I- INTRODUÇÃO
Há certas questões de ordem prática, no âmbito das relações de trabalho, cuja importância não pode ser negligenciada. No trato com a Inspeção do Trabalho, a solução adequada para uma situação de rotina trabalhista pode ser a diferença entre a regularidade e a infração, sendo certo que decisões equivocadas podem gerar não apenas desconformidades com a legislação, mas também prejuízos patrimoniais para o trabalhador.
A plurinormatividade trabalhista, representada pela CLT, pelas normas esparsas, pela jurisprudência pacificada e pelos instrumentos normativos, contempla um sem número de situações em que o dimensionamento dos salários depende de diversos atributos, tais como reflexos, médias, proporções, divisores etc. Os critérios de cálculo, no entanto, nem sempre estão estampados de forma clara e inequívoca nos textos legais. Nesses casos, a doutrina especializada em rotinas trabalhistas se encarrega de sugerir soluções que, frequentemente, são assimiladas pela jurisprudência e pelos precedentes administrativos.
Dentre todos os autores de obras direcionadas à prática trabalhista, talvez seja José Serson o mais festejado. É sintomático observar que mesmo tendo passado mais de quinze anos da última atualização do seu livro: Curso de Rotinas Trabalhistas, autor e obra ainda são abundantemente citados noutras publicações, em pareceres do Ministério do Trabalho e Emprego, em decisões judiciais, artigos, sítios da internet etc.
Um traço distintivo do trabalho de Serson, que seu ofício como Juiz Togado torna mais compreensível, é sua preocupação constante em não reduzir a rotina trabalhista a um conjunto de procedimentos algorítmicos e repetitivos, alheados da análise jurídico-normativa. A despeito da sua notória ousadia, que algumas vezes o levou a defender posições doutrinárias isoladas[1], a fundamentação empregada em seus métodos conferia-lhes um halo de respeitabilidade, o que os credenciava a se tornarem exemplos paradigmáticos.
Hipóteses insólitas no que tange à prática trabalhista não acossam apenas os profissionais de departamento de pessoal. A própria Inspeção do Trabalho não raras vezes se põe diante de certas situações controversas, que são enfrentadas ora em sede de processo administrativo de multas e recursos, ora através de pronunciamentos por Notas Técnicas.
Algumas dessas situações são, de fato, antológicas. É o caso, por exemplo, das férias anuais, quando concedidas em meses de 31 dias. Trata-se, na prática, da polêmica em torno da remuneração do 31º dia; se já estaria embutida, ou não, na remuneração das férias. Recentemente, nos casos em que a Inspeção do Trabalho cobra a remuneração e o recolhimento do FGTS desse dia, vem se observando, no Rio de Janeiro, uma tendência à assimilação dos argumentos das empresas. Em verdade, não se trata propriamente de endossar a tese da remuneração do 31º dia do mês de concessão das férias, quando do seu pagamento antecipado, mas de admitir a controvérsia e a ausência de posicionamento oficial por parte do Ministério do Trabalho e Emprego.
O fato é que esta controvérsia se sustenta à custa de uma das mais consagradas teses de José Serson, que se vê reprisada na grande maioria dos fóruns e sítios voltados ao debate da prática trabalhista, na internet. Trata-se de um critério de conversibilidade a ser adotado somente nos casos em que as férias anuais recaiam em meses de 31 dias, o qual, na prática, resulta no não pagamento do 31º dia.
O objetivo do presente artigo é, portanto, investigar a validade da solução sersoniana para esse caso, e, à maneira do mestre, buscar na teoria da mutação contratual ex lege o fundamento para uma solução alternativa para o problema.
II- A FICÇÃO JURÍDICA DO SALÁRIO MENSAL
As lições clássicas de Catharino (1997), Nascimento (1951) e Süssekind (2005) identificam três modalidades de dimensionamento salarial. São elas: a) salário por unidade de tempo; b) salário por unidade de obra ou peça; c) salário misto ou por tarefa. No primeiro caso, o salário é mensurado em razão do tempo do trabalho. No segundo, em relação ao quanto o trabalhador consegue produzir, considerando uma jornada fixa. No terceiro caso, em relação ao cumprimento de determinadas tarefas, cuja execução definirá o salário e, a um só tempo, o dimensionamento da jornada de trabalho.
A medida temporal do salário é, de fato, a mais usual. Neste caso, o salário do obreiro irá flutuar de acordo com as variações da unidade de tempo escolhida para mensurá-lo, sendo certo que a CLT se refere expressamente a três delas: hora, dia e mês (arts. 64 e 65), para as quais a Norma Consolidada prevê critérios de conversibilidade. Não é demais reprisar a lição de Süssekind (2005), que distingue a medida temporal dos salários da frequência com que ele é pago (CLT, 459). É o caso, por exemplo, da semana e da quinzena, referenciadas na CLT como intervalos de pagamento dos salários (art. 487, I e II), e não como medida da remuneração do obreiro.
Da associação dos artigos 58, 64 e 65 exsurge o que se pode chamar de regra geral de conversibilidade entre salários por unidade de tempo. No que se refere à fragmentação horária do salário mensal[2], o salário-hora é obtido atribuindo-se ao mês a duração de trinta dias[3]. Desse modo, para efeito da conversão do salário-mês em salário-hora, a CLT parte da ficção jurídica do mês trintídio. No caso do mensalista, a CLT prevê a padronização da unidade de tempo que dimensiona o seu salário, de modo que ele não sofrerá variações, ao menos no que se refere à parte fixa. Por seu turno, os estipêndios mensais dos trabalhadores que têm seus salários dimensionados por hora, ou dia, irão variar conforme o número de dias e horas trabalhadas no mês.
A verdade é que a padronização do mês, atribuída pela CLT, é uma exigência de ordem prática. As medidas diária e horária não sofrem qualquer variação, pois à exceção do horário noturno, a hora trabalhada será a do relógio (60 minutos), e o dia de trabalho terá 24 horas. Contudo, nosso calendário é organizado de tal modo, que os meses podem ter de 28 a 31 dias, o que exige a atribuição de um mês-padrão; no caso, o trintídio.
Não há outra regra (geral) de conversibilidade entre salários mensurados em razão do tempo[4], sendo certo que a ficção do mês trintídio só é adotada para este propósito. Diga-se isto porque a CLT, em diversos momentos, se expressa de forma muito clara, quando dispõe sobre o mês, na sua qualidade de período de tempo. Eis alguns exemplos:
Artigo da CLT |
Assunto |
Comentários |
Par. único, art. 146 e art. 147 |
Férias |
O chamado “mês de serviço”, para efeito de percepção das férias proporcionais, corresponde ao trabalho efetuado durante mais de quatorze dias. |
§ 1º do art. 320 |
Professores |
O dispositivo se refere à periodicidade quanto ao pagamento dos salários dos professores, parecendo sugerir uma cronologia completamente independente do calendário. Na verdade, há de se seguir a regra inserta no art. 459, § 1º, pois a simplificação: mês = 4,5 semanas serve para o cálculo da remuneração do repouso, caso o professor perceba seu salário mensurado em horas/aula. |
Par. único, art. 346 |
Químicos |
Suspensão do exercício profissional de um mês a um ano. |
Art. 459 e § 1º |
Remuneração |
Periodicidade do pagamento dos salários. |
Art. 478 |
Indenização |
Para efeito indenizatório, um ano corresponderá a uma fração igual ou superior a seis meses. |
Art. 600 |
Contribuição Sindical |
Este dispositivo é interessantíssimo. Num único artigo o legislador difere, para efeito de contagem de tempo, “mês” de período de “trinta dias”. |
Art. 666 e 689 |
Juízes Classistas |
Estipulação do número mínimo de audiências por mês. |
Art. 130 e 130-A |
Férias |
Periodicidade de doze meses, após a qual fará jus o empregado a férias. |
Art. 133, IV |
Férias |
Perda do direito a férias em razão da percepção de benefício previdenciário em razão de doença, ou acidente de trabalho, por mais de seis meses. |
Art. 134 |
Férias |
Período concessivo de doze meses, após o prazo de aquisição do direito. |
Art. 140 |
Férias Coletivas |
Gozo de férias coletivas proporcionais. |
Art. 142, § 3º |
Remuneração das Férias |
Nos casos de remuneração variável, apurar-se-á a média dos ganhos havidos nos doze meses que antecederem a concessão das férias. |
Art. 393 |
Proteção à maternidade |
Cálculo da remuneração durante a licença-maternidade. Média dos últimos seis meses de trabalho. |
Art. 396 e par. único. |
Proteção à Maternidade |
Direito aos períodos diários para amamentação, até que o filho complete seis meses de vida. |
Art. 442-A |
Contrato Individual de Trabalho |
Inexigibilidade de experiência prévia superior a seis meses. |
Art. 452 |
Contrato Individual de Trabalho |
Contrato a termo que suceder outro, num período de seis meses, será considerado sem determinação de prazo. |
Art. 476, IV |
Suspensão e Interrupção do Contrato de Emprego |
Doação de sangue: um dia para cada doze meses de trabalho. |
Art. 476-A e §§ 2º e 5º |
Suspensão e Interrupção do Contrato de Emprego |
Suspensão contratual por período de dois a cinco meses, para que o trabalhador participe de programa de qualificação. Periodicidade para a suspensão: não inferior a dezesseis meses. Garantia de emprego durante três meses, após a suspensão contratual. |
Art. 524, § 5º |
Eleições Sindicais |
Novas eleições sindicais dentro de seis meses, caso não tenha havido coeficiente legal no último pleito. |
Art. 529 |
Eleições Sindicais |
Condição de elegibilidade: ser associado há mais de seis meses. |
Art. 553, d |
Penalidades Impostas aos Sindicatos |
Prazo máximo de fechamento das entidades sindicais não superior a seis meses. |
Art. 731 |
Justiça do Trabalho |
Suspensão do direito de reclamar perante a Justiça do Trabalho: seis meses. |
Em todos os casos acima relacionados, o mês é considerado uma categoria do calendário, pouco importando o número de dias que o compõe. Da mesma forma, a CLT também emprega o conceito de “dia” para designar interregnos de tempo, normalmente quantificados em número de dias. Eis alguns exemplos:
Artigo da CLT |
Assunto |
Comentários |
Art. 13, § 3º |
Carteira de Trabalho |
Período de trinta dias em que o trabalhador pode laborar sem a CTPS assinada, nos casos em que ele não a possua, e na localidade não houver expedição do citado documento. |
Art. 62, §§ 1º e 3º |
Jornada de Trabalho |
Período de 10 dias para comunicar à autoridade competente a ocorrência de necessidade imperiosa, que tenha provocado a prorrogação da jornada para além do limite legal. Prorrogação de 45 dias por ano, em caso de força maior. |
Par. único do art. 68 |
Períodos de Descanso |
Permissão transitória para o trabalho aos domingos, por período não excedente a 60 dias. |
Art. 132 e 133 e incs., § 3º |
Férias |
Prazo para apresentação do trabalhador que cumpriu o serviço militar obrigatório: 90 dias. Perda do direito a férias, caso o trabalhador demitido não seja readmitido no prazo de 60 dias; interrupção contratual por mais de 30 dias. |
Art. 135 |
Férias |
Prazo para comunicação de férias: 30 dias. |
Art. 139, § 2º |
Férias |
Prazo para comunicação das férias coletivas ao sindicato e ao Ministério do Trabalho: 15 dias. |
Art. 143, § 1º |
Férias |
Prazo para requerimento do abono pecuniário: 15 dias antes do término do período aquisitivo. |
Art. 145 |
Férias |
Prazo para pagamento das férias: 2 dias. |
Art. 150, § 2º |
Disposições Especiais Sobre Férias |
Conceito de grande estadia: permanência no porto por mais de 6 dias. |
Art. 161, § 3º |
Inspeção Prévia, Embargo e Interdição |
Prazo para recorrer da decisão do Delegado Regional do Trabalho: 10 dias. |
Art. 240 |
Serviço Ferroviário |
Comunicação ao Ministério do Trabalho da ocorrência de serviços emergenciais, que impliquem prorrogação da jornada além do limite legal: 10 dias. |
Art. 252 |
Portuários |
Prazo para reclamação à DTM: 5 dias. |
Par. único do art. 304 |
Jornalistas |
Comunicação ao Ministério do Trabalho de fato que implique a prorrogação da jornada além do limite legal: 5 dias. |
Art. 307 |
Jornalistas |
Repouso obrigatório para cada 6 dias de trabalho. |
Art. 320, § 3º |
Professores |
Período de gala ou luto: 9 dias. |
Art. 350 |
Químicos |
Prazo para apresentação do contrato entre o profissional e a fábrica ao órgão fiscalizador: 30 dias. |
Art. 359, § 1º; 361; 362 |
RAIS |
Prazo para entrega da RAIS, em se tratando de empresas novas: 30 dias, a contar do seu registro no órgão competente. Prazo para defesa em caso de infração relacionada com a RAIS: 10 dias. Prazo para concessão de certidões negativas: 30 dias. |
Par. único do art. 445 |
Contrato Individual de Trabalho |
Duração máxima para o contrato de experiência: 90 dias. |
Art. 472, § 1º |
Contrato Individual de Trabalho |
Retorno ao cargo anteriormente ocupado, após o serviço militar obrigatório: 30 dias. |
Art. 473 e 474 |
Interrupção e Suspensão do Contrato de Trabalho |
Hipótese de interrupção contratual. Suspensão do empregado por mais de 30 dias impõe a rescisão do contrato. |
§ 1º do art. 476-A |
Interrupção e Suspensão do Contrato de Trabalho |
Prazo para comunicação da suspensão ao sindicato: 15 dias. |
§ 1º do artigo 486 e § 5º |
Fato do Príncipe |
Prazo concedido pela Justiça do Trabalho à autoridade, contra quem o demandado alegue o fato do príncipe: 30 dias. Prazo de 3 dias para a parte contrária se manifestar a respeito da alegação do fato do príncipe. |
§ 4º do art. 524, 532 e §§ |
Eleições Sindicais |
Nova eleição por falta de quórum: 15 dias. Renovação do quadro de diretores do conselho fiscal: máximo de 60 dias e mínimo de 30, antes do término do mandato, além de outros prazos. |
Art. 542 |
Direitos dos Exercentes de Mandato Sindical |
Prazo para reclamação ao Ministério do Trabalho de atos lesivos cometidos pela assembléia geral, diretoria ou conselho: 30 dias. |
Art. 548 e sgs. |
Gestão Financeira dos Sindicatos |
Prazos para alienação de bens imóveis; aprovação de orçamento etc. |
Art. 533 e sgs. |
Penalidades Impostas aos Sindicatos e Dirigentes |
Suspensão de diretor; novas eleições em decorrência da destituição da diretoria etc. |
Art. 611 e sgs. |
Acordos e Convenções Coletivas |
Prazos para depósito do acordo ou convenção coletiva junto ao Ministério do Trabalho; vigência dos pactos normativos; instauração do dissídio coletivo etc. |
Art. 625 e sgs. |
Comissão de Conciliação Prévia |
Prazo para realização da audiência de conciliação, a partir da provocação do interessado: 10 dias. |
Art. 626 e sgs. |
Processo de Multas Administrativas |
Prazos administrativos, todos contados em dias. |
Art. 643 e sgs. |
Justiça do Trabalho |
Prazos administrativos e judiciais, todos contados em dias. |
Não há, portanto, uma única passagem em que a CLT estabeleça uma correspondência entre mês e número de dias, quando o propósito é medir certo intervalo de tempo. O que ocorre no art. 146 (férias proporcionais) não é propriamente uma regra de correspondência, mas de aproximação (período > 14 dias = 1 mês). Nesse contexto, a julgar pela redação do art. 600, pode-se afirmar justamente o contrário, isto é, que a CLT faz uma distinção expressa entre “mês” e “trintídio”.
Art. 600 - O recolhimento da contribuição sindical efetuado fora do prazo referido neste Capítulo, quando espontâneo, será acrescido da multa de 10% (dez por cento), nos 30 (trinta) primeiros dias, com o adicional de 2% (dois por cento) por mês subseqüente de atraso, além de juros de mora de 1% (um por cento) ao mês e correção monetária, ficando, nesse caso, o infrator, isento de outra penalidade. (Redação dada pela Lei n.º 6.181, de 11-12-74, DOU 12-12-74) (Em vigor até que lei específica discipline a contribuição negocial - art. 7º da Lei nº 11.648, de 31/03/2008 - DOU 31/03/2008 - Edição Extra).
Portanto, só se observa a equivalência entre “mês” e “trintídio” quando o propósito for estabelecer uma correspondência salarial. Vê-se, inclusive, que a regra geral de conversibilidade se reapresenta noutras passagens da CLT, e sempre no contexto dos salários, como nos casos dos arts. 478, caput e § 2º e 582, § 1º, b. A ficção do mês trintídio é, portanto, a regra pela qual a CLT padronizou a decomposição do salário mensal em diário. Para tal, o número 30 aparece como um divisor (art. 64 caput e art. 582, § 1º, b, CLT), e também como um multiplicador (art. 478, § 2º, CLT), sendo, portanto, o único e suficiente conversor legal para o fim de estabelecer a equivalência salarial mês/dia. A única hipótese em que a CLT prevê um conversor diferente é a prevista no parágrafo único do art. 64, ou seja, no caso do mês de fevereiro, cujo número de dias é inferior a 30.