2. A TEORIA DA EQUIVALÊNCIA DOS ANTECEDENTES CAUSAIS E SUA APLICAÇÃO AO TERCEIRO/PARTICULAR NA LEI DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA
A condição sine qua nom para o terceiro/particular participar de relação processual no pólo passivo da demanda judicial movida contra a prática do ato de improbidade administrativa, conforme dito no tópico anterior, é o mesmo, em conjunto com o agente público, ter concorrido de forma direta ou indireta para a prática do ato ímprobo, se beneficiando do mesmo, agindo com dolo e má-fé.
A expressão “ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta” por si só não induz à obrigatoriedade da inclusão dos particulares no pólo passivo da ação judicial, como visto anteriormente. Não resta dúvida que somente os agentes públicos, com ou sem cooperação de terceiros, podem praticar atos de improbidade administrativa.
Contudo, é importante destacar que a Lei n.º 8.429/92 não contempla a figura jurídica do particular vinculado a outro particular em prática de ato de improbidade administrativa. Melhor dizendo, o particular/terceiro, pessoa física ou jurídica, para figurar no pólo passivo da ação de improbidade administrativa mesmo que não seja agente público, conforme dispõem os arts. 1.º e 3.º, da Lei n.º 8.429/92, não pode estar ligado puramente a ato de outros particulares, mas sim, obrigatoriamente, deve se conectar diretamente ao ato praticado pelo agente público (nexo de causalidade).
Isso porque para que a ação de improbidade administrativa possa ter plausibilidade jurídica é necessária a inclusão de pelo menos um agente público no pólo passivo da demanda,[13] que trave relação jurídica direta ou indireta com o particular.
Somente ao agente público caberá ser o autor da prática do ato de improbidade administrativa (sujeito ativo), e o particular que não estiver diretamente unido a ele, em coparticipação, ou que direta ou indiretamente receba benefícios, não será parte passiva na relação processual da ação de improbidade administrativa.
É necessário que demonstre a participação do particular, em conjunto com o agente público, na prática do ato ímprobo. Sem essa relação direta entre eles (nexo de causalidade), não há como responsabilizar o particular que não praticou ato algum em conluio com o agente público. A responsabilidade do particular na Lei n.º 8.429/92, tal qual a do agente público, é vinculada aos atos que pratica ativa ou passivamente, com má-fé ou dolo, visando um fim proibido, vedado pela Lei de Improbidade Administrativa.
A relação de causalidade ou nexo de causalidade, utilizados pelo Direito Penal também é aplicável na improbidade administrativa, tendo em vista que por ela se estuda a relação de causa e efeito entre a conduta do agente e o resultado obtido.
Dispõe o art. 13, § 1.º, do Código Penal:
“Art. 13. O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido.
§ 1º. A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou.”
A leitura do art. 13, § 1.º, do Código Penal permite ver que houve a adoção da teoria da equivalência dos antecedentes causais, que considera causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Ou em outras palavras, causa é tudo aquilo que pode modificar o resultado no mundo exterior. Abrange a condição e motivação, incluindo-se nesse contexto não só o resultado material unicamente, mas a ofendibilidade ao bem jurídico protegida pela norma penal.
Para saber se determinado fato é causa da prática do ato ilícito, utiliza-se do método hipotético de eliminação de Thyrén, “segundo o qual a mente humana julga que um fenômeno é condição de outro toda vez que, suprimindo-o mentalmente, resulta impossível conceber o segundo fenômeno”[14].
Ou seja, se não houvesse o fato, o resultado teria sido consumado? Se a conclusão for que não, é porque o fato foi causador do resultado. Assim, quando se procura definir se uma conduta foi ou não causa de determinado resultado pergunta-se: caso a conduta não tivesse sido praticada, o resultado teria ocorrido? Se o resultado se modificasse, é porque a conduta foi preponderante para a causa.
Aplica-se, pois, a teoria da causalidade adequada, aquele que prestigia a causa predominante que deflagrou o dano, tendo em vista que nem todos os antecedentes podem ser levados em conta na aferição do nexo de causalidade. Essa conclusão, no entanto, nem sempre satisfaz o caso concreto.
Tal teoria é utilizada também integralmente na responsabilidade civil do estado. Apesar de ser objetiva a responsabilidade civil do estado, ao verificar o comportamento funcional do agente público, é dever do julgador comprovar a existência do nexo de causalidade material entre o seu comportamento e o evento danoso, a fim de comprovar a viabilidade, no plano jurídico, do reconhecimento da obrigação de recomposição do dano sofrido pelo ofendido.
A demonstração da relação de causalidade (teoria da causalidade adequada) se revela essencial ao reconhecimento do dever de indenizar, levando-se em conta ser necessária tal prova para fins de ressarcimento.[15] Nessa linha de pensamento, extraem-se as seguintes lições do Min. Celso de Mello:[16]
“Vê-se, daí, que a comprovação da relação de causalidade revela-se essencial, pois, sem ela, não há como imputar, ao causador do dano, a responsabilidade civil ainda que objetiva, tal como enfatiza a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
Responsabilidade civil do Estado. Artigo 107 da Constituição. Assentada no risco administrativo, independente da prova de culpa. Basta que o lesado demonstre o nexo causal entre o fato e o dano. Recurso conhecido e provido.” (RE 116.333/RJK, Rel. Min. Carlos Madeira. Grifei)
Qualquer que seja o suporte doutrinário invocado para justificar a atribuição a alguém (inclusive ao Poder Público), da responsabilidade civil – teoria da equivalência das condições, teoria da causalidade necessária ou teoria da causalidade adequada -, o fato é que, conforme adverte Arnaldo Rizzardo (“Responsabilidade Civil”, p. 71, item n.1, 2ª ed., 2006, Forense), faz-se necessário a verificação de uma relação, ou liame, entre o dano e o causador, o que torna possível a sua imputação a um indivíduo” (grifei).”
A identificação em cada situação concreta do nexo de causalidade impõe o exame das circunstâncias fáticas evidenciadoras da existência ou não, da relação que deve haver entre a causa reveladora da responsabilidade civil e o prejuízo advindo dela, de tal modo que, deixando de ser comprovado esse indispensável liame, torna-se incabível imputar, ao causador do dano, a obrigação de indenizar.
Nessa linha, mesmo reconhecendo-se a responsabilidade civil objetiva do estado, o Supremo Tribunal Federal[17] pacificou ser necessária a demonstração do vínculo causal para fins de reparação financeira ao lesado. Havendo o evento danoso, afigura-se como necessário verificar-se justamente o nexo de causalidade entre ele e a participação do agente público, para fins de verificação de responsabilidades, incluindo-se nesse contexto a improbidade administrativa.
A partir da teoria da causalidade adequada, havendo mais de um responsável pelo evento danoso, é necessário se aferir a concorrência de culpas (causas), como critério de responsabilidade de cada envolvido para que seja responsabilizado quem deu causa ao prejuízo de outrem.
Somente o fato idôneo ou adequado para produzir o dano é que deve ser levado em consideração para o estabelecimento de responsabilidade do agente. Isso porque a responsabilidade do agente público tanto na esfera penal, como na disciplinar e na responsabilidade civil é subjetiva, vinculando a sua conduta comissiva ou omissiva, capaz de gerar danos ou prejuízos ao poder público ou a terceiros.[18]
Dessa forma, a teoria da causalidade adequada, ou da equivalência dos antecedentes causais, utilizada para a verificação da participação (conduta) tanto do particular na Lei n.º 8.429/92 como do agente público, é plenamente aplicada, visto ser evidente que o ato de improbidade administrativa somente poderá recair para os responsáveis diretos ou indiretos pela prática de ato ímprobo (nexo de causalidade).
Com a utilização da teoria da causalidade adequada para fins de subsunção da conduta do terceiro/particular na lei de improbidade administrativa, muitas conclusões serão admitidas no presente contexto, pois é defeso ao Ministério Público imputar responsabilidades objetivas para particulares que sequer tiveram relação ou participação direta ou indireta com o agente público acusado da prática do ato ímprobo.
Existentes condutas de várias pessoas são indispensáveis, do ponto de vista objetivo, que haja nexos causais entre cada uma delas e o resultado. Na improbidade administrativa não é diferente. Havendo essa relação (relevância causal) de atos ímprobos praticados pelo agente público, com a participação (adesão) do terceiro/particular, estará configurado, em tese, o ato vedado pela Lei n.º 8.429/92, com a responsabilidade de ambos.[19] Há que existir relevância causal de cada conduta entre o agente público e o particular na busca da prática do ato de improbidade administrativa.
Além da relevância causal da conduta do agente público e do terceiro/particular, também deverá ser demonstrado um liame psicológico entre o agente público e os particulares, na consciência de cooperarem entre si para a obtenção do ato ímprobo. Sem esses liames (relevância causal e liame psicológico) não será lícito e nem moral acusar o particular, ou particulares, de partícipes de uma relação jurídica ímproba.
Júlio Fabbrini Mirabete[20] também pensa da mesma forma quando elenca as seguintes conclusões sobre concurso de pessoas na obtenção de um fim vedado pela lei criminal:
“Havendo essa relação entre a ação de cada uma delas e o resultado, ou seja, havendo relevância causal de cada conduta, concorreram essas pessoas para o evento e por elas serão responsabilizadas. Há que se exigir, também, um liame psicológico entre os vários autores, ou seja, a consciência de que cooperam numa ação comum. Não basta atuar o agente com dolo (ou culpa), sendo necessária uma relação subjetiva entre os concorrentes. Somente a adesão voluntária, objetiva (nexo causal) e subjetiva (nexo psicológico), à atividade criminosa de outrem, visando a realização do fim comum, cria vínculo do concurso de pessoas e sujeita os agentes à responsabilidade pelas conseqüências da ação. Inexistindo esse liame psicológico, não há que se reconhecer o concurso de agentes disciplinado no artigo 29.”
Daí se conclui que a adesão voluntária do particular na prática do ato de improbidade administrativa se vincula a respectiva conduta (responsabilidade subjetiva), reveladora do nexo psicológico, em conjunto com a conduta dolosa e imoral do agente público (nexo de causalidade).
Inexistindo esse liame psicológico entre o terceiro/particular e o agente público é fato incontornável que não há participação descrita no art. 3º da Lei n.º 8.429/92, devendo o indivíduo ou a pessoa jurídica de direito privado ser excluída da demanda judicial.
Deve haver, portanto, na concorrência do ato de improbidade administrativa, a consciente e voluntária participação no fato (ato ímprobo) tanto do agente público como do particular.
Há que se ter o devido equilíbrio da acusação, que não poderá ser desatenta ou desleixada ao ponto de deixar de descrever a participação efetiva do particular (relevância causal e liame psicológico) no escopo da Lei n.º 8.429/92, bem como do agente público responsável pela prática do suposto ato ímprobo.
Por isso, quando o particular receber verba pública, por ter sido contratado pelo poder público para determinado serviço, por si só não pode ser considerado como “beneficiado” ilegal ou improbamente por tal contratação e, via de consequência, não pode ser responsabilizado objetivamente perante a Lei n.º 8.429/92, que como se sabe também exige a demonstração do elemento subjetivo.
Em sendo assim, o vínculo jurídico desse particular perante a Lei n.º 8.429/92, capaz de atrair a responsabilidade de outros particulares, deve prender-se básica e exclusivamente ao elemento subjetivo (relevância causal e liame psicológico) do partícipe do ato ímprobo, em conjunto e em conluio com o agente público.
Não contempla a Lei de Improbidade Administrativa a situação jurídica do particular, elencado como terceiro, com outros particulares que não praticaram atos com o poder público, ou até mesmo não se relacionaram por meio de condutas com o agente público investigado pela prática de ato ímprobo.
Deve-se ressaltar que a Lei n.º 8.429/92 não contempla a figura jurídica criminal da “lavagem de dinheiro”, que é disciplinada por diploma penal próprio e específico, e nem se imiscui na relação de particulares, empresas ou pessoas físicas entre si, pois o bem jurídico que tutela é a probidade dos atos praticados pelos responsáveis por entes de direito público, na forma do art. 1.º, da Lei n.º 8.429/92, com ou sem a adesão do particular.
Jamais a Lei n.º 8.429/92 contemplará a cadeira de atos particulares entre si e que não possuam uma relação causal com a prática do ato de improbidade administrativa, bem como inexistindo o correspondente liame psicológico, e mesmo que originariamente um deles tenha vínculo jurídico com o poder público não ocorrerá responsabilização de todos na prática do ato ímprobo. Ao ser incorporada a verba pública ao patrimônio do particular, em face ao vínculo direto com o ente de direito público, a relação entre ele e os outros particulares não está ao alcance da citada lei, senão comprovado o nexo de causalidade desses particulares com o agente público tido como ímprobo e igualmente o necessário liame psicológico.
Demonstrado o liame etiológico entre a conduta ímproba e o benefício auferido pela pessoa jurídica de direito privado ou física, impõe-se a correspondente sanção. Sendo certo que o ato de improbidade administrativa pressupõe a prova inequívoca do elemento subjetivo da conduta, através da prática de ato de má-fé, até mesmo para estabelecer o nexo de causalidade entre a conduta do agente público e o particular.
Não participando da relação (concorrência com uma causa) com o agente público, não há como denunciar a lide, no pólo passivo da demanda, o particular que não teve vínculo jurídico com o mesmo, ou participou da imoralidade qualificada. Devem ser demonstrados elementos mínimos entre os fatos tidos como ímprobos e a eventual conduta que teria sido praticada pelos terceiros e pelo agente público.
Exemplo claro do afirmado é quando particulares são alçados à condição de réus em ação civil pública por ato de improbidade administrativa, pelo simples fato de serem sócios proprietários de determinada empresa, mesmo não participando da administração ou não se relacionando direta ou indiretamente com o agente público que responde a ação de improbidade administrativa. E sabe-se que somente responderá por ato de improbidade administrativa aquele que deu causa a um resultado tido como ímprobo, ativa ou passivamente (relação de causa e efeito).
In casu, não é suficiente se considerar apenas a participação societária, pois a responsabilidade de sócios de empresas, além de ser subjetiva, deve se relacionar com a atuação do agente público acusado da prática do ato ímprobo visando à realização de um fim comum vedado pela Lei n.º 8.429/92. Pensar de modo diverso seria, em tese, a reedição da manutenção das responsabilidades objetivas dos particulares, por figurarem como sócios da empresa (sem ação de cada um deles para o resultado), mesmo não dando causa ou participando do ato ímprobo.
Aplica-se para essas situações a teoria da equivalência dos antecedentes causais, pois o benefício direto ou indireto do particular a que alude a parte final do art. 3º, da Lei n.º 8.429/92, exige para a subsunção de sua conduta na aludida lei do elemento subjetivo de cada um individualmente. Por isso a petição inicial da ação de improbidade administrativa deverá descrever a conduta de cada acusado pormenorizadamente, sob pena de rejeição da mesma.
Na Lei de Improbidade Administrativa, nos tipos dos arts. 9.º e 11, não se pune a título de culpa, como se sabe. Portanto, a petição inicial ao individualizar a conduta do particular é obrigada a descrever a prática de ato doloso do mesmo e a sua efetiva participação no evento tido como ímprobo, sendo vedada, via de consequência, a imputação culposa nesses dois tipos infracionais.
Da mesma forma, no prejuízo ao erário a responsabilização do terceiro deve vir devidamente fundamentada, respaldada na prática de ato de má-fé do mesmo (elementos mínimos de ligação entre os fatos e a eventual conduta), para que ocorra a subsunção de uma conduta do referido tipo ímprobo.
Em situação igual ao que se descreve no presente contexto foi trancada ação penal, com base na teoria da equivalência dos antecedentes causais, por se rejeitar a responsabilidade penal objetiva de sócios proprietários de empresa privada, bem como ausente o dolo específico do ilícito imputado, como se verifica do acórdão do TRF da 1ª. Região:[21]
“Penal e Processual Penal - Habeas Corpus - Redução à condição análoga à de escravo e omissão de anotação em Carteira de Trabalho - Denúncia - Vinculação dos pacientes ao fato punível - Inexistência - Alegação de responsabilidade penal objetiva e ausência de dolo específico - Acolhimento - Trancamento da Ação Penal - Ordem Concedida. I - Inexistência, na peça de acusação, de elementos mínimos de ligação entre os fatos nela narrados e eventual conduta que teria sido praticada pelos pacientes. A mera condição de representantes legais da empresa (sócios proprietários) dos pacientes é insuficiente para a sua responsabilização criminal por todos os fatos delituosos que eventualmente venha a ocorrer na administração da empresa de que são sócios. II - "O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido" (art. 13, CP). Vê-se que, no tocante ao aspecto da causalidade, o nosso direito penal adotou a teoria da equivalência dos antecedentes causais, teoria da conditio sine qua non, condição indispensável. Determinação, que por ser muito ampla, se interpretada literalmente, tende ao infinito, a ponto de considerar que a "causa da causa também seria causa do que foi causado". Todavia, o parágrafo único do art. 18 do CP impõe o necessário limite à causalidade ao dispor que: "Salvo os caos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente". E como se sabe, ninguém pode ser punido por culpa, a não ser naqueles crimes para os quais a lei, expressamente, prevê a modalidade culposa. III - Habeas corpus concedido.” (g.n.)
Assim, para fins de responsabilização do particular na Lei n.º 8.429/92 deve ser sopesada a sua conduta, na participação real e efetiva no ato tido como ímprobo (nexo de causalidade e resultado), porque senão a “causa da causa também seria causa do que foi causado”, o que se transforma em verdadeiro absurdo jurídico.
O elemento subjetivo somente será deflagrado no caso concreto do particular quando ele for beneficiado de alguma vantagem, por se vincular direta e promiscuamente com o agente público na conduta ímproba, não sendo admitida a responsabilização na Lei n.º 8.429/92 das pessoas físicas somente pelo fato delas receberem verba pública ou privada, de outro particular, ou serem sócios de empresas privadas. Há que se ter o devido nexo de causalidade entre as condutas e o resultado (relevância causal)
Esse fato é de suma importância, porquanto quando um particular que recebe verba de ente público se relaciona com outro particular, fruto de negócio jurídico diverso do vínculo originário, não há que se falar em litisconsorte passivo necessário e muito menos em lesão aos bens jurídicos tutelados pela Lei de Improbidade Administrativa.
Mesmo o particular recebendo verba pública, por ter sido contratado por ente de direito público, quando ela é incorporada ao seu patrimônio, as novas relações com particulares não projetam efeitos legais para a Lei de Improbidade Administrativa, por não ser considerada verba pública, aquela que já se encontra no patrimônio da pessoa ou empresa de direito privado.
Quando os recursos envolvidos nas relações de particulares são privados não há ato de improbidade administrativa, pouco importando que um deles tenha recebido verba pública, por ser necessária a relação de causalidade do fato com o resultado.
Deverá haver uma relevância causal de cada particular (conduta), capaz de demonstrar que concorreram várias pessoas para o evento (ato ímprobo) e por ele serão responsabilizados. Como dito alhures, tem que ser demonstrada a adesão voluntária e o nexo psicológico do particular na obtenção do resultado ímprobo.
O recebimento da verba pública pelo particular, e utilizado em outros eventos por si só não atrai o litisconsórcio de outros particulares ao ato ímprobo, por ser necessária a demonstração do elemento subjetivo de todos, através da descrição de condutas de todos. Por outro lado, com maior razão a verba não sendo pública, e sim privada, exclui a incidência da Lei de Improbidade Administrativa.
Aliás, essa situação ficou muito bem delineada no julgamento das sobras de campanha do então Presidente Fernando Collor de Mello, onde era acusado de corrupção e tráfico de influência, dentre outras imputações, por ter recebido verbas para a prática de atos vedados pelo ordenamento jurídico.
A ação de improbidade administrativa foi julgada improcedente no Superior Tribunal de Justiça, por ter ficado demonstrado que os recursos envolvidos nas transações tidas como ilícitas eram sobra de campanha política, mesmo envolvendo agentes políticos e empresas particulares, e possuíam origem privada e não pública, fora do escopo da Lei n.º 8.429/92.
Nesse sentido, posicionou-se o eminente Min. Mauro Campbell Marques,[22] relator designado no REsp n.º 1.129.121/GO:
“A partir daí, a sentença chegou à conclusão de que seria necessário transpor apara a presente demanda o entendimento do Supremo Tribunal Federal que, julgando ação penal relativa a estas mesmas condutas, haveria entendido que os recursos envolvidos nas referidas transações eram sobras de campanha (leia-se: privados, e não públicos), motivo pelo qual não caberia a ação de improbidade administrativa.
Ocorre que, decidido pela Corte Suprema que houve apenas utilização de recursos privados, o art. 12 deste diploma normativo seria inaplicável mesmo no que tange aos arts. 9º e 11 da LIA, uma vez que os incs. I e II daquele dispositivo condicionam o ressarcimento à existência de sangramento de dinheiro público (existência de dano patrimonial) - hipótese que, como dito pelo STF, não ocorre.” (g.n.)
Ao acompanhar o Relator do REsp n.º 1.129.161/GO, o Ministro Humberto Martins, ratificou a inaplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa quando os recursos são de origem privada:
“Ademais, e estas considerações são feitas apenas em obiter dictum, ainda que fosse possível aplicar ao caso a Lei n. 8429⁄92, a pretensão do recorrente seria infrutífera, haja vista que, no caso dos autos, não há que se falar em improbidade administrativa em decorrência de lesão ao erário.
Como bem ressaltou o Min. Mauro Campbell, e conforme consignado pela instância ordinária, os recursos envolvidos nas transações eram sobras de campanha, cuja origem - segundo entendimento firmado pelo STF ao julgar ação penal relativa a essas mesmas condutas - é exclusivamente privada.
Ora, se os recursos são de origem privada, se não havia dinheiro público envolvido nas transações realizadas pelos recorridos, a conclusão a que se chega, por óbvio, é a de que qualquer prejuízo porventura existente não desfalcou o erário.”
Em outro caso concreto, verificada a utilização de verba privada para aquisição do mobiliário e adequação do ambiente de trabalho, derivada de acordo de cooperação técnica celerado entre o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região e Banco do Brasil, foi excetuada pelo TRF – 3ª Região[23] a relação jurídica entre eles da Lei n.º 8.429/92 por total impossibilidade jurídica do pleito.
Também merece ser realçada a hipótese julgada pelo REsp n.º 823.559/MG, que envolveu a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora/MG, entidade privada, sem fins lucrativos que não está adstrita a nenhum controle de cunho administrativa por parte de órgãos públicos, que presta serviços médicos, recebendo verba do SUS, mas suplementa tal recurso com doações de particulares, por ser aquela insuficiente. O sistema de saúde da Santa Casa de Misericórdia tinha contrato de prestação de serviço com a Administração Pública representada pelo Ministério da Saúde, e visava à assistência médica a pessoas carentes. Mesmo recebendo dinheiro proveniente do SUS, como ele é insuficiente para pagar os gastos da Santa Casa, não há como se configurar a hipótese de malversação de verba pública, pois o complemento dessa verba era privada, fruto de doações de pessoas físicas ou empresas privadas, fugindo, assim, da incidência da Lei n.º 8.429/92.
Felizes foram as lições do Ministro Mauro Campbell Marques[24] no julgado do precedente acima declinado:
(...) 4. No caso dos autos, é possível afirmar que a Corte a quo, ao analisar a controvérsia relacionada à legitimidade do Ministério Público, para ajuizar ação cautelar e ação civil por improbidade administrativa em face de supostas irregularidades praticadas na gestão administrativa da entidade hospitalar, expressamente consignou que: a) a Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora é uma entidade privada que presta serviços médicos, a qual não está adstrita ao controle de cunho administrativo por órgãos públicos; b) o vínculo jurídico entre a Santa Casa de Misericórdia e a administração pública, representada pelo Ministério da Saúde, consiste em contrato bilateral de prestação de serviços médicos às pessoas carentes por meio do Sistema Único de Saúde, no qual o pagamento por verba pública está condicionado à demonstração dos procedimentos e atendimento médicos efetivamente realizados pela entidade; c) os recursos patrimoniais adquiridos pela instituição, tanto os originados da contraprestação prestada ao SUS quanto os decorrentes da atividade privada, podem ser geridos livremente pelos administradores, sem a submissão ao controle estatal em atos de gestão da entidade; d) a eventual utilização de valores provenientes do SUS na malversação da Santa Casa de Misericórdia somente teria ocorrido após o ingresso dos valores na esfera privada da instituição; e) a análise da documentação e peças apresentadas pelas partes indica que não é objeto da medida cautelar, tampouco da ação civil por ato de improbidade administrativa, (...)” (g.n.)
Está bem identificado no julgado que não existindo malversação de verba pública, inexiste vilipêndio ao bem jurídico tutelado pela Lei n.º 8.429/92, não se aperfeiçoando a conduta de improbidade administrativa.
Por outro lado, deve ser reiterado que o elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade administrativa, além do dano ao erário, para que ocorra a responsabilização do particular ou do agente público no que vem disposto na Lei n.º 8.429/92.[25]
Foi consignado no REsp n.º 1.103.633/MG[26] que, se o particular prestou o serviço contratado pelo poder público e não foi partícipe da má-fé e da imoralidade qualificada, não há lesividade ao erário, o que faz com que ele seja retirado do pólo passivo da ação de improbidade administrativa.
Portanto, para a responsabilização tanto do particular como do agente público é imperioso o elemento subjetivo para a demonstração da justa causa da ação de improbidade administrativa, onde deve ser provada a desonestidade ou a má-fé de ambos (dolo)[27], além do efetivo prejuízo ao erário,[28] pois do contrário não há violação a bem jurídico tutelado pela Lei n.º 8.429/92.
Dessa forma, é necessária uma melhor avaliação sobre a real participação dos acusados da prática de ato de improbidade, verificando-se aprofundadamente as suas situações jurídicas à luz da teoria dos antecedentes causais, para que a ação civil pública não seja utilizada de forma indevida contra pessoas que sequer violaram o bem tutelado pela Lei n.º 8.429/92, o que se traduz, em última análise, em clara injustiça.