4. Referendo: conceito
A expressão vem de ad referendum, sendo originária da prática, em certas localidades suíças, desde o século XV – como os cantões de Valais e Grisons -, de consultas à população para que se tornassem válidas as votações nas assembleias cantonais.
Entretanto, foi durante a Revolução Francesa que se ascendeu a discussão quanto a esse tema, tendo os defensores da soberania popular (baseados na doutrina de Rousseau), entre os quais se destaca Robespierre, defendido ardentemente uma maior participação direta do povo através desse instituto, enquanto os defensores da soberania nacional, ou soberania parlamentar (baseados na doutrina de Montesquieu), entre os quais Sieyès, defendiam a tese oposta. Na briga, saiu vencedora a segunda corrente.
Contudo, anos mais tardes (a partir de 1799) Napoleão voltou a defender e utilizar o mecanismo das consultas populares, denominando-o de plebiscito. Como a iniciativa, objeto e forma de procedimento destes ficavam ao talante do chefe do Executivo, que conseguia colocar a sua causa como se fosse de interesse da nação frente às classes populares, terminou-se por deturpa o mecanismo, que acabou a ser uma consulta a favor ou contra um homem, e não a favor ou contra uma ideia.
Tal repasse pela perspectiva histórica do instituto serve para justificar a conotação dada ao mesmo na França, onde o plebiscito aparece como a deturpação do referendo, assim como a demagogia é a deturpação da democracia.
Mas, como amplamente discutido no item anterior, essa conotação dada ao referendo na França, ou em outros países (a exemplo da Espanha), não se infiltra no direito brasileiro, onde a diferença entre plebiscito e referendo existe, mas nos exatos termos e limites explicitados no item anterior.
5. Iniciativa popular: conceito
O processo de formulação de leis segue uma série de fases, sendo a primeira delas a fase de iniciativa da proposição. Ordinariamente, essa fase cabe a um dos representantes do povo no Parlamento, porém, o próprio texto constitucional estabelece casos em que a iniciativa é privativa de outras pessoas (e.g. proposta sobre a alteração da organização e da divisão judiciárias, onde a legitimidade é privativa do Supremo Tribunal Federal, Tribunais Superiores, ou Tribunais de Justiça, conforme preceitua o art. 96, II, d, da CF.). Com a iniciativa popular ocorre algo parecido, uma vez que o texto constitucional permite, faculta (e não restringe, como nos casos anteriores), uma troca na legitimidade para propor leis, no caso, legitima-se um certo número de membros do grupo social a fazê-lo, desde que respeitadas as condições (número de pessoas, etc.) legalmente exigidas.
Segundo Maria Victória de Mesquita Benevides[21], in verbis:
O termo iniciativa popular legislativa é auto-explicável. Trata-se do direito assegurado a um conjunto de cidadãos de iniciar o processo legislativo, o qual desenrola-se num órgão estatal , que é o Parlamento.
Por iniciativa popular legislativa entende-se sempre o mesmo mecanismo, que inclui um processo de participação complexo, desde a elaboração de um texto (das simples moções ao projeto de lei ou emenda constitucional formalmente articulados) até a votação de uma proposta, passando pelas fases de uma campanha, coleta de assinaturas e controle da constitucionalidade.”
Tal iniciativa pode ser articulada ou por moção. A primeira se verifica quando o projeto é apresentado mediante sucessão de artigos que conformam a proposição, já a segunda equivale a uma petição na qual o povo pleiteia, junto ao Parlamento, a elaboração de um projeto de lei sobre assunto que vai especificado, mas não em artigos articulados.
Do ponto de vista normativo ela se encontra disciplinada em três diferentes partes do texto constitucional, conforme se refira a esfera municipal (art. 29, XI), estadual (art. 27, IV), ou federal (art. 61, § 2º). Sendo de se acrescentar que a Lei nº 9.709/98, em seu art. 13 e parágrafos, também disciplina a iniciativa a nível federal, no entanto sem alterar as linhas gerais definidas na Constituição.
Seguindo a mesma linha de pesquisa até aqui exposta, analisando os elementos constitutivos destes institutos à luz dos seus suportes fácticos abstratos (ou hipotéticos), podemos dizer que são elementos da iniciativa popular legislativa: a propositura pelo povo de um projeto de lei e a necessidade de se respeitar a forma solene constante do texto constitucional (repetida na Lei 9.709/98), principalmente quanto ao número mínimo do eleitorado nacional do qual se exige a assinatura da proposta.
Para asseverar a importância desse mecanismo de participação popular, vale a pena trazer à tona os sempre valiosos ensinamentos do mestre Pontes de Miranda[22], in verbis:
Democracia sem possibilidade de iniciativa popular de leis é democracia imperfeita......Entre a iniciativa e a deliberação devem caber a algum corpo o exame e a discussão do projeto de origem popular...A regra é ser ouvido o Parlamento, que o discute e vota.
6. Conclusões
De tudo quanto visto pode-se dizer que os mecanismos do plebiscito, referendo e inciativa popular encontraram, a partir do texto constitucional de 1988, a devida previsão normativa para serem utilizados como importantes instrumentos da democracia semidireta, em regramento complementado, do ponto de vista jurídico, com a edição da Lei Federal nº 9.709/98.
O plebiscito é a consulta popular realizada antes da elaboração da lei ou ato administrativo, enquanto o referendo é a consulta popular realizada após a elaboração da lei ou ato administrativo.
A iniciativa popular legislativa é a faculdade conferida ao povo, desde que respeitados os requisitos formais (número de assinaturas e outros), de propor projetos de lei, alterando a legitimidade normal para iniciar o curso do processo legislativo.
Assim postos os seus conceitos, resta analisar o conteúdo de cada um desses institutos, assunto que merece ser continuado em outro artigo dedicado ao tema.
Notas
[1] SGARBI, Adrian; ASSAD, Christianne Cotrim. Democracia semidireta no Brasil. Plebiscito, Referendo, Iniciativa Popular Legislativa. Teor comunicativo e procedimento. Disponível em: <http://w.puc-rio.br/sobrepuc/ depto/direito/revista/online/rev05_adrian>. Acesso em: 15 abr. 2006.
[2] SGARBI, Adrian; ASSAD, Christianne Cotrim. Democracia semidireta no Brasil. Plebiscito, Referendo, Iniciativa Popular Legislativa. Teor comunicativo e procedimento. Disponível em: <http://w.puc-rio.br/sobrepuc/ depto/direito/revista/online/rev05_adrian>. Acesso em: 15 abr. 2006.
[3] Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/ultnot/referendo/ultimas/2005/10/23/>. Acesso em: 23 out. 2005.
[4] LÔBO, Paulo Luiz Neto. Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 34 s.
[5] FERREIRA FILHO, Manuel Gonçalves. Plebiscito. In: Enciclopédia Saraiva de Direito, São Paulo: Saraiva, 1977, p. 18, vol. 59.
[6] GEMMA, Gládio. In BoBBio, Norberto et. al. Dicionário de Política. Brasília: UNB, p. 927, apud AFFONSO, Almino. Democracia Participativa: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Revista de Informações Legislativas. Brasília: Senado, nº 132: 11-27, out./dez. 1996, p. 14.
[7] AFFONSO, Almino. Democracia Participativa: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Revista de Informações Legislativas. Brasília: Senado, nº 132: 11-27, out./dez. 1996, p. 14.
[8] AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. Globo: Rio de Janeiro, 1941, p. 273, apud AFFONSO, Almino, ibidem, p. 15.
[9] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 19ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 130.
[10]“As decisões políticas de especial importância poderão ser submetidas a referendo consultivo de todos os cidadãos.”(Tradução livre). Disponível em: <http://www.congreso.es/consti/constitucion/indice/titulos/articulos.jsp?ini=92&tipo=2>. Acesso em 15 abr. 2006.
[11] FERREIRA, Pinto. Comentários à Constituição Brasileira. São Paulo: Saraiva, 1990, vol. I, p. 189.
[12] BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. São Paulo: Ática, 1998, p. 34.
[13] DANTAS, Francisco Wildo Lacerda. Reflexões Sobre o Processo Legislativo e a Participação Popular, Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 628: 30-62, fev. 1998, p. 105.
[14] BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. São Paulo: Ática, 1998, p. 35.
[15]BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 15 abr. 2006.
[16] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 126.
[17] AFFONSO, Almino. Democracia Participativa: plebiscito, referendo e iniciativa popular. Revista de Informações Legislativas. Brasília: Senado, nº 132: 11-27, out./dez. 1996, p. 17.
[18] CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989, Vol. II, p. 1095 s.
[19]BRASIL. Lei Federal nº 9.709/98. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 15 abr. 2006.
[20] “é a previsão, pela norma jurídica, da hipótese fáctica condicionante da existência do fato jurídico (suporte fáctico)....., algo (= fato, evento ou conduta) que poderá ocorrer no mundo e que, por ter sido considerado relevante, tornou-se objeto da normatividade jurídica.” In MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: Plano da Existência. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 35.
[21] BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A Cidadania Ativa: Referendo, Plebiscito e Iniciativa Popular. São Paulo: Ática, 1998, p. 33.
[22] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967 (com a Emenda nº 1, de 1969), 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, Tomo III, p. 559.