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Fator previdenciário e atividades especiais: a inconstitucional redução das aposentadorias femininas

31/07/2013 às 16:40
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Deve ser preservada a isonomia entre homens e mulheres, evitando prejuízo às trabalhadoras que tiverem desempenhado tarefas em condições prejudiciais à saúde ou à integridade física.

Desde o fim de 1999, como amplamente sabido, incide no cálculo das aposentadorias por tempo de contribuição (ATCs) e de algumas aposentadorias por idade do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) o chamado fator previdenciário, calculado com base na idade e na conversão em anos do número de contribuições do(a) trabalhador(a) quando da aposentadoria[1]. Nos termos do art. 29, I da Lei 8.213/91 (redação dada pela Lei 9.876/99), esse coeficiente é aplicado à média dos salários-de-contribuição do período-base de cálculo, resultando daí o valor do provento.

Sabe-se também que, nos termos da Constituição da República (art. 201, § 7º, I, c/c art. 5º, I), trinta anos de contribuição de uma mulher equivalem a trinta e cinco de um homem. Isso porque, embora tenha revogado a garantia da integralidade do provento para quem contribui pelo equivalente a essas quantidades de tempo, a Emenda Constitucional 20 não alterou nem poderia ter alterado o art. 5º, I da Carta da República, que estatui como garantia individual fundamental (é dizer, pétrea, nos termos do art. 60, § 4º, III) a igualdade de gênero ao determinar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição” – ou seja, que as únicas distinções admitidas são as previstas nela própria ou as que confiram às mulheres alguma proteção especial ou visem promovê-las no âmbito de alguma ação afirmativa.

Por isso é que, embora admissível, a proporcionalidade do valor da aposentadoria à quantidade de contribuições vertidas mesmo quando esta supere 30(m) ou 35(h) anos[2], qualquer critério de cálculo que se venha a estabelecer deve, obrigatoriamente, nortear-se pela equivalência entre x anos de contribuição de uma mulher e x+5 de um homem. Tanto o sistema constitucional brasileiro contém essa premissa que a mesma EC 20, na parte em que institui o regime extintivo da chamada aposentadoria proporcional (art. 9º, § 1º), fixa iguais coeficientes de cálculo a incidir sobre o valor médio dos salários-de-contribuição após 25 anos de contribuição feminina e 30 anos de contribuição masculina (70%); 26 anos de contribuição de uma mulher e 31 de um homem (75%); 27 e 32 (80%); 28 e 33 (85%); e 29 e 34 (90%).

Também quando elaborada a Lei 9.876 – e este é um dado importante ainda que não se reconheça a existência da imposição constitucional supra descrita – , esse critério foi observado: o § 9º, I que ela acresceu ao art. 29, da Lei 8.213, determina o acréscimo de cinco anos fictos ao tempo de contribuição das seguradas quando do cálculo do fator previdenciário, de modo a manter a correlação x (m) = x+5 (h). Por força desse dispositivo, um homem e uma mulher de mesma idade terão igual fator previdenciário sempre que as contribuições dele – não importa quantas sejam – superarem em exatamente 5 anos as dela. Assim, as trabalhadoras cobertas pelo RGPS têm direito constitucional e legal a que seus períodos de contribuição sejam considerados como os de um trabalhador que houver contribuído pelo equivalente a cinco anos mais. 28 anos de contribuição de uma mulher equivalem a 33 de um homem; 30 anos de contribuição de uma segurada equivalem a 35 de um segurado; e 32 anos de contribuição de uma trabalhadora equivalem a 37 de um trabalhador, para citar alguns exemplos. Se as idades forem idênticas, os homens e mulheres de cada uma dessas hipóteses terão idêntico fator previdenciário; para, v.g., 55 anos, o fator será 0,673 no primeiro exemplo; 0,716 no segundo; e 0,76 no terceiro[3].

Um aspecto de importância capital é que essa soma de cinco anos fictos não se dá na apuração do tempo de contribuição das mulheres, mas tão-só quando do cálculo de seu fator previdenciário. Isto porque tal acréscimo não se destina a possibilitar que as mulheres se aposentem com menos contribuições que os homens (direito que já lhes é assegurado pela Constituição e pela Lei 8.213), mas a equiparar o fator previdenciário da mulher com x anos de contribuição ao de um homem de mesma idade com x + 5. Se a soma de cinco anos ocorresse ao apurar-se o tempo de contribuição a ser considerado para fins de aferição do direito à aposentadoria, as mulheres terminariam por poder aposentar-se aos 25 (e não 30) anos de contribuição; outra coisa, porém, e como visto, é o tempo a se considerar para fins de obtenção do fator previdenciário.

Tudo isto posto, vem ocorrendo, desde o advento da Lei 9.876, uma gravíssima, ilegal e inconstitucional distorção em prejuízo das trabalhadoras que se aposentam pelo RGPS. Essa distorção decorre de normas infralegais e é possibilitada, de um lado, por uma omissão no texto da Lei 9.876, e de outro, e pelo analfabetismo matemático que grassa entre servidores do INSS, profissionais do Direito e até mesmo entre alguns tecnocratas que se acreditam versados no assunto. Frise-se este ponto porque, contendo apenas assertivas triviais sobre Direito Previdenciário, este não é, a bem dizer, um artigo sobre tal matéria, mas sobre “o analfabetismo matemático e suas consequências”, subtítulo de um livro do qual bem poderia ser um capítulo: Inumerismo, de John Allen Paulos, publicado em português pela editora Europa-América.

O problema está naquelas situações em que a trabalhadora tenha desempenhado atividade reconhecida como especial por nociva (concreta ou potencialmente) à saúde ou à integridade física, mas não tenha direito à aposentadoria especial.

Os períodos de exercício dessas atividades, como se sabe, são convertidos em tempo de trabalho comum mediante a incidência de distintos multiplicadores para homens e mulheres. Na situação mais frequente (trabalhos que ensejariam aposentadoria especial aos 25 anos), multiplicam-se os períodos em questão por 1,4 e 1,2, respectivamente. E de onde vêm esses multiplicadores? A resposta está nas próprias tabelas que os definem em sucessivos regulamentos previdenciários: da proporção entre os tempos necessários à aposentadoria especial e à comum por tempo de contribuição (35/25 = 1,4; 30/25 = 1,2). Vide, por exemplo, a tabela do art. 70 do Decreto 3.048:

TEMPO A CONVERTER

MULTIPLICADORES

MULHER (PARA 30)

HOMEM (PARA 35)

DE 15 ANOS

2,00

2,33

DE 20 ANOS

1,50

1,75

DE 25 ANOS

1,20

1,40

O fato de o multiplicador incidente sobre o tempo de contribuição feminino em atividade especial ser menor que o masculino não implica, portanto prejuízo às mulheres quando se utilizam esses coeficientes para o objetivo que os originou, que é apurar tempo de contribuição. Se o que se busca é aferir a quanto equivaleria, na base 30 (referente à ATC feminina comum) um determinado número de anos trabalhados na base 25 (correspondente à aposentadoria especial), basta multiplicá-lo pelo resultado da divisão 30/25, ou seja, 1,2. Essa operação é conhecida como regra de três simples.

Tomemos como exemplo uma mulher e um homem que tenham trabalhado, cada um, 20 anos sob condições nocivas à saúde ou à integridade física, e desejem ter esse período computado para ATC comum. A multiplicação de 20 por 1,2 resulta em 24 anos, tempo equivalente a 80% do necessário para uma mulher se aposentar por tempo de contribuição (30 anos). A multiplicação de 20 por 1,4, por sua vez, tem como resultado 28 anos, 80% do tempo necessário à ATC comum masculina (35 anos). Portanto, o uso de multiplicadores diversos nessa circunstância preserva a distinção constitucional entre os requisitos temporais para aposentadoria de homens e mulheres e também a igualdade entre os sexos, já que, correspondendo a diferentes quantidades de anos quando transpostos para a base comum, os anos de exercício de atividade especial correspondem, ao mesmo tempo, a iguais frações do tempo necessário à ATC.

Ocorre que, como visto, o tempo de contribuição considerado no cálculo do fator previdenciário de uma mulher que tenha contribuído pelo equivalente a 30 anos não é 30, mas 35 anos. Logo, é absolutamente impróprio o uso, para tal fim, de um multiplicador resultante da divisão de 30 por 25 – e, para comprová-lo, basta ver o que acontece com o homem e a mulher do exemplo acima.

Suponhamos que, além desses 20 anos em atividade especial que se tornam 28 para ele e 24 para ela, os dois tenham trabalhado, respectivamente, 15 e 10 anos em atividade comum. Supondo que ambos tenham 55 anos de idade, o fator previdenciário do homem será, portanto, o correspondente a essa idade e 43 anos de contribuição (20 em atividade especial, 8 fictos resultantes do multiplicador 1,4 e 15 em atividade comum), que é, hoje, 0,893; o da mulher será o que corresponde a 55 anos de idade e 39 anos de contribuição (20 anos em atividade especial, 4 anos fictos resultantes do multiplicador 1,2, 10 anos de atividade comum e mais 5 anos fictos decorrentes do art. 29, § 9º, I da Lei 8.213), que é 0,804. Uma diferença de 11%, variável conforme as diversas combinações possíveis de idade e tempo de contribuição em atividade especial e comum, simplesmente porque o INSS usa um multiplicador correspondente à base 30 numa operação em que a base a ser considerada é no mínimo[4] 35 – e, portanto, o multiplicador a incidir sobre o tempo de contribuição feminino em atividade especial não poderia ser menor que o resultante da divisão de 35 por 25, que é 1,4.

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Se ainda existe alguma dúvida acerca da ilegalidade e inconstitucionalidade disso, basta lembrar que, se esse mesmo homem e essa mesma mulher nunca tivessem exercido atividade especial, teriam idêntico fator previdenciário (o correspondente a 55 anos de idade e 35 de contribuição), já que, sem a incidência dos multiplicadores, o tempo de contribuição dele é 35 anos e ao dela, que é 30, somam-se os 5 do art. 29, § 9º, I da Lei 8.213. Esse dado é decisivo porque ainda que se viesse a considerar que a Constituição confere ao Estado discricionariedade para estipular em lei critérios de cálculo que resultem em proventos de diferentes valores para homens com 35 anos de contribuição e mulheres com 30, não há como sustentar que ele possa instituir mecanismos de preservação dessa isonomia quando se tratar de trabalhadores que tenham exercido atividade comum e, ao mesmo tempo, deixar de observá-la quando houver cômputo de atividade especial.

É impossível não concluir, portanto, que embora o multiplicador aplicável ao tempo de contribuição em atividade especial das seguradas do RGPS na apuração desse tempo para fins de verificação do direito à ATC (quando o requisito temporal é de 30 anos) seja 1,2, o que deve incidir no cálculo do fator previdenciário (quando esses 30 anos se transformam em 35) é 1,4, de maneira a preservar a isonomia entre homens e mulheres e evitar prejuízo às trabalhadoras que tiverem desempenhado tarefas em condições prejudiciais à saúde ou à integridade física.  Esse é o corolário das questões de direito examinadas aqui, que são, como já dito, todas muito simples. Espantoso, inclusive por isso, é que tamanha distorção venha ocorrendo há mais de treze anos sem que ninguém seja capaz de percebê-la.


Notas

[1] Na realidade, não existem, no Brasil, benefícios por tempo, mas por quantidade de contribuições. Uma mulher que tenha começado a verter dinheiro à Previdência Social em meados de 1970 e terminado de fazê-lo em 2000 terá contribuído por trinta anos; mas só terá direito a se aposentar se, nesse meio tempo, não tiver deixado de fazê-lo por nem um único mês – isto é, se tiver não trinta anos de contribuição, mas 360 contribuições mensais. Apesar disso, se usará aqui a expressão “tempo de contribuição” no sentido que acabou por se tornar corrente, de modo a facilitar a compreensão do texto.

[2] Essa afirmativa não implica a admissão da constitucionalidade do fator previdenciário, posto que o que se questiona nas ADIs 2.110 e 2.111, contra ele propostas ainda em 1999 e até hoje não julgadas senão quanto à liminar, é a consideração da idade – e não do tempo de contribuição – no cálculo do valor da ATC.

[3] Fatores vigentes em 2013, baseados nas tábuas de mortalidade de 2011 do IBGE. O fator previdenciário, como se sabe, é móvel, devido à variação da expectativa de vida da população, um dos elementos que o integram. Ou, como disse o advogado Décio Scaravaglioni numa mesa-redonda televisiva que tive a oportunidade de compartilhar com ele, “quanto melhor a Saúde, pior a Previdência”.

[4] Existem razões para considerar que essa base – e, portanto, o multiplicador – deveriam ser maiores para homens e mulheres, tema que será desenvolvido em outro artigo.

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Sobre o autor
Henrique Júdice Magalhães

Advogado (OAB/RS 72.676), ex-pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e ex-consultor da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Cursa atualmente o doutorado em Direito na Universidad de Buenos Aires.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Henrique Júdice. Fator previdenciário e atividades especiais: a inconstitucional redução das aposentadorias femininas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3682, 31 jul. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25039. Acesso em: 26 abr. 2024.

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