma segunda mulher e esta dá filhos, se depois o pai morre, os filhos não deverão dividir segundo as mães; eles deverão tomar o donativo de suas mães mas dividir os bens paternos ente si.

(...)

170º Se a alguém sua mulher ou sua serva deu filhos e o pai, enquanto vive diz aos filhos que a serva lhe deu: "filhos meus", e os conta entre os filhos de sua esposa; se depois o pai morre, os filhos da serva e da esposa deverão dividir conjuntamente a propriedade paterna. O filho da esposa tem a faculdade de fazer os quinhões e de escolher.

171º Se, porém, o pai não disse em vida aos filhos que a serva lhe deu: "filhos meus", e o pai morre, então os filhos da serva não deverão dividir com os da esposa, mas se deverá conceder a liberdade à serva e aos filhos, os filhos da esposa não deverão fazer valer nenhuma ação de escravidão contra os da serva; a esposa poderá tomar o seu donativo e a doação que o marido lhe fez e lavrou por escrito em um ato e ficar na habitação de seu marido; enquanto ela vive, deverá gozá-la, mas deverá vendê-la por dinheiro. A sua herança pertence aos seus filhos.

(...)

172º Se a mulher quer deixá-la, ela deverá abandonar aos seus filhos a doação que o marido lhe fez, mas tomar o donativo de sua casa paterna. Ela pode desposar em seguida o homem de seu coração.

173º Se esta mulher lá para onde se transporta, tem filhos do segundo marido e em seguida morre, o seu donativo deverá ser dividido entre os filhos anteriores e sucessivos.

174º Se ela não pare de segundo marido, deverão receber o seu donativo os filhos do seu primeiro esposo.

174º Se ela não pare de segundo marido, deverão receber o seu donativo os filhos do seu primeiro esposo.

(...)

177º Se uma viúva, cujos filhos são ainda crianças, quer entrar em uma outra casa, ela deverá entrar sem ciência do juiz. Se ela entra em uma outra casa, o juiz deverá verificar a herança da casa do seu precedente marido. Depois se deverá confiar a casa do seu precedente marido ao segundo marido e à mulher mesma, em administração, e fazer lavrar um ato sobre isto. Eles deverão ter a casa em ordem e criar os filhos e não vender os utensílios domésticos. O comprador que compra os utensílios domésticos dos filhos da viúva perde seu dinheiro e os bens voltam de novo ao seu proprietário.

178º Se uma mulher consagrada ou uma meretriz, às quais seu pai fez um donativo e lavrou um ato sobre isso, mas no ato não ajuntou que elas poderiam legar o patrimônio a quem quisessem e não lhe deixou livre disposição, se depois o pai morre, os seus irmãos deverão receber o seu campo e horto e na medida da sua quota dar-lhe o trigo, azeite e leite e de modo a contentá-las. Se seus irmãos não lhes dão trigo, azeite e leite na medida de sua quota e a seu contento, dever-se-á confiar o campo e horto a um feitor que lhes agrade e esse feitor deverá mantê-las. O campo, o horto e tudo que deriva de seu pai deverá ser conservado por elas em usufruto enquanto viverem, mas não deverão vender e ceder a nenhum outro. As suas quotas de filhas pertencem a seus irmãos.

179º Se uma mulher consagrada ou uma meretriz, às quais seu pai fez um donativo e lavrou um ato e acrescentou que elas poderiam alienar a quem lhes aprouvesse o seu patrimônio e lhes deixou livre disposição; se depois o pai morre, então elas podem legar sua sucessão a quem lhe aprouver. Os seus irmãos não podem levantar nenhuma ação.

180º Se um pai não faz um donativo a sua filha núbil ou meretriz e depois morre, ela deverá tomar dos bens paternos uma quota como filha e gozar dela enquanto viver. A sua herança pertence a seus irmãos.

181º Se um pai consagra a Deus uma serva do templo ou uma virgem e não lhes faz donativo, morto o pai, aquelas receberão da herança paterna um terço de sua quota de filha e fruirão enquanto viverem. A herança pertence aos irmãos.

182º Se um pai não faz um donativo e não lavra um ato para sua filha, mulher consagrada a Marduk de Babilônia, se depois o pai morre, ela deverá ter designada por seus irmãos sobre a herança de sua casa paterna um terço da sua quota de filha, mas não poderá ter a administração. A mulher de Marduk pode legar sua sucessão a quem quiser.

183º Se alguém faz um donativo à sua filha nascida de uma concubina e a casa, e lavra um ato, se depois o pai morre, ela não deverá receber parte nenhuma da herança paterna.

184º Se alguém não faz um donativo a sua filha nascida de uma concubina, e não lhe dá marido, se depois o pai morre, os seus irmãos deverão, segundo a importância do patrimônio paterno, fazer um presente e dar-lhe marido.”

Havia limitações à vontade do patriarca e critérios para a seleção e distribuição dos bens do de cujus segundo as relações familiares que eram estabelecidas (filhos do casamento, filhos de servas, mulheres casadas pela primeira vez, dotações para filhas) e segundo o livre arbítrio do de cujus, ainda que em prejuízo de outros filhos, como no caso do filho predileto.

Estabelecia-se em determinados casos, por exemplo, mero direito de uso e fruição mas sem a transmissão.

2.4 O Código de Manu: a questão do filho primogênito na Antiguidade

O Código de Manu, formulado dez séculos depois do Código de Hamurabi, tem influenciado os povos hindus, referindo-se à religião dos brâmanes. “Manu foi apenas um pseudônimo da classe sacerdotal. Havia sempre o proclama de uma emanação divina em todas as leis divinas, como já dissemos. Era um meio astucioso de corresponsabilizar os deuses pelos interesses humanos”.[15] Nele estava previsto:

“XX – Da Sucessão Hereditária

Art. 521º Depois da morte do pai e da mãe, que os irmãos, se tendo reunido, partilhem entre si igualmente os bens de seus pais, quando o irmão mais velho renuncia a seu direito; eles não são donos de tais bens durante a vida daquelas duas pessoas, salvo se o pai mesmo tenha preterido partilhar esses bens.

Art. 522º Mas, o mais velho, quando ele é eminentemente virtuoso, pode tomar posse do patrimônio em sua totalidade; e os outros irmãos devem viver sob sua tutela, como viviam sob a do pai.

Art. 523º No momento de nascer o mais velho, antes mesmo que a criança tenha recebido os sacramentos, um homem se torna pai e paga sua dívida para com seus antepassados; o filho mais velho deve ter tudo.

Art. 524º O filho, pelo nascimento do qual um homem paga sua dívida e obtém a imortalidade, foi engendrado para o cumprimento do dever; os sábios consideram os outros como nascidos do amor.

Art. 525º Que o filho mais velho, quando o bem não é partilhado, tenha pelos seus jovens irmãos a afeição de um pai pelos seus filhos; estes devem, segundo a lei, se comportar para com ele como para um pai.

Art. 526º O filho mais velho faz prosperar a família ou a destrói, segundo ele é, virtuoso ou perverso; o mais velho neste mundo é o mais respeitável; o mais velho não é tratado com desprezo pelas pessoas de bem.

Art. 527º O irmão mais velho que se conduz como um primogênito deve fazê-lo, é venerável como um pai ou uma mãe; se ele não se conduz como tal, deve ser respeitado como um presente.

Art. 528º Que os irmãos vivam reunidos ou separados, se eles têm o desejo de cumprir separadamente os deveres piedosos; pela separação, os atos piedosos são multiplicados; a vida separada é, pois, virtuosa.

Art. 529º É preciso separar para o mais velho a vigésima parte da herança com o melhor de todos os móveis; para o segundo, a metade desta, ou uma quadragésima; para o mais moço, a quarta ou uma octogésima.

Art. 530º Que o mais velho e o mais novo tomem cada um seu quinhão, como foi dito e que os que se acham entre os dois, tenham cada um, uma parte média, ou uma quadragésima.

Art. 531º De todos os bens reunidos, que o primogênito tome o melhor, tudo que é excelente em seu gênero e o melhor de dez bois ou outros animais, se ele sobrepuja seus irmãos em boas qualidades.

(...)

Art. 535º Que os irmãos dêem, cada um de seu quinhão, certa parte a suas irmãs pela mesma mãe e não casadas, a fim de que elas possam casar; que eles dêem o quarto de sua parte; os que recusarem serão degradados.

(...)

Art. 543º Aquele que não tem filho macho pode encarregar sua filha de maneira seguinte de lhe criar um filho dizendo: que o filho macho que ela puser no mundo seja meu e cumpra em minha honra a cerimônia fúnebre.

(...)

Art. 546º O filho de um homem é como ele mesmo; e uma filha encarregada do ofício designado, é como um filho; quem, pois, poderia recolher a herança de um homem que não deixa filho, quando ele tem uma filha, que faz uma mesma alma com ele?

(...)

Art. 631º Se irmãos, vivendo em comum com seu pai, reúnem seus esforços para mesma empresa, o pai não deve nunca fazer partes desiguais dividindo o lucro.

Art. 632º Que o filho nascido depois de uma partilha dos bens feita pelo pai, durante a vida, tome posse da parte de seu pai ou então, se os irmãos que tinham dividido com seu pai, têm de novo reunido o lote ao seu, que ele divida com eles.

Art. 633º Se um filho morre sem filhos e sem mulher, o pai ou a mãe deve herdar de sua fortuna; a mãe sendo morta, que a mãe do pai ou a avó paterna tomem os bens na falta de irmãos e de sobrinhos.

(...)

Art. 636º As leis das heranças e as regras que concernem aos filhos, a começar pelo da esposa, acabam de ser expostas sucessivamente; conhecei a lei que tem relação com jogos de azar.”

Há uma sobrelevação do primogênito em relação aos demais. As regras de sucessão são exaustivas também por importarem em transmissão de deveres de caráter religioso, existentes desde a obrigação religiosa e cultural de cuidado com os antepassados falecidos “neste plano” mas imortalizados por seus descendentes.[16]

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Na verdade, a herança que privilegiava o primogênito era uma constante, não apenas entre os hindus, mas também entre os gregos e os romanos. O fundamento era a perpetuação da família pelo cultivo dos rituais domésticos e esta perpetuação era favorecida com a manutenção do patrimônio familiar nas mãos do menor número possível de descendentes.

Assim, o que deveria ser mantido gerações após gerações era o grupo familiar, o culto aos antepassados, a manutenção do patrimônio, não em função da riqueza, mas em razão da garantia de continuidade do culto familiar.

Por tais motivos, caso o patriarca não tivesse filho, deveria adotar um menino para manter a família, pouco importando o laço de sangue, desde que estivesse assegurado o ritual de entrada do novo homem na família.[17]

Há que se destacar que o sentido atual de individualidade não existia nesse contexto histórico. As relações não se voltavam para o indivíduo, mas para a coletividade que formava a cidade. Assim, era necessário que as família dos fundadores, detentores do poder, da autoridade e das riquezas, fossem preservadas, importando menos as pessoas que compunham esse universo.

Ao mencionar a importância do sistema formado por família/propriedade/religião, Coulanges[18] destaca “três coisas que tiveram entre si, na origem, uma relação evidente, e que parecem terem sido inseparáveis.

“A ideia de propriedade privada fazia parte da própria religião. Cada família tinha seu lar e seus antepassados. Esses deuses não podiam ser adotados senão por ela, e não protegiam senão a ela; eram sua propriedade exclusiva”.[19]

Os “lares”, espíritos dos antepassados, estavam ligados ao local e eram reverenciados pelos patriarcas das famílias. Eles eram a forma de chegar ao plano matafísico, de relacionar-se com ele.

A pólis completa esse sistema por representar a união das famílias originais que formavam a localidade, detinham as propriedades e haviam fundado-a. Ela pertencia a todos eles, aos fundadores e seus descendentes.

A propriedade, portanto, assim como o culto aos antepassados e aos deuses era algo que pertencia à família, sendo o patriarca o guardião do conjunto, não em seu próprio nome, mas em nome de todo clã. Aqui estava a legitimidade das decisões coletivas.

Dentro deste contexto, não havia espaço para a sucessão testamentária, haja visto que o patrimônio não podia ser disponibilizado pelo patriarca da forma que bem entendesse, mas da maneira como a tradição determinava.

2.5 Grécia Antiga

A formação grega pende para a exaltação da coletividade, da pólis e de sua tradição. O individualismo, portanto, não é suficiente para justificar a plena liberdade de testar e o aprofundamento de questões do direito por meio de escolas.

O direito é visto como parte da formação grega; todo grego aprendia o teor das leis porque isso representava refinamento de sua formação. Era parte da vida de todo cidadão bem educado.

As relações privadas não eram preocupação corrente na Grécia, voltada para a manutenção da polis.

A sucessão na Grécia vinculava-se à tradição e à conservação do patrimônio dentro do grupo familiar, até porque cada grupo tradicional possuía relação uterina com a formação da Cidade.

Suceder o patrimônio de alguém possuía um significado mais profundo do que o atual.

A palavra patrimônio organiza-se em torno de dois vocábulos: “pater” e “nomos”. Pater significa o título de respeito dado aos deuses ou heróis, “chefe de família”, ou em sentido mais amplo, os “antepassados”. Francisco Torrinha:[20] acrescenta:

“a) é um termo genérico, contraposto a mater, sem envolver a ideia de paternidade física, expressa por parens ou genitor; b) o pater tem um valor social, quer como dono da casa, quer como representante na série de gerações; c) e por isso emprega-se como termo de respeito quer em relação aos homens, quer em relação aos deuses, como: pater Aeneas pater omnipotens, patres conscripti).”

A palavra estava associada, também, aos bens, posses ou heranças deixados pelos antepassados para determinado agrupamento social, tanto de ordem material como imaterial.

Nomos origina-se do grego e se relaciona à lei, usos e costumes relacionados à origem, tanto de uma família quanto de uma cidade. O "nomos" relaciona-se com o grupo social. O patrimônio pode ser compreendido, portanto, como o legado de uma geração ou de um grupo social para outro.

Pela tradição apenas o filho primogênito herdava o patrimônio, inclusive realizando os cultos domésticos aos antepassados.

Sólon (VI a.C.), poeta-legislador foi o responsável por modificações legislativas que ampliaram o direito de sucessões em Atenas, tornando todos os filhos paritários em relação à herança.

2.6 Direito romano

José Cretella Jr.[21] Menciona que o direito romano utilizou, ao longo dos vários séculos de seu desenvolvimento (desde a fundação de Roma, em 753 a.C., até o Digesto de Justiniano em VI d.C.) quatro sistemas:

I) Sistema das XII Tábuas;

II) Sistema do direito pretoriano;

III) Sistema do direito imperial;

IV) Sistema de Justiniano.

Dois princípios regulam o direito das sucessões no período de tempo marcado pela vigência da Lei das XII Tábuas:

a) se alguém morre sem testamento e sem deixar herdeiro seu, que o agnato (relação de parentesco por linha masculina) mais próximo tenha a sucessão;

b) se não tem agnato, que os gentiles tenham a sucessão.

Completa Cretella Jr.:

“Enquanto o paterfamilias está vivo, os filhos são, pelo menos em teoria, coproprietários do patrimônio, ao qual todos contribuem para aumentar. Morrendo o pai, continua a mesma situação, pois não houve acréscimo dos bens existente. Desse modo, entram os heredes na posse dos bens sobre os quais tinham uma espécie de direito abstrato. Na classe dos herdeiros seus não se faz distinção de sexo”.

Além disso:[22] “durante o lapso de tempo que vai da morte do de cujus, ao da aceitação da sucessão pelo herdeiro, a herança, em determinadas circunstâncias, não tem proprietário, jaz sem dono. É a herança jacente”.

Qualquer pessoa que se apossasse da propriedade neste estado, se tornava dela proprietário.

Não havia, desta forma, a ideia de saisine no direito romano que tem por objetivo preservar a propriedade de acervo patrimonial até que ela passe ao herdeiro reconhecido.

Tampouco existia a ideia de transferência desses bens para a coletividade ou para o Estado. Os bens particulares não eram preocupação do ambiente público.

Para contornar a tais situações, o direito romano passa a estipular regras para forçar o herdeiro definir-se quando à aceitação ou não da herança.

Em momento evolutivo posterior (do direito sucessório romano) Justiniano reviveu a legítima, parte da herança que obrigatoriamente ficava aos parentes mais próximos. Criou quatro classes de herdeiros: descendentes, ascendentes, colaterais privilegiados (irmãos e irmãs germanos), colaterais ordinários; a esposa pobre passa a receber parte da herança – até um quarto.

Luiz Antonio Rolim,[23] menciona que a sucessão testamentária configurava a mais antiga forma de sucessão romana, significando desonra para uma pessoa, falecer sem indicar a destinação do patrimônio após sua morte. Tal ato era – nos primórdios da civilização romana –, no entanto, reservado exclusivamente aos cidadãos, restrição abrandada com o tempo.

A sucessão legítima inicialmente era guardada para as situações em que falecido não deixava testamento válido, de modo que seu patrimônio passava a ser transmitido para os herdeiros necessários, ou seja, aqueles a que o direito positivo incluía em um rol objetivo.

No Digesto ocorre limitação importante à liberdade de testar, estabelecendo-se um novo sistema de sucessão por “ordem de vocação hereditária”, no qual os herdeiros eram divididos em quatro categorias: descendentes, ascendentes, os colaterais e, por fim, o cônjuge supérstite (nesta ordem).

É o embrião da interferência externa estatal no direito de sucessões, marcado, também, pela menor interferência religiosa (no sentido precedente romano) na esfera privada.

2.7 Idade Média

O declínio do Império Romano até a Idade Média (período do obscurantismo) é marcado por forte influência do direito canônico sobre a propriedade privada, posto não haver a figura do Estado a gravitar em torno das relações jurídicas e as instituições do direito estatal são bastante insipientes.

A primogenitura volta à tona dentro do sistema feudal. E a Igreja Católica era beneficiada com a herança dos componentes do clero. Talvez por esse motivo, o celibato seja desde aqueles tempos e até hoje, valorizado dentro da Igreja Romana.

Há valorização da religião e a legitimação das ações em torno dela, inclusive as ações do soberano, representante de Deus na terra e herdeiro de seu reino. O direito volta a ter contornos sagrados, agora dentro da perspectiva cristã católica.

Normas desse período perdem possibilidade de crítica de modo que justificação religiosa retira dos homens a possibilidade de rejeição às instituições. A fé incondicional nas leis divinas que não podem ser reveladas ao homem mas que são o único caminho para a salvação, faz com que não se questione as motivações que levam às normas estabelecidas.

O testamento volta a ser privilegiado especialmente, estimulando-se a inclusão da Igreja como herdeira ou legatária. Ganha procedimentalidade, formalidade mais rídica, com clara influência do direito canônico, essencialmente formalista.

2.8 Período das Revoluções: Revolução Francesa e Revolução Industrial

O século XVIII marca uma nova etapa da história humana. A partir desse século, houve o avanço do Iluminismo e, com implicações nele, duas Revoluções que tiveram andamentos diversos, mas igualmente importantes para explicar os fenômenos sociais havidos no Ocidente: as Revoluções Francesa e Industrial.

Após longo período de obscurantismo, pensadores europeus e americanos passaram a questionar o papel da religião na sociedade humana. O poder da Igreja começa a ruir e, no lugar de teorias transcendentes, pensadores começam a dar primazia à razão e à ciência como verdadeiros instrumentos de libertação humana.

Em termos kantianos, a razão passa a ser supervalorizada como emancipadora da humanidade e único meio de se livrar do antigo passado medieval, parcial, imperfeito, atrasado e aprisionador do Homem.

A virtude por excelência a ser alcançada pela Humanidade e que havia sido imposta como objetivo, ou seja, a humildade, baseada em interpretações cristãs, passa a ser cada vez mais questionada em relação à racionalidade a ser conquistada por meio da busca pelo conhecimento.[24]

O teocentrismo medieval é substituído por um antropocentrismo que objetivava libertar[25] o ser humano das "trevas da ignorância" por meio das "luzes da razão".

Por outro lado, a queda do feudalismo, regime que privilegiava o direito de primogenitura – como assevera Washington de Barros Monteiro[26] –, pôs em evidência uma classe social até então pouco valorizada por não possuir títulos de nobreza: a classe burguesa.

Na França,[27] a revolução toma rumos mais violentos e culmina com a queda da monarquia e da aristocracia estabelecidas e o início do império napoleônico, além da forte participação da burguesia. Foi adotado, por ela, o lema iluminista da liberdade, igualdade e fraternidade passou a configurar um marco na formação do novo regime político que acabara de nascer ao lado da Revolução.

Na Inglaterra a revolução não alcançou os mesmos níveis de violência e, mesmo com a manutenção da monarquia, o país passou a caminhar rumo à industrialização, à produção de bens de consumo por meio da utilização de tecnologias cada vez mais inovadoras.

Ambas tiveram o traço comum de pontuar o início do capitalismo moderno e, nele, a supervalorização do dinheiro e da economia, além do cientificismo responsável pelos avanços tecnológicos.

Em ambos os casos, percebe-se que a tomada de consciência da razão humana, da subjetividade inerente a todos, leva a um franco processo de individualização na sociedade.

Em contrapartida, há um aprofundamento cada vez maior do processo de diferenciação social e o gradual abandono do modelo social dividido em estamentos rumo a uma época de especialização sistêmica.

Há uma exacerbação, de um lado, do aspecto econômico e, de outro da "sociedade administrada" que pode ser identificada pelo Estado burocratizado. Há, portanto, um processo de institucionalização da sociedade.

As lutas sociais que se seguem, essencialmente, giram em torno desses dois eixos: de um lado o indivíduo e, de outro, as instituições coletivas.

Dentro desse contexto, a propriedade privada também passa a ser mais valorizada, uma vez que, até o feudalismo, ela se concentrava nas mãos de uns poucos aristocratas e não podia ser alcançada por uma maioria que se contentava em apenas sobreviver. Toma ela feições mais humanas, no sentido de que deixa de ser vista como uma benção divina dirigida a alguns poucos que foram abençoados por titulações de nobreza ou origem de castas.

A força do capital, somada à capacidade de trabalho e a liberdade para contratar, acabam tornando mais democrática a distribuição dos bens em relação à época do feudalismo, muito embora, ainda nessa fase, o liberalismo econômico tivesse (estado que permanece atual, segundo algumas correntes) pouca tendência humanista.

Ao lado disso, o avanço da ciência coloca o uso da terra e da natureza (vista como fonte inesgotável) como base para o acúmulo de riquezas pelos países e o intuito de conseguir lucro passam a ser vistos como formas de gerar divisas para a coletividade em geral. Principalmente nos países protestantes, a busca pela riqueza deixa de ser considerada infração às leis divinas e ao princípio da humildade de modo que o acúmulo de riquezas passa a ser favorecido e valorizado. Economicamente, achavam que era da terra e da natureza que deveriam ser extraídas as riquezas dos países. Segundo Adam Smith:[28] “Ao perseguir seus próprios interesses, o indivíduo muitas vezes promove o interesse da sociedade muito mais eficazmente do que quando tenciona realmente promovê-lo”.

Como dito acima, é a partir do século das luzes que a propriedade começa a ser estendida por camadas da sociedade que antes estavam dela excluídas e, como consequência, amplia-se também o direito das sucessões, antes reservado a uns poucos ou, quando muito, limitado a pequenas quantias e pequenos bens em relação à massa.

O direito, tal qual o entendemos atualmente, e, à época, ainda em desenvolvimento, passou por profundas transformações a partir desse século. Tomando feições científicas e afastando-se da “prudência” romana. A ciência do direito passou, também, a guiar-se pelos ideais iluministas de igualdade, fraternidade e liberdade, dentro da perspectiva da nova ordem que começava a se estabelecer e dos preceitos ideológicos dos membros da classe burguesa que ascendeu ao Poder. Começa a ser visto, o direito, como meio para alcançar tais ideais o que leva-o a aproximar-se mais às políticas, culminando com a visão – prenunciada por Robert von Mohl, no século XIX – de “Estado de Direito”.

As relações atinentes ao direito de propriedade passam a ser mais protegidas com fundamento na necessidade de respeito a esse instituto, especialmente no continente americano no qual os colonos, por vezes, eram surpreendidos com atos de violência advindos de invasores após anos de trabalho.

No que tange especificamente ao direito das sucessões, essas novas concepções sociais, políticas e econômicas em muito influenciaram, na medida em que a sociedade buscou afastar as ingerências religiosas na vida humana, além de começar a procurar a evitar diferenciações que pudessem pôr a pique o postulado da igualdade. Tudo isso culmina com a diminuição considerável dos privilégios advindos da primogenitura, além da diferenciação entre filhos homens e filhas mulheres.[29]

O direito das sucessões foi ampliado a partir dessas ideias, pois o ato de poupar deixa de vincular-se a uma falta de virtude e passa ser considerado mecanismo de crescimento humano. Deixar bens para os herdeiros passa a ser visto como objetivo a ser alcançado, como consequência do trabalho, de poupança e prevenção e, portanto, ação a ser incentivado.

Em especial, a Revolução Industrial e com ela, o franco desenvolvimento dos meios de produção, acabaram dando origem a outra questão importante para o direito sucessório: a possibilidade de suceder, não somente na propriedade bens imóveis e móveis convencionais, mais comuns naquela época, como também a extensão da possibilidade de sucessão dos bens de propriedade industrial.

Essas revoluções representam o fim do antigo regime e a sobreposição da burguesia, do liberalismo econômico e do modo de produção capitalista. Chega-se com elas ao momento em que as regras de direito essencialmente burguesas, como antes já mencionado, são positivadas de modo a sustentar a nova classe que chega ao poder.

Dentro desse sistema de leis agora prevalecente, toma vulto, no final do século XVIII, o advento do Código Napoleão.

A justificação em torno da razão humana e o afastamento da sacralidade inerente aos períodos anteriores fazem com que a herança do patrimônio perca seu conteúdo espiritual e amplo, conferindo-lhe maior conotação econômica.

Herdar não significa mais a oportunidade de suceder o patriarca como testa da família, mas simplesmente passa a ser o meio regulamentar de transmissão de uma massa de bens que não pode ficar sem dominus.

Toda estruturação do direito das sucessões que se segue tem por esta acepção: regulamentação da transmissão de bens. Pouco importa a dinâmica das relações familiares após a morte do patriarca. Tal ponto é muito importante, pois torna mais compreensível a forma de agir dos herdeiros e legatários até a atualidade.

Em raros casos há a vontade de manter o patrimônio em toda sua plenitude e, na maioria das vezes, a ação de juízes e advogados restringe à análise de formalidades legais e modos de operacionalizar, da melhor forma possível, a divisão de bens, mantendo-os apenas dentro do mesmo núcleo social. Esta é a lógica com a qual o direito das sucessões passa a ser vista até a atualidade.

O monte mor será mais ou menos valioso conforme possa ser avaliado economicamente e, enfim, possa reverter-se em benefícios econômicos aos herdeiros, sem gerar custos ou, gerando-os, sejam eles inferiores ao benefício final.

2.9 O Código Napoleão[30]

Ao subir ao poder na França revolucionária, Napoleão Bonaparte nomeia comissão responsável pela elaboração do Código Civil francês.[31] O trabalho dá-se por acabado em 1804 e toma por base o direito romano, além de ideais inspirados na revolução.

Seu principal valor apresenta-se na sistematização das matérias. É o primeiro Código em que houve uma preocupação consistente com a formação de um sistema de regras logicamente dispostas e serviu de molde para todo o período das codificações que se seguiu durante o século XIX e século XX.[32]

Em seu interior, o direito das sucessões é colocado no Livro III reservado às diferentes maneiras de como se adquire a propriedade (o art. 711 estabelece: “A propriedade dos bens se adquire e transmite por sucessão, por doação inter vivos ou testamentária e por efeito das obrigações”).

Fica evidente o posicionamento do legislador francês por ocasião da feitura do Código: o direito a sucessão está intimamente relacionado ao direito de propriedade. Está geograficamente longe do direito de família, pois está inserido como forma de aquisição da propriedade e é seguido do direito das obrigações e dos contratos.

Outro ponto relevante foi a restrição aos graus da ordem hereditária (como já dito, era ilimitado). O Código Napoleão passou a fixar o grau máximo como sendo o 12.º grau de parentesco e legislações posteriores seguiram este mesmo caminho.[33]

Era uma tendência da própria época em que o Código está inserido. Como dito acima, houve uma valorização importante da propriedade a partir da formação do capitalismo de modo a influenciar no modo como a sociedade e o direito viam os institutos do direito das sucessões.

De qualquer forma, o Código Civil francês (código civil, ou seja, codificação dos modos de relacionamento aceitáveis dentro da perspectiva da civilização dos burgueses, modo de proceder nas relações jurídicas entre particulares) é até a atualidade um marco no desenvolvimento do direito civil burguês e serve de base para diversos códigos capitalistas do mundo. É o êxtase do domínio e do pensamento iluminista dentro do direito.

2.10 O Código Civil alemão (Bürgerliches Gesetzbuch – BGB)

Na região europeia, onde se localiza a atual Alemanha, o direito era essencialmente consuetudinário, elaborado a partir de costumes e decisões tomadas pelas autoridades detentoras do poder local e ratificadas pelos clãs. A região foi parte do império romano e era habitada por várias etnias.

Com a criação do Império Carolíngeo na Idade Média, os povos germânicos começaram a desenvolver um direito unitário, construído a partir do direito romano que passou a ser usado subsidiariamente para completar o direito costumeiro.

Entre a idade média e o período que antecedeu a unificação alemã, a região sofreu com diversas guerras e foi subjugada por Napoleão Bonaparte.

Com a queda do Imperador da França,

Lideres europeus reuniram-se no Congresso de Viena de 1824, sob a liderança do príncipe austríaco Metternich, com o objetivo de reorganizar o mapa político europeu. Dentre os princípios políticos pactuados incluiam-se a restauraçãodo continente, da legitimidade anterior e da solidariedade entre governantes para reprimir ideias revolucionárias e nacionalistas. Foi então que no território antes demarcado pelo antigo Sacro Império Romano-Germânico, formou-se a Liga Alemã (Deutscher Bund), união de 39 estados (35 príncipes reinantes e 4 cidades livres), sob a liderança da Áustria e sediada em Frankfurt.

Em 1848, o crescente descontentamento com a ordem imposta pelo Congresso de Viena levou à eclosão da Revolução de Março nos estados alemães. Meses depois, em maio, foi criada a Assembleia Nacional Alemã (Parlamento de Frankfurt), para preparar uma constituição nacional alemã. Esta revolução fracassou porque o Rei Frederico Guilherme IV da Prússia recusou a coroa imperial e a Assembleia Nacional foi dissolvida e a Liga Alemã restabelecida em 1850.

Em 1862, o Príncipe Bismarck foi indicado como primeiro-ministro da Prússia – apesar da oposição de liberais e socialistas, que consideravam-o conservador.

Por conta de controvérsias com relação ao sucessor do trono espanhol França e Prússia, trono reivindicado por um candidato alemão opositor da França provocou a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), embate no qual tropas prussianas e sul-alemãs invadiram a França em 1870, batalha na qual o exército francês foi derrotado e o Segundo Império francês caiu. Com a rendição de Paris foi celebrada a Paz de Frankfurt am Main na qual a França obrigou-se a ceder à territórios à Alemanha.

Em 18 de janeiro de 1871, na Galerie des Glaces, dentro do Palácio de Versalhes, o Rei Guilherme I da Prússia foi proclamado Imperador da Alemanha (Kaiser); este foi o momento oficial de fundação do Império Alemão (sem a Áustria).

Dentro do país, Otto von Bismarck (Chanceler da Alemanha), luta contra os inimigos do estado protestante da Prússia, por exemplo, coma “luta cultural” (Kulturkampf, 1872-1878), limitou a influência da Igreja Católica e do Partido do Centro Católico, por meio de diversas medidas laicizantes como a criação do casamento civil. Minorias étnicas, tais como poloneses, dinamarqueses e franceses, passaram a ser discriminados e tornaram-se objeto de uma política de germanização.

Outra ameaça a ser combatida era a ascensão do Partido dos Trabalhadores Socialistas (depois Partido Social-Democrata), que almejava estabelecer uma nova ordem socialista coma transformação das estruturas políticas e sociais.

A partir de 1878, o chanceler procurou reprimir o movimento, proibindo sua organização, a realização de assembleias e censurando maioria de seus periódicos. Ao mesmo tempo, instituiu um sistema de previdência social com a finalidade de angariar simpatia dos trabalhadores do Império.

Bismarck priorizava proteger o poder do Império em expansão com alianças e contensão de crises até o país estivesse forte. Era, assim, importante conter e isolar a França, para evitar que esta formasse uma aliança com a Rússia.

Em 1879, firmou a “Dúplice Aliança” entre Alemanha e o Império da Áustria-Hungria, fortalecendo a força bélica mútua. Com a formação da Dúplice Aliança a Rússia adotou posição mais conciliatória e em 1887 assinou com a Alemanha o Tratado de Segurança Mútua (Rückversicherungsvertrag) por meio do qual os dois países concordaram em fornecer apoio militar ao outro em caso de ataque francês contra a Alemanha ou de ataque austríaco contra a Rússia.

Em 1882, a Itália, visando defender seus territórios coloniais no norte da África contra ataques franceses, adere à Dúplice Aliança que se tornou a “Tríplice Aliança”, em troca desse apoio, a Itália compromete-se a socorrer a Alemanha em caso de agressão francesa.

Entre 1880 e 1885 com mudanças no internacional, Birmarck estabelece-se colônias ultramarinas alemãs: na África e na Oceania.

Em 1888 morre Guilherme I e é sucedido por Frederico III que impera por 99 dias antes de também falecer e ser sucedido por Guilherme II (filho de Frederico III); Bismarck renuncia em 1890 por divergências com o novo Kaiser.

Neste contexto histórico o Código Civil alemão (Bürgerlich Gesetzbuch, BGB) passou a vigorar no dia 1.º de janeiro de 1900, embora sua promulgação tenha ocorrido em 1896. Configurou a maior obra civilística desde o Código Civil francês, e é o marco mais espetacular direito civil do sistema romano no século XIX. Ele é consequência imediata da instalação do Império Alemão unificado em 1871 e a necessidade de unificação das diversas instâncias do direito.

O triunfo da ideia codificadora do direito civil, não está apenas ligado ao fenômeno de formação do Estado unificado, está vinculado, também, à vitória político-jurídico-social de pressupostos oriundos da burguesia que viam na codificação civil uma relação de subordinação e clareamento de princípios basilares ao Estado liberal como a proteção à propriedade, a liberdade contratual e a imperatividade do cumprimento integral dos contratos.

Quando da implantação do Império Alemão, o direito civil erigido à categorial de matéria de competência do Poder Central (Lei Imperial de 20 de Dezembro de 1873), o que possibilitou a organização do Código Civil.

Antes da unificação alemã, o direito privado empregado nas várias regiões era fracionado. Em algumas regiões vigorava o chamado “direito comum”, podendo-se afirmar que ele corresponde ao direito romano tardio, que alcançou a Alemanha por via da recepção e de estudos sobre o Corpus Juris Civilis de Justiniano.

Ainda ao tempo da unificação alemã, o poder para legislar sobre matérias de directo civil, era exercida por cada um dos estados e não pelo Reich que os unia. Mas em 1873 foi aprovada emenda constitucional (Lex Miquel-Lasker) que transferia totalmente essa potestas ao Império. Foi a partir daí que as comissões legislativas foram formadas.

Dentro do século XIX ganha força a investigação e sistematização do direito romano pela Escola Histórica do Direito, com Savigny (1779-1861). Essa escola dava especial ênfase ao estudo da história do Direito.

Savigny e essa escola priorizavam o restabelecimento da força do estudo do direito romano dentro das universidades alemãs.

A “pandectística” (usus modernus pandectarum) alemã teve papel preponderante na confecção do código. Savigny pretendia identificar os elementos formadores do direito civil, dentro de perspectivas jusnaturais estava convencido de que um bom Código Civil pressupõe uma bem elaborada doutrina do Direito, suficientemente madura, para sobrepujar as diferenças locais, e isso só se tornaria possível se fundado em princípios jusnaturalistas; para realizar tal objetivo, seria importante conceber uma doutrina jurídica alemã, unitária, fundada no direito romano.

Professores como Puchta, Jhering e Windscheid, entre outros, continuaram as pesquisas de Savigny, cujo objetivo (um dentre outros) e era chegar ao código civil alemão. Savigny preconizava o encontro do direito dentro do volksgeist, ou seja, o direito deve espelhar-se no espírito do povo, na consciência do povo alemão, encontrar respaldo, para ele, unificador e legitimador.[34]

A primeira comissão legislativa foi criada em 1874 e contava com professores como Planck e Windscheid e apresentou o primeiro projeto de código no começo de 1888[35] recebendo diversas críticas pelo pouco envolvimento com a realidade social da Alemanha (tecnicidade excessiva) e pela pouca concretude. Reelaborado em 1895, é apresentado o segundo projeto publicado em 1898.

Finalmente o Código foi promulgado em 18.08.1896 e passou a vigorar em janeiro de 1900.

Trata-se de Código para a civilidade alemã, com rebuscamento lógico-formal, Técnica rigorosa excessivamente refinada, claramente dirigido aos juristas, pois os elaboradores entenderam que esta seria a forma de afastar o novo diploma da casuística própria do período anterior; mas, por outro lado, compatibiliza a abstração técnico-dogmática com a praxis. Entenderam os elaboradores do Código que deviam apartar-se do método casuístico, por meio de princípios abstratos e generalizados, com a finalidade de privilegiar a segurança jurídica.

Está dividido em duas partes: uma parte geral (direito das pessoas, dos bens e os negócios jurídicos) e outra especial (quatro livros: direito das obrigações, direitos reais, direito de família e direito das sucessões).

Com o Código foi apresentada uma Lei de Introdução ao Código Civil, com normas de direito internacional privado e de relacionamento entre o Código Civil e as leis nacionais, locais e disposições transitórias.

O BGB é marcado pela tentativa de alcançar perfeição técnica como modelo de diploma jurídico a ser utilizado pela sociedade era, entretanto, como observou Franz Wieacker:[36]

“Com a neutralização da ética jurídica e com o seu formalismo racionalista, a pandectística tornou-se, a despeito das suas origens ideologicas e historicistas, no instrumento da ‘sociedade aquisitiva’ [Erwerbsgesellschaft] do Estado de direito burguês agora, em progresso e expansão. Ela acabou por maturar a segunda vaga, esta positivista, das codificações europeias, à frente das quais está o código civil alemão [Bürgerliches Gesetzbuch, BGB] de 1900, o Código Civil Suíço [Schweizes Zivilgesetzbuch, SZG] de 1907/1911. Com eles se consumou finalmente, a pandectística; no seu lugar, instalou-se um positivismo legal, cuja rigidez e estreiteza preparou a derrocada do positivismo jurídico nas convulsões do nosso século.”

Em relação ao direito das sucessões, note-se uma mudança estrutural diferenciando-o do Código Napoleão: o livro das sucessões passa a compor com livro próprio a Parte Especial do Código, e é postado logo depois do direito de família. Há, portanto, uma aproximação entre o direito de sucessões e o direito de família, que passa a separá-lo dos direitos reais.

Possui uma cláusula geral de boa-fé que passou a funcionar como elemento auxiliar de atualização do Código em relação à realidade social.

Por outro lado, permanece como Código de origem liberal, voltado, portanto, ao capitalismo. E, não esquecendo a vinculação, ainda que mais distante, entre direito de propriedade e direito das sucessões, já apresenta certa aproximação entre este último e o direito de família.

Para o Brasil, compreender a construção do Código é de suma importância por conta da influência que este diploma teve na construção do Código Civil brasileiro, inclusive nos seus desacertos.

2.11 A Revolução Russa de 1917

Em 1917, inspirada no pensamento de Karl Marx, irrompe a Revolução Comunista na Rússia.

Com o objetivo de conceder igualdade entre todos, com a subida do proletariado ao poder, o direito de propriedade é, num primeiro momento, totalmente suprimido pelos revolucionários. Como consequência, o direito de sucessão também é abolido pela legislação soviética.

Pouco tempo depois, percebendo o equívoco desta decisão, tento-se em vista a quantidade de conflitos que passaram a ocorrer, o Código Civil soviético foi reformado para conter um direito sucessório de limitadas proporções (limitado a quantias pequenas e objetos pessoais).

Sobre o assunto, salienta Silvio Rodrigues:

“A experiência soviética, por outro lado, demonstrou, na prática, se não a impossibilidade, ao menos a inconveniência da supressão do direito hereditário, pois, havendo abolido a sucessão causa mortis e assim suspendido a atuação do interesse pessoal, não conseguiu manter a proibição. Com efeito, de tal orientação resultaram tamanhas e tão funestas consequências para a economia nacional que o legislador russo teve que recuar de sua posição inicial, restabelecendo a possibilidade da transmissão causa mortis. E de fato, na antiga União Soviética, o direito sucessório não encontrava barreiras maiores que nos países capitalistas”.[37]

Assim, fica clara a impropriedade da eliminação do direito das sucessões, mesmo em uma sociedade pretensamente igualitária, por configurar afronta aos interesses sociais já esculpidos no espírito humano, seja fruto de escolha e positivação de costume já arraigado, seja pela aceitação de um direito natural.

2.12 A Contemporaneidade

Muito embora alguns autores refutem a ideia de que tenha havido modificação nas estruturas sociais a ponto de entender-se que houve alteração no período moderno – do qual falamos até agora – para um contexto de pós-modernidade, faremos esta distinção para mencionar os momentos históricos que sucederam o projeto racionalista proposto no século XVIII, XIX e início do século XX.[38]

O que parece ter acontecido na sociedade a partir da segunda metade do século XX é uma ruptura com os padrões tradicionais, em outros termos, certo rompimento com a tradição, de modo que atualmente, problemas extremamente complexos, parecem buscar justificativas não mais nos eventos passados, mas em uma lógica que é muito fragmentária e particular.[39]

Os fatos sociais movimentam-se com uma velocidade nunca antes experimentada e as expectativas sociais modificam-se com a mesma agilidade. O avanço tecnológico colabora muito com este movimento e o jurista deve estar atento para essas rápidas modificações.

Assim, as normas tendem a ter texturas cada vez mais abertas, de modo que possam abranger uma quantidade maior de situações sem necessidade de alteração legislativa.

Perceba-se, ainda, que em países europeus e alguns americanos a tendência liberal começou a ser diminuída, no decorrer do século XX, dando lugar ao Estado do Bem Estar Social[40] e embora preservadas as bases capitalistas, houve atenuações no sentido dado à economia de mercado, ao Estado em geral e consequentemente, ao direito. A partir de tais ideias passa-se a falar em principio da solidariedade, função social da propriedade dentre outros.[41]

Com relação ao direito das sucessões, se a modernidade e seu avançar tecnológico trouxeram uma série de inovações como, por exemplo, além da sucessão dos direitos sobre bens imóveis e móveis típicos, a possibilidade de sucessão da propriedade industrial e dos direito de autor, o que nos reservará a pós-modernidade e sua realidade complexa? Em período de globalização econômica haverá alguma inovação também em direito das sucessões?

A humanidade vive mais e, em alguns países, em melhores condições, o que empurra para a frente cada vez mais o fenômeno natural morte. Este ponto relaciona-se diretamente com o deslocamento de bens dentro da sociedade, tendo-se em vista que a maior longevidade interrompe a sucessão no espaço de tempo que tínhamos a tempos mais remotos.

Outro traço importante: a menor taxa de natalidade diminui a potencialidade sucessiva dentro de um mesmo grupo familiar. Este ponto, caso não haja alteração em alguns anos, por políticas públicas que estimulem a natalidade, levará a um número maior de pessoas que falecem sem deixar herdeiros. As razões são óbvias. Se não deixo filhos, porque preocupar-me em poupar? Ou como ficarão os bens após a morte daquele que não deixa herdeiros?

2.13 Brasil

2.13.1 Antes do Código Bevilaqua

O primeiro Código Civil brasileiro entrou em vigor em 1916. Significa, portanto, que o sistema jurídico português continuou vigente no País depois da independência até 1916, o que representa aproximadamente 95 anos de persistência daquele sistema.

Essa longevidade pós-independência ajudou a manter o direito civil brasileiro afastado da influência direta do Código Napoleão, de modo diverso a outros países.

Desde a chegada dos portugueses em terras brasileiras, o ordenamento jurídico passou a distinguir normas comuns à metrópole e à colônia e normas que eram aplicadas apenas nos limites da colônia, tendo-se em vista as peculiaridades das relações locais. Havia, portanto, necessidade de diferenciação de ambas as esferas de aplicação porque não existir igualdade entre metrópole e colônia (o direito brasileiro já aparece, portanto, com uma característica: regular situações jurídicas desiguais).

Com relação às normas aplicáveis aos dois, metrópole e colônia, o ordenamento jurídico português, era composto por Ordenações do Reino (Ordenações Afonsinas, as Ordenações Manuelinas e as Ordenações Filipinas). Trazia normas materiais, formais e métodos de hermenêutica jurídica e eram meras compilações de normas emanadas do poder central, de usos e costumes, diferentemente dos códigos sistematizados e organizados segundo padrões metodológicos rígidos.

As regras jurídicas aplicáveis exclusivamente ao Brasil eram normalmente criadas em Portugal, por decreto real, ou ditadas no Brasil pelos portugueses.

As Ordenações Afonsinas datavam do século XV eram compostas por cinco livros (organização judiciária, competências, relações entre Igreja e Estado, processo civil e comercial). Firmaram as bases do direito português e tinham como fontes secundárias os direitos romano e canônico, a Magna Glosa e as opiniões de Bártolo de Sassoferato e as soluções dadas pelo Rei.

As Ordenações Manuelinas (1514-1603), caracterizavam-se pelo elevado número de leis e atos modificadores das Ordenações Afonsinas. A ordem das fontes subsidiárias foi modificada, observando-se primeiro o direito romano e depois o direito canônico. Seguem-se como fontes subsidiárias a Magna Glosa e opiniões de Bártolo.

As Ordenações Filipinas (vigoraram no Brasil de 1603 até 1916). Elas atualizaram regras esparsas editadas entre 1521 a 1600. As fontes subsidiárias de aplicação posterior ao direito português, em ordem sucessiva: o direito romano, o direito canônico (se as normas de direito romano para a espécie configurassem pecado) e a Magna Glosa e as opiniões de Bártolo de Sassoferato (casos essas opiniões estivessem em conformidade com a comunis opinio doctorum).

Em 1769 surge a Lei da Boa Razão que modificou os critérios de interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas. Suprimiu o socorro à Magna Glosa e opiniões, e preservou o auxílio ao direito romano, desde que estivesse de acordo com a “boa razão”, ou seja, baseados no direito natural e das gentes.

Com a Independência veio a promulgação da primeira Constituição do País, em 25 de Março de 1824 que determinou (art. 179, XVIII) a elaboração, “quanto antes um Código Civil, e Criminal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade”, recepcionou as Ordenações Filipinas como parte do ordenamento jurídico brasileiro até a promulgação desse Código Civil.

Consolidação das Leis Civis foi iniciada 1851 por Augusto Teixeira de Freitas, trabalho terminado e aprovado em 1858. Iniciou, então, o Projeto do Código Civil Brasileiro que deu ensejo ao Esboço de Código Civil, abandonado por Teixeira de Freitas (aproveitado na elaboração do Código Civil argentino).

2.13.2 O Código de 1916

Após anos de tentativas infrutíferas, Campos Sales, ainda Ministro da Justiça Epitácio Pessoa, delega a tarefa de organizar o Projeto do Código Civil a Tobias Barreto, cujo trabalho é concluído por Clóvis Beviláqua, submetido à revisão de comissão (formada por Aquino e Castro, Barradas Lacerda de Almeida, Bulhões de Carvalho, Epitácio Pessoa).

Projeto foi encaminhado, com uma Exposição de Motivos, e histórico das diversas tentativas de finalização e, ainda, sobre a necessidade de codificação do Direito Civil.

Em 1.º de Janeiro de 1916 foi promulgado o Código, com vacatio legis de 1 ano, vigorando, portanto em 1.º de Janeiro de 1917.

O Código de 1916 estava arraigado pelas influências jurídicas e filosóficas do direito germânico (por influência da Escola de Recife e Tobias Barreto e d positivismo de Augusto Comte). Tinha conformação parecida com o BGB alemão.

Especialmente quanto ao livro reservado ao “Direito das Sucessões” expunha regras gerais de transmissão hereditária, sucessão intestada e testamentária e regras relativas ao inventário e partilha; o Código aproveitou o mesmo espaço geográfico que havia sido adotado no BGB e refletia, também, o liberalismo econômico em um País eminentemente agrícola com forte tendência à manutenção do status quo da elite, formada a partir dos grandes proprietários e produtores rurais.

Ao contrário dos países industrializados, nos quais desde o fim do século XVIII havia preocupação de que o acúmulo de capitais fosse visto como forma de desenvolvimento de toda a sociedade e, desta forma, guardar bens para serem transmitidos aos herdeiros era salutar para o desenvolvimento do próprio País, no Brasil, a influência católica (e de certa forma, a questão do acúmulo de riquezas não havia sido bem equacionada no início do século XX para a maioria da população) se fazia muito forte, e o direito de sucessões tinha um enfoque maior para a preservação da fortuna nas mãos das famílias que formavam uma “aristocracia rural” e no seu núcleo considerado como família legítima (formada com as bênçãos de Deus e do Estado).

Ao longo do século XX, essa tendência foi sendo minimizada com o crescimento do País e sua industrialização, além de uma diminuição da rigidez nas relações de família.

Este diploma, apesar de suas falhas, havia sido construído para conformar com a realidade e as tradições brasileiras. Aproveitava elementos de códigos estrangeiros mas mantinha distanciamento deles, mantendo o objetivo de servir ao Brasil. Já dirigia-se ao futuro e revisões seriam suficientes, mantendo-se o gênio de Tobias Barreto e de Clóvis Bevilaqua.

2.13.3 O Código de 2002

Por inferirem que estava o Código de 1916 inquinado por arcaísmo, iniciaram a construção de um novo Código Civil.

Um dos objetivos dessa modificação era a unificação do direito privado. Sob essa perspectiva, Orlando Gomes foi incumbido de redigir Anteprojeto de novo Código, convertido em Projeto pela comissão, e entregue ao governo em 31 de Março de 1963 e versava sobre Direito de Família, Direitos Reais e o Direito das Sucessões.

Separar-se-ia o Código Civil do “Código de Obrigações”, cujo Anteprojeto foi concluído por Caio Mário da Silva Pereira em 1963. Foram enviados ao Congresso Nacional e posteriormente ao governo que nãodeu continuidade ao assunto.

Em 1967 (dentro do período do Golpe de 1964, portanto) nova comissão foi encarregada da revisão do Código Civil.

Esta nova comissão concluiu Anteprojeto em 1972, que foi rechaçado. Em 1973 a mesma comissão realizou a revisão do Projeto e reapresentou-o. O Projeto ficou congelado no Congresso por anos.

Tendo levado em consideração essas manifestações, em 1969, uma comissão nomeada pelo Ministro da Justiça prefere elaborar novo Código, em vez de fazer tão só uma revisão. Daí o surgimento de um anteprojeto em 1972, elaborado sob a supervisão do grande mestre e filósofo do Direito, Miguel Reale. A comissão era integrada pelos profs. Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio Marcondes (Atividade Negocial), Ebert Vianna Chamoun (Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito da Família) e Torquato Castro (Direito das Sucessões). Depois de ter recebido muitas emendas, o Anteprojeto foi publicado em 1973.

Miguel Reale, que havia estudado na Itália com professores discípulos da Escola Histórica do Direito, conservadores, procurou incluir elementos de sua visão filosófica acerca do direito, deixando o Código mais aberto, com fortes relações com as novas tendências éticas da sociedade atual (além da cláusula geral de boa-fé, traz princípios como a eticidade, a socialidade e a operabilidade).[42]

O Constituinte de 1988,[43] alçou a sucessão à categoria de direito fundamental e, portanto, cláusula pétrea, relacionado com os dois outros aspectos que sempre o acompanharam: de um lado o direito de família, dinâmico e cada vez mais voltado para aspectos do afeto entre as pessoas e, de outro, o direito de propriedade, cada vez mais vinculado à sua função social, ambos os aspectos que se contrapõem à tendência individualista e descartável da sociedade atual.

Miguel Reale menciona que a aplicação da igualdade absoluta entre os cônjuges e os filhos é o traço mais importante a ser mencionado em direito de família, a estender-se também ao direito das sucessões.[44]

Outro ponto importante em sede de direito das sucessões: do princípio da dignidade da pessoa humana é apto a afastar qualquer disposição de última vontade que seja atentatória à dignidade dos herdeiros ou de qualquer pessoa. Mesmo na parte disponível, portanto, a liberdade de testar está vinculada a postulados constitucionais mais elevados.

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Sobre o autor
João Biazzo Filho

Formado pela Faculdade de Direito de São João da Boa Vista (SP) em 1996, especializou-se em gestão de serviços jurídicos pela Fundação Getúlio Vargas. Possui larga experiência em direito civil e consumidor. Em 2003, foi um dos fundadores do Centro de Estudos de Administração de Escritórios de Advocacia (CEAE). Foi vice-presidente deste Centro de Estudo por dois mandatos. Mestrando na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Direito Civil. Foi eleito pelo Anuário Análise Advocacia como um dos advogados mais admirados na área de Direito do Consumidor.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BIAZZO FILHO, João. Histórico do Direito das Sucessões. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3639, 18 jun. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/24714. Acesso em: 18 abr. 2024.

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