A chamada “lei do silêncio” vem sendo aplicada de maneira arbitrária sem observância dos preceitos mais básicos do direito ao contraditório e a ampla defesa.
1. Introdução
Em 23 de janeiro de 2008 a Lei Municipal 9.505/08 de Belo Horizonte passou a ter vigência visando regulamentar o controle de ruídos, sons e vibrações trazendo em seu corpo a definições de limites, horários, penalidades e demais regramentos acerca do assunto.
Embora a referida Lei tenha conteúdo de extrema relevância social, a mesma peca em vários aspectos, nos quais parece uma tentativa sem limites de pura e simplesmente tentar punir as supostas infrações apuradas, quando se infere sua aplicação prática pelos fiscais responsáveis e, até mesmo da Administração Pública.
A verdade é que Leis com essa natureza devem precipuamente adotar critérios e padrões de orientar e sanar os eventuais excessos apurados, notadamente os provenientes de estabelecimentos comerciais, que devem sim ser fiscalizados e, de outro lado, orientados a um adequado funcionamento em face da importância dos mesmos dentro da própria economia da cidade.
2. Da incorreta aplicação da Lei 9.505/2008
A abordagem que a seguir será exposta se baseará na aplicação em caso concreto que vem adotando o Município de Belo Horizonte na aplicação da Lei Municipal 9.505/2008 ocasionando a autuação de diversos estabelecimentos comerciais de forma desenfreada e flagrantemente arbitrária.
Observando a lei em comento, é fácil perceber que a mesma foi criteriosa em trazer formas de apuração quanto à divisão dos períodos diurno, vespertino e noturno, com a previsão dos níveis de ruídos toleráveis em cada um deles, notadamente em seus artigos 3.º e 4.º:
Art. 3º - Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
I - poluição sonora: a alteração adversa das características do meio ambiente causada por emissão de ruído, som e vibração que, direta ou indiretamente, seja ofensiva ou nociva à saúde física e mental, à segurança e ao bem-estar dos meios antrópico, biótico ou físico, ou transgrida as disposições fixadas nesta Lei;
II - período diurno: o período de tempo compreendido entre as 07:01 h (sete horas e um minuto) e as 19:00 h (dezenove horas) do mesmo dia;
III - período vespertino: o período de tempo compreendido entre as 19:01 h (dezenove horas e um minuto) e as 22:00 h (vinte e duas horas) do mesmo dia;
IV - período noturno: o período de tempo compreendido entre as 22:01 h (vinte e duas horas e um minuto) de um dia e as 07:00 h (sete horas) do dia seguinte;
(...)
Art. 4º - A emissão de ruídos, sons e vibrações provenientes de fontes fixas no Município obedecerá aos seguintes níveis máximos fixados para suas respectivas imissões, medidas nos locais do suposto incômodo:
I - em período diurno: 70 dB(A) (setenta decibéis em curva de ponderação A);
II - em período vespertino: 60 dB(A) (sessenta decibéis em curva de ponderação A);
III - em período noturno: 50 dB(A) (cinqüenta decibéis em curva de ponderação A), até às 23:59 h (vinte e três horas e cinqüenta e nove minutos), e 45 dB(A) (quarenta e cinco decibéis em curva de ponderação A), a partir da 0:00 h (zero hora).
§ 1º - Às sextas-feiras, aos sábados e em vésperas de feriados, será admitido, até às 23:00 h (vinte e três horas), o nível correspondente ao período vespertino.
(...)
Não há o que se discutir em relação às definições trazidas pelos artigos que foram transcritos. Pelo contrário, mostram os níveis e classificações bem delimitados, de forma clara e precisa.
Os problemas da citada lei se iniciam com a efetiva aplicação por parte dos fiscais, os quais simplesmente ignoram por completo as regras e formas de apuração dos ruídos que são abordados de maneira técnica também pelo artigo 4.º em seus parágrafos 2.º e seguintes:
§ 2º - As medições do nível de som serão realizadas utilizando-se a curva de ponderação A com circuito de resposta rápida, devendo o microfone ficar afastado, no mínimo, de 1,50 m (um metro e cinqüenta centímetros) dos limites reais da propriedade onde se dá o suposto incômodo, e à altura de 1,20 m (um metro e vinte centímetros) do piso.
§ 3º - Na impossibilidade de verificação dos níveis de imissão no local do suposto incômodo, será admitida a realização de medição no passeio imediatamente contíguo ao mesmo, sendo considerados como limites os níveis máximos fixados no caput deste artigo acrescidos de 05 dB(A) (cinco decibéis em curva de ponderação A).
§ 4º - Para o resultado das medições efetuadas serão adotados os seguintes critérios:
I - ruído contínuo e ruído intermitente: o nível de som corrigido será igual ao nível de som equivalente medido;
II - ruído impulsivo e som com componentes tonais: o nível de som corrigido será igual ao nível de som equivalente medido, acrescido de 05 dB(A) (cinco decibéis em curva de ponderação A);
III - ruído proveniente da operação de compressores, de sistemas de troca de calor, de sistemas de aquecimento, de ventilação, de condicionamento de ar, de bombeamento hidráulico ou similares, independentemente de sua natureza contínua ou intermitente: o nível de som corrigido será igual ao nível de som equivalente medido, acrescido de 05 dB(A) (cinco decibéis em curva de ponderação A).
§ 5º - Independentemente do ruído de fundo, o nível de som proveniente da fonte poluidora, medido dentro dos limites reais da propriedade onde se dá o suposto incômodo, não poderá exceder os níveis fixados no caput deste artigo.
§ 6º - Quando a propriedade em que se dá o suposto incômodo tratar-se de escola, creche, biblioteca pública, cemitério, hospital, ambulatório, casa de saúde ou similar, deverão ser atendidos os menores limites:
I - em período diurno: 55 dB(A) (cinqüenta e cinco decibéis em curva de ponderação A);
II - em período vespertino: 50 dB(A) (cinqüenta decibéis em curva de ponderação A);
III - em período noturno: 45 dB(A) (quarenta e cinco decibéis em curva de ponderação A).
§ 7º - O nível de som proveniente da fonte poluidora, medido dentro dos limites reais da propriedade onde se dá o suposto incômodo, não poderá exceder em 10 dB(A) (dez decibéis em curva de ponderação A) o nível do ruído de fundo existente no local.
O que na prática passamos a observar foi a lavratura de autos de infração reiteradas vezes sem a precisa indicação dos elementos técnicos necessários a subsidiar os supostos excessos apontados, o que caracteriza ofensa à ampla defesa e ao contraditório.
Não bastasse a ausência de informações básicas nos autos de infrações e a total falta de atendimento dos critérios adotados na medição, aqueles que haviam sido autuados buscavam se defender no âmbito administrativo sem lograr êxito, valendo ainda destacar que o Município de Belo Horizonte simplesmente ignorava qualquer meio de um trabalho conjunto de regularização e adequação para evitar os supostos ruídos em excesso.
Diante da completa impossibilidade de solucionar o problema na via administrativa e, também, da postura imutável da Prefeitura de Belo Horizonte, a matéria começou a ser levada ao Judiciário visando a anulação dos autos de infrações lavrados, diante da escancarada ilegalidade percebida nos mesmos.
A matéria ainda é recente no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, estando ainda sendo apreciada em 1.ª instância, como se deu nos autos de n.º 0024.10.149341-9 que tramitaram na 6.ª Vara da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Belo Horizonte/MG, na qual o pedido foi julgado procedente para:
“...determinar a nulidade e o cancelamento do auto de infração n.º (....), bem como das multas e demais penalidades aplicadas ao Autor em decorrência desse auto de infração.”
As irregularidades e a aplicação equivocada da Lei em comento se devem ao fato de que, embora haja critérios definidos para aferição dos ruídos, na prática, nenhum deles é observado, nem no momento da medição e sequer quando da efetiva entrega e comunicação da lavratura do auto de infração.
Esses dados são importantíssimos porque, atualmente, os agentes nocivos no tocante aos ruídos são diversos, como trânsito local com fluxo de carros, ônibus, veículos de grande porte. No tocante a estabelecimentos comerciais, nos deparamos com determinadas regiões e ruas onde existem vários, havendo necessidade de apuração dos ruídos de maneira individualizada para fins de penalidade.
Não bastassem tais fatos, os autos de infrações costumeiramente lavrados sequer apontam o equipamento de medição utilizado, que recebe o nome de decibelímetro, e tampouco sua última regulagem.
Se mostra de extrema relevância a discussão também pelo fato de que, dentre as punições existentes e previstas na Lei Municipal 9.505/2008, verificamos até mesmo a cassação de alvará:
Art. 13 - Os infratores desta Lei estarão sujeitos às seguintes penalidades, além da obrigação de cessar a transgressão:
I - advertência;
II - multa;
III - interdição parcial ou total da atividade, até a correção das irregularidades;
IV - cassação do Alvará de Localização e Funcionamento de Atividades ou de licença.
Como já dito de forma exaustiva são dados essenciais para buscar a regularidade das autuações mas que parecem terem sido esquecidos pelo Município de Belo Horizonte buscando simplesmente agir com uma algoz dos estabelecimentos comerciais existentes onde se busca apenas o caráter de punir, punir e punir, sem margem para qualquer atuação preventiva e conjunto visando atingir níveis adequados em locais onde se mostram excessivo.
3. Conclusão
Diante desses fatos, é possível perceber que a Lei Municipal 9.505/2008, embora tenha uma intenção nobre e admirável, vem sendo aplicada de forma a simplesmente punir a todos aqueles que supostamente infringem os limites toleráveis de ruídos de acordo com os critérios legais definidos.
A decisão proferida e citada no presente documento certamente demonstra o início de diversas outras que serão ainda apreciadas pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, onde as supostas infrações serão levadas ao crivo da ampla defesa e do contraditório.
Note-se que as ações judiciais não têm como principal objetivo manter impunes os estabelecimentos comerciais, para agirem de forma livre, produzindo excessos de ruídos e trazendo transtorno à população. A verdadeira intenção da discussão ora tratada e levada ao conhecimento e apreciação do Judiciário é a maneira como deve ser feita a fiscalização e até mesmo a forma de punir os supostos infratores.
Nesse sentido o que se espera a partir de agora é que o Município de Belo Horizonte primeiramente observe de forma responsável as formas de medições previstas na legislação própria e abra espaço para a adoção de medidas conjuntas, visando atingir o objetivo principal da Lei 9.505/2008.