Resumo: Abordou-se nesse artigo os aspectos internos e externos da soberania, analisando a subsistência da mesma no processo de integração verificado no âmbito internacional. Chegou-se a conclusão de que não há como compatibilizar o conceito clássico de soberania, como poder absoluto do Estado, com as exigências de cooperação econômica internacional. No entanto, persiste a soberania, mas essa deve ser entendida como independência.
Palavras-chave: soberania – integração internacional – autonomia.
1. INTRODUÇÃO
Neste período histórico em que as relações internacionais estabelecidas entre países deram origem à criação de blocos regionais, muito se questiona sobre a soberania dos entes estatais. Realmente, não é de se estranhar a dúvida que surge sobre a manutenção da soberania por um Estado que compõe um bloco regional econômico. Isto porque, constata-se que os Estados têm transferido a regulamentação de certas matérias para a esfera internacional.
Para analisar a questão da permanência da soberania nessa situação de integração, é necessário que se faça uma incursão nos conceitos de soberania e na opinião dos estudiosos do direito sobre o assunto.
2. ASPECTOS DA SOBERANIA
Preferiu-se, como fazem alguns doutrinadores, analisar a soberania sobre os aspectos interno e externo, denominando "soberania" a primeira e "autonomia" a segunda.
Seguindo orientação de LITRENTO, deve-se entender como soberania "o poder do Estado em relação às pessoas e coisas dentro do seu território, isto é, nos limites da sua jurisdição" e como autonomia "a competência conferida aos Estados pelo Direito Internacional que se manifesta na afirmação da liberdade do Estado em suas relações com os demais membros da comunidade internacional, confundindo-se com a independência" (LITRENTO, 2001, 116).
Assim sendo, nota-se que a soberania sob o aspecto interno tem a característica de supremacia. Trata-se de um poder superior, que impede outro poder de se sobrepor a ele. O jurista REALE conceitua a soberania como o "poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência" (REALE, 1960, 127).
Nesse sentido, trata-se sem dúvida de um poder exclusivo e coativo. Somente o Estado o possui e não poderia ser diferente, pois para ser supremo não é possível a sua convivência com outro poder no mesmo âmbito. A característica de coatividade é constatada na atuação do Estado, que impõe ordens e possui meios para fazê-las cumprir.
Devido a estas características, a soberania foi considerada por muitos estudiosos como um poder ilimitado. Citado por DALLARI, BODIN entende que a soberania "é um poder absoluto e perpétuo", defendendo que
seja qual for o poder e a autoridade que o soberano concede a outrem, ele não concede tanto que não retenha sempre mais. Dessa forma, a soberania coloca o seu titular, permanentemente, acima do direito interno e o deixa livre para acolher ou não o direito internacional, só desaparecendo o poder soberano quando se extinguir o próprio Estado (DALLARI, 1993, 66).
Percebe-se que a relação de um soberano com outros soberanos no âmbito internacional não retira a soberania de um Estado, pois esse tem a liberdade de escolha de se vincular ou não à ordem internacional.
DUGUIT pensava diferentemente, defendendo que o poder soberano não admite que qualquer convenção internacional seja obrigatória para o Estado. DALLARI nos expõe que
a resposta a essa crítica de Duguit é dada pelo que se convencionou chamar de teoria da autolimitação do Estado, pela qual este, desde que o entenda conveniente, pode assumir obrigações externas, como pode fixar regras jurídicas para aplicação interna, sujeitando-se voluntariamente às limitações impostas por essas normas (DALLARI, 1993, 70).
Realmente, se um Estado tem o poder de optar pela vinculação ou não a determinadas regras, ao invés de perder sua soberania pela sujeição à elas, estará fazendo uso da mesma, uma vez que nada lhe será imposto contra sua vontade. É importante relembrar que a soberania de que aqui se trata é a do aspecto externo - a autonomia, que não se confunde com aquele poder superior e ilimitado.
Na verdade, analisando a esfera das relações internacionais, percebe-se que para a coexistência pacífica entre os Estados é imprescindível a limitação do atributo da soberania. É devido principalmente a este imperativo de coexistência pacífica que deve encontrar-se limitada a soberania, com o intuito de que um Estado não invada a esfera de ação dos outros Estados.
Nas palavras de MALUF "atualmente, as nações integram uma ordem continental, e, dentro dessa ordem superior, o poder de autodeterminação de cada um limita-se pelos imperativos da preservação e da sobrevivência das demais soberanias" (MALUF, 1999, 38).
Aquele conceito de soberania vinculado apenas ao ponto de vista interno não se adapta mais ao estágio alcançado pelos Estados. Acredita-se que deve haver uma evolução no mesmo, para que seja possível uma adaptação às tendências da sociedade internacional. Nessa linha de raciocínio encontra-se a opinião de PAUPÉRIO de que “a soberania do Estado não pode ser estática: tem que ser dinâmica, no sentido de se tornar capaz de adaptar à variedade das circunstâncias que se abrem, constantemente, na vida dos povos” (PAUPÉRIO, 2000, 76).
Assim sendo, comunga-se com a opinião de FRAGA quando expõe que
Do conceito de soberania como a qualidade do poder do Estado que não reconhece outro poder maior que o seu - ou igual - no plano interno, chegou-se à moderna conceituação: Estado soberano é o que se encontra, direta e imediatamente, subordinado à ordem jurídica internacional. A soberania continua a ser um poder (ou qualidade do poder) absoluto; mas, absoluto não quer dizer que lhe é próprio. A soberania é, assim, um poder (ou grau de poder) absoluto, mas não é nem poderia ser ilimitado. Ela encontra seus limites nos direitos individuais, na existência de outros Estados soberanos, na ordem internacional (FRAGA, 2001, 9).
Com certeza, a soberania não pode ser entendida como um poder ilimitado quando analisada sob a ótica externa. Os Estados não têm outra opção para se relacionar internacionalmente com harmonia sem que sejam feitas concessões. É com o intuito de manter relações com os demais membros da comunidade internacional num ambiente de intercâmbio e solidariedade, que os Estados se submetem às regras do direito internacional.
Nesta relação internacional, cada Estado se julga soberano-absoluto e opõe sua ordem jurídica às ordens jurídicas dos demais. Eles se inter-relacionam por livre vontade, por autolimitação unilateral, mas que pode ser retirada a qualquer momento, pois que ao Estado soberano nada se pode sobrepor sem que perca essa qualidade.
Não se pode conceber a soberania a nível externo como um poder ilimitado, pois para a própria existência do direito internacional há que existir "um conjunto de normas que se sobreponham aos Estados. As relações jurídicas são interestatais, mas as regras que as regem estão, forçosamente, acima das unidades políticas internacionais" (BOSON, 2000, 160). Ademais, conforme nos coloca GÓIS, "verifica-se que mecanismos jurídicos de sanções, antes impensáveis face à pretensa soberania absoluta, aparecem lentamente nos debates multilaterais" (GÓIS, 2000, 1).
Claro resta que é preciso admitir-se uma transformação profunda no conteúdo significativo da palavra soberania, pois, em seu sentido clássico, essa não comporta a idéia de limitação.
Defende BOSON que não se pode tirar a razão de Politis, que afirma que a definição de soberania exclui toda e qualquer limitação. Relata que do conceito de soberania "não se pode subtrair o sentido de poder supremo, total. A absoluteidade lhe é inerente: sua falta o aniquila. Seria necessário criar outro termo para substituí-lo" (BOSON, 2000, 162).
3. A SOBERANIA NO ÂMBITO INTERNACIONAL
Quando analisada no âmbito do direito internacional, a soberania dos Estados pode ser visualizada no plano horizontal, pois que todos eles se apresentam numa mesma situação de igualdade; e no plano vertical, quando os Estados aceitam submeter-se às regras internacionais.
Conforme nos ensina LEAL, os internacionalistas que almejam uma ordem internacional consideram a soberania como um óbice à realização da comunidade internacional. Isto porque "o Estado, embora titular da soberania, desta iria afastar-se para buscar a sua própria sobrevivência econômica, submetendo-se aos interesses dos capitais hegemônicos internacionais" (LEAL, 1999, 80-5).
Para analisar a questão da soberania dos Estados dentro dos blocos regionais econômicos, deve-se entender o direito comunitário. Aqui, segui-se o entendimento de que no direito comunitário "os Estados-membros transferiram, por delegação, poderes normativos próprios de cujo exercício decorrem normas com efeitos diretos no ordenamento de cada um destes Estados" (XAVIER, 1993, 163).
Desta forma, no direito comunitário os Estados estão submetidos à obediência de certas normas, porque transferiram, parcialmente, certas atribuições advindas da soberania para a entidade que os agrupa.
O que se observa é que as entidades supranacionais detêm poderes diretos e coercitivos sobre os Estados-membros. Esses poderes são fixados pelos tratados que as instituem. Deve restar claro que "as comunidades não compõem uma federação, uma vez que os Estados-membros preservam a individualidade enquanto sujeitos do Direito das Gentes, exceto no que se refere às competências transferidas para as comunidades" (BARACHO, 1987, 100).
Não se pode olvidar que as regras às quais os Estados-membros de uma comunidade estão submetidos só lhes são imperativas porque esses resolveram, por sua vontade soberana, pertencer à uma comunidade, constituída por um complexo de normas jurídicas as quais eles devem se sujeitar. É interessante observar que
ao firmar um Tratado qualquer, os Estados abdicam de uma parcela de sua soberania e se obrigam a reconhecer como legítimo o direito da comunidade internacional de observar sua ação interna sobre o assunto de que cuida o instrumento jurídico negociado e livremente aceito (GÓIS, 2000, 1).
Torna-se irreal considerar a soberania como ilimitada no plano das relações internacionais. Com efeito, "à medida que os Estados assumem compromissos mútuos em convenções internacionais, que diminuem a competência discricionária de cada contratante, eles restringem sua soberania" (MAZZUOLI, 2002, 2).
Essa "limitação" na soberania dos Estados pode ser vislumbrada claramente na formação dos blocos regionais econômicos, advinda da necessidade dos Estados de se unirem para alcançar determinados objetivos comuns.
No Acórdão nº 06/64 do Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, pode-se encontrar afirmação de que há realmente uma limitação na soberania dos Estados. È o que se depreende da leitura do seguinte trecho do referido acórdão:
(...) ao criar uma comunidade de duração ilimitada dotada de instituições próprias, de personalidade, de capacidade jurídica, de capacidade de representação no plano internacional e, mais precisamente, de efetivos poderes oriundos de uma limitação de soberanias ou de uma transferência de poderes dos Estados para a Comunidades, estes limitaram seus poderes soberanos e, assim, criaram um corpo de leis aplicável tanto aos seus respectivos cidadãos como a eles próprios (...).
Estas entidades supranacionais (os blocos econômicos) se constituíram com base no princípio da subsidiariedade, no qual os Estados-membros decidiram confiar a órgãos comuns, apenas os poderes necessários ao desempenho das tarefas que esses podem realizar de forma mais satisfatória que os Estados considerados isoladamente.
Devido a estas características, RIBEIRO considera que as "entidades supranacionais não eliminam o caráter de sujeitos de Direito internacional dos Estados-membros, mas somente limitam o exercício da prerrogativa de entes soberanos nos setores de atividades inerentes aos processos de integração em que os Estados se encontram inseridos" (RIBEIRO, 2001, 36).
De qualquer forma, a abdicação de parte da soberania ao ente comunitário não deve ser entendida como uma eliminação desta soberania. Apóia-se a idéia de que a noção de soberania é compatível com a sujeição a um sistema jurídico como bem demonstra VIGNALI, ao dizer que
Cremos que a sujeição a uma ordem jurídica é imprescindível para proteger a soberania, evitando que esta possa desaparecer; por conseguinte, não somente podem, como devem existir normas jurídicas que se imponham aos Estados soberanos, porém seu modo de produção tem que ser especial: não devem provir da vontade de um terceiro, mas da vontade coordenada de seus próprios sujeitos, submetendo-se, pois, a regras que nascem, se valorizam e vigiam através de decisões e ações conjuntas e soberanas de seus sujeitos que, conseqüentemente, não afetam suas respectivas soberanias (VIGNALI, 1996,32-6).
Entendemos, então, que a soberania melhor se expressa como “a qualidade do poder supremo do Estado de não ser obrigado ou determinado senão pela sua própria vontade, dentro da esfera de sua competência e dos limites superiores do Direito” (PAUPÉRIO, 2000,137).
4. CONCLUSÃO
Num mundo globalizado em que o caminho para o crescimento (ou sobrevivência) econômico desembocou na formação de blocos econômicos, faz-se necessário a flexibilização do conceito de soberania do Estado. Não há como compatibilizar o conceito clássico de soberania, como poder absoluto do Estado, com as exigências de cooperação econômica internacional.
Por isso, a soberania vem sendo considerada pelos juristas como simples independência. É o que se constata das palavras de JO:
O conceito de soberania absoluta do Estado alterou-se com o decorrer do tempo, significando hoje a independência e a subordinação ao DI. (...) A soberania significa independência, mas não significa que o Estado é independente em todas as coisas. Estado soberano é entendido como sendo aquele que se encontra subordinado direta e imediatamente à ordem jurídica internacional, sem que exista entre ele e o DI qualquer outra coletividade de permeio (JO, 2000, 203-4).
E justamente esta característica de independência internacional que assegura os Estados a capacidade de se relacionarem uns com os outros. Hodiernamente, uma das formas de relacionamento que se verifica é a adesão dos Estados à integração econômica, e, para que isto ocorra, torna-se imprescindível que o conceito de soberania comporte restrições. Nas sábias palavras de Casella, citado por RIBEIRO:
... ocorrem inúmeras limitações à plena extensão teoricamente atribuível ao conceito de soberania, em razão da necessidade de convivência e coordenação dos interesses dos diferentes Estados, restringindo a possibilidade de seu exercício, sem que por isso seja cabível falar em supressão da soberania, qualificando-se a perda da extensão teórica da soberania, em função dos imperativos de convivência dos Estados com os demais, sob a regência das normas de direito internacional geral (RIBEIRO, 2001, 37).
Pode-se afirmar que o momento atual exige um processo de flexibilização da concepção da soberania, fruto da nova ordem integrada, tendo em vista que o movimento por uma cooperação cada vez mais estreita entre as nações ocasionou um desgaste dos poderes soberanos dos Estados. No direito comunitário, o que se visualiza é a abdicação de parte de suas soberanias pelos Estados-membros. Há uma verdadeira subordinação das ordens jurídicas estatais ao interesse comunitário e não poderia ser diferente para que os fins da integração sejam alcançados.
Chega-se a inarredável conclusão de que a visão clássica de soberania e o poder ilimitado que esta supõe mostram-se um tanto contraditório à idéia de unificação de mercados e de integração comunitária que está a guiar os Estados nos tempos hodiernos.
BIBLIOGRAFIA
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