I Agradeço ao Doutor Marcus Vinicius Furtado Coelho, Secretário Geral da OAB-Federal, advogado publicista e eleitoralista, meu dileto amigo e companheiro desde as lides estudantis dos anos 90, pela sugestão de meu nome à ilustrada Presidência do Evento, e ao Dr. Ophir Cavalcante, nosso combativo e atuante Presidente do Conselho Federal de nossa corporação, pelo honroso convite.
É uma alegria imensa, para mim, compartir esta mesa com um dos homens públicos brasileiros que mais admiro e pelo qual nutro afeição, respeito e sentimento de amizade. Homem modelar em sua conduta pública e privada, de espírito singular, no qual esbanja bondade, serenidade, humildade, brasilidade e poesia – falo do jurista e poeta Ministro do STF e Professor Doutor em Direito Constitucional, Carlos Ayres Britto. A sua pessoa, seu agir, seu discurso e sua práxis, assim como a leitura de suas obras jurídicas e poéticas, revelam ao mundo as encantadoras dimensões de sua grandiosa e holística alma.
Também estou demais feliz por compartir esta seleta mesa com as Professoras Débora Diniz, a afamada Mestra Maria Berenice Dias e com o Doutor Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, e com o ilustre Advogado Geral da União, Luis Inácio Lucena Adams, meu colega de pós-graduação junto a Universidade Federal de SC.
Eu tenho muita afinidade intelectual, admiração e respeito pelo Ministro Gilmar Mendes, cuja sentida ausência, não poderá ser suprida pela minha modesta participação, e nem esse foi o fim dos ilustres colegas que me distinguiram com o convite.
Devo dizer ainda sobre o Professor Doutor e Ministro Gilmar Mendes: acompanho-o em muitas idéias, que, em sua doutrina e em seus votos no STF, tem nos trazido ao conhecimento, especialmente em temas de liberdades, liberdades constitucionais e nas garantias tendentes a assegurá-las.
Desde a edição de seu primeiro livro, “Controle de Constitucionalidade – aspectos jurídicos e políticos”, editado em 1988, até a última de suas obras, que retratam seu trabalho no STF na última década, acompanho sua produção intelectual, a qual devoto respeito e reconhecimento acadêmico.
Para mim, avulta seu papel de jurista legislador, no tema controle de constitucionalidade, que jamais pode ser esquecido: da introdução da emenda constitucional que introduziu a ADC em 1993, as leis que regularam, em 1999, as adins, adc´s e a adpf, todas passaram pelo seu crivo de jurista, e a lei que alterou a processualística do controle difuso nos tribunais, e a que, recentemente, regulou o rito da ação direta de inconstitucionalidade por omissão. Ao depois, as evoluções quanto às técnicas de decisão de inconstitucionalidade, junto ao STF, por sua participação, merecem todo os nossos encômios.
Igualmente, em tema de direitos fundamentais sua produção acadêmica e judicante são referencias para todos nós: cito, como exemplos, seu “Curso de Direito Constitucional” e seu “Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade”, além de inúmeros artigo publicados em obras coletivas e revistas especializadas.
Por todos esses fatos, esse momento, para mim, muito significa em termos afetivos, acadêmicos e profissionais. É um momento Ministro Carlos Ayres, “bem mais do que legal”, é “um momento constitucional.”
Saúdo, fraternalmente, a todas as advogadas e advogados, meus colegas, presentes a essa nossa XXI Conferência Nacional – o histórico dessas conferências aponta que elas foram mãe e guardiã, no plano político e cultural, de muitos avanços em nossa Nação sobre os direitos de liberdade, congênitos às Democracias.
Inclusive, nossa Democracia muito deve aos encontros da Ordem e a militância da OAB para o restabelecimento do Estado de Direito entre nós, agora como Estado Democrático de Direito. Sei que estou chovendo no molhando, ao dizer o que muitos já sabem.
Mas para as gerações mais jovens, e para avivar as mais velhas, devemos de sempre lembrar esses fatos. Em nossa atual Constituição, muitas preocupações e proposições, que viraram regras ou princípios positivados no texto fundamental, ecoaram de nossas Conferências. Temas e painéis como esses, que, honrosamente, estamos a integrar.
II
Procurarei fazer uma exposição que do geral ao particular, do tema maior da conferência - Liberdade, Democracia e Meio Ambiente -, passando pelo subtema do painel - Direitos de Liberdade -, possa aportar, ao fim, no tema de “Interceptação das Comunicações, Gravação Ambiental e Privacidade.”
E o farei na perspectiva de um advogado, defensor das liberdades em processos criminais, disciplinares, eleitorais, advogado que atua em processos nos quais a liberdade, em suas múltiplas formas, da ambulatória a política, avultam. Mais o farei também sob a perspectiva do Professor de Direito Constitucional, que não esquece de seus altos deveres de cidadão de uma república efetivamente democrática.
III
Como nos diz Roberto Dahl, em um primoroso livro editado pela UnB, intitulado “Sobre a Democracia”: a democracia é uma forma de governo, uma estruturação constitucional, uma cultura política, que melhor assegura a liberdade do homem, suas liberdades e seus direitos, e só pode existir ou perdurar em um regime onde as liberdades, especialmente as liberdades políticas, de expressão, de imprensa, de opinião, de manifestação do pensamento, de reunião, de voto e candidatura, de eleições periódicas, entre outras, sejam realmente asseguradas por uma Constituição efetiva e por uma cultura política e jurídica que a saiba valorizar, a preservar e a desenvolver.
A manutenção desse regime de liberdades, que nos assegura a Democracia, só pode ser pensando através e garantido através de Constituição real e efetiva, que nos garanta estabilidade política, ou seja, equilíbrio entre os poderes e asseguramento da continuidade das instituições, pelos processos de escolha dos agentes estatais e de atuação dos poderes assentados em seu texto e na legislação infraconstitucional. A Constituição brasileira vigente e a jurisprudência dos últimos 20 anos do STF, demonstram que conquistamos estabilidade política e um regime de liberdades antes nunca visto entre nós e ainda não disseminado por toda a América Latina – vejamos os exemplos delicados de Evo Morales, na Bolívia, e Hugo Chavez, na Venezuela.
Somos, é bom lembrar, a Democracia mais estável da América Latina: temos eleições periódicas e populares; Judiciário e Ministério Público fortes, assim como Tribunais de Contas, que atuam e são respeitados em seus atuares, que asseguram direitos e competências, das pessoas e dos poderes do Estado. E temos tido em políticas publicas do Executivo, e mesmo do Congresso, que nos colocaram nos atuais patamares políticos que ostentamos. Mesmo a saída do Presidente Collor, em 1992, deu-se por devido processo legal de impechament, longe das velhas práticas de golpe de estado, que assombraram nosso passado político.
Insistamos: alcançamos em 23 anos de reconstitucionalização um nível de estabilidade institucional, até então não alcançado em nossa história e jamais antevisto em outro País latino do nosso continente. E temos muitos níveis de democraticidade a alcançar, não só o político ou jurídico, como o social, cultural e ambiental.
Mas mesmo nos níveis de liberdade e democraticidade já alcançados, precisamos cuidar para não retrocedermos significativamente. E o “movimento da lei e da ordem”, “da defesa social”, que cultiva “o direito penal do inimigo”, “o direito eleitoral do candidato inimigo e do eleitor infante”, assim como “o direito administrativo do agente público inimigo”, precisa de nossa reflexão séria, para que retrocessos não aconteçam e enfraqueçam nossas instituições democrático-representativas.
Especialmente no tema ao meu encargo, que medeia com a persecução penal, eleitoral e administrativa de improbidades, em face de atos de estado! Ou diante de atos dos particulares, como procurarei demonstrar.
IV
No Brasil, a minha geração, homens de quarenta anos, e as mais novas que a minha, não sentiram a dureza de uma ditadura ou de um regime totalitário, para saberem, na sua carne ou na sua memória testemunhal, o valor das liberdades constitucionais que citei.
Talvez por isso uma pesquisa divulgada em novembro de 2011, feita entre brasileiros e patrícios de América Latina, aponte que um número significativo da população prefira um regime autoritário, a um regime democrático. Isso é preocupante ecoar na opinião pública. Não saber o valor das coisas, principalmente das instituições que personalizam direitos, como a democracia, é como aquele que vive sem cuidar do amor, saúde da alma, ou da saúde, amor do corpo, Ministro Carlos Ayres.
Quem não conhece a história está fadado a repeti-la. Quem não sabe o valor das coisas que possui e das pessoas que ama, esta fadado a perdê-las. O Povo que não valoriza as suas conquistas históricas, esta fadado a perdê-las ou a vê-las definhar, pouco a pouco, pela apatia do homens de bem ou de letras, ou pelo silêncio dos que ouvem e sabem, mais nada dizem, e nada fazem.
Numa entrevista ao jornalista Silvio Boccanera, no programa Milênio, da Globo News, Natasha Ezrow, professora de Estudos de Governos na Universidade de Essex na Inglaterra, transmitido no dia 21.09.11 afirmou que a mais ditaduras no mundo do que regimes democráticos. Só na China quase um bilhão e meio de pessoas vivem sob o poder arbitrário do Partido Comunista Chinês. Não tão repressivo hoje quanto na época de Mao Tsé-Tung, que mandou matar dezenas de milhões de chineses, mas o partido permanece intolerante de oposição. Há ditadores que escancaram seu poder pessoal. Muammar Kadafi serve de exemplo recente. Enquanto conversamos neste evento (novembro de 2011), como disse Silvio Boccanera, a temporada de caça a ditadores está aberta no mundo árabe: Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Iêmen, Bahrein.
E isso, embora, como todas as revoluções, traga violência, de todos os lados envolvidos nos conflitos, isso serve para mostrar o valor da Democracia e seu valor para as liberdades que os “revolucionários” querem conquistar, na atualidade. Vimos que em muitos desses Países, manifestações foram marcadas pela internet, sem o empeço nas comunicações entre as pessoas, único lugar que os ditadores não conseguiram, nesses Países, intervir de maneira a podar-lhe a liberdade decorrente do direito à comunicação.
V
Mas para minha geração, talvez diferentemente das que nos antecederam, além da boa e velha literatura, nos contamos hoje com o cinema, com a arte fílmica para nos representar as dores, as lutas, de povos, nações e pessoas, para o estabelecimento dessas liberdades nos textos constitucionais que hoje desfrutamos - algumas dessas liberdades desfrutamos de modo tão corriqueiro, que sequer temos consciência de que as desfrutamos em virtude do regime que vivemos: Democracia Constitucional, protetora de direitos e liberdades assentes na Constituição, tratados e em leis – o direito de propriedade, por exemplo; a liberdade de profissão; a liberdade de imprensa e de pensamento.
A assistência a filmes, a bom e formativos filmes[3], é a oportunidade feliz e instigante, de você, por instantes, sentado em sala de cinema ou na sala de sua casa, poder andar com os chinelos dos outros, com as pernas dos outros, em outros mundos, em outras culturas, em outras realidades passadas ou presentes, e poder refletir sobre a vida, sobre as idéias, sobre o comportamento dos homens e as instituições que esses criaram e nas ideologias que seguiram ou seguem.
VI
Para o tema de nosso painel, e para o tema ao meu encargo, nós poderíamos trazer à colação muitos filmes para elucidar a riqueza dos direitos de liberdade, entre eles o direito à privacidade e ao resguardo das comunicações e o repúdio a gravações ambientais ilegítimas
Entre tantas “películas” significativas, uma que assisti recentemente, e que ganhou Oscar de Melhor filme estrangeiro em 2006, foi a “A Vida dos Outros”, um filme alemão. Mostra a Alemanha oriental, nos anos 1984 a 1985 (há apenas 25 anos atrás...), 05 antes da queda do muro de Berlim. O filme, em sua síntese, mostra aspectos do regime totalitário que enfoca. Entre tantas leituras possíveis de se fazer sobre essa obra fílmica, destaco exatamente os aspectos jurídico-constitucionais de minha exposição: inviolabilidade das comunicações, gravações ambientais e privacidade, direito à privacidade, à vida privada, à intimidade, inviolabilidade do domicílio. Para sabermos, vamos ao núcleo dessa história fílmica:
Georg Dreyman (Sebastian Koch) é o maior dramaturgo da Alemanha Oriental, sendo por muitos considerado o modelo perfeito de cidadão para o país, já que não contesta o governo nem seu regime político.
Apesar disto o ministro Bruno Hempf (Thomas Thieme) acha por bem acompanhar seus passos, para descobrir se Dreyman tem algo a esconder do regime, como eventual oposição de pensamento ou apoio a idéias ou a inimigos do regime.
Ele passa esta tarefa para Anton Grubitz (Ulrich Tukur), que a princípio não vê nada de errado com Dreyman mas é alertado por Gerd Wiesler (Ulrich Mühe), seu subordinado, de que ele deveria ser vigiado, pois todo artista, poeta ou autor tem um grau de subversão digno de investigação.
Grubitz passa a tarefa a Wiesler, que monta uma estrutura em que Dreyman e sua namorada, a atriz Christa-Maria Sieland (Martina Gedeck), são vigiados 24 horas. Suas correspondências telefônicas, escritas, e a comunicação de suas conversas com amigos, em sua residência, são interceptadas e registradas. Toda a vida que se passa em seu apartamento, é interceptada por escutas ambientais, que gravam tudo o que dizem, o que fazem. Toda a sua vida privada é registrada por órgão de estado, 24 horas por dia, 07 dias por semana, durante dois anos, sem que eles soubessem de qualquer coisa.
Este filme mostra a nocividade que é não ter liberdade de profissão, de arte, de pensamento, de oposição, de pensar de modo diferente, de se conduzir, livremente, de acordo com suas crenças e filosofias, sem medo de ter que responder por isso: um amigo de Georg, produtor de teatro, renomado internacionalmente, foi proibido de viajar ao exterior e de expor suas peças e dirigir no teatro, por que fora considerado indesejável ao regime – isso o leva o suicídio pela angústia da privação de sua liberdade. Noutra cena, um jovem, ao fazer piada sobre alguns burocratas do regime, é ameaçado em sua carreira de estado por pensar da forma cômica que manifestara.
Em outro quadro, um homem é preso (suspeito de “Inimigo de Estado”) para averiguações, é levado a um lugar para interrogatório, sem saber o motivo, e indaga ao oficial interrogador Wiesler: - “o que estou fazendo aqui? Nada fiz. Nada devo. Considero que nada tenha feito de relevante para estar aqui,” ao que é redargüido pelo seu interrogador, que lhe tortura ao depois, de maneira a lhe impedir o sono, etc – “Se pensas que foste apreendido por nada, sem razão, como se nada mais importante tivéssemos para fazer aqui, só por teres este pensamento mereces estar aqui para ser investigado!”
O controle sobre a vida privada das pessoas é tão grande, mostra o filme, que o sistema sabia a marca de cada máquina de escrever (de datilografia), os tipos de máquinas de datilografia e fitas de escrever, de todas as máquinas de escrever que eram vendidas na Alemanha oriental. Sabe, em cada casa, qual máquina fora adquirida e era usada. Sabia o tipo de máquina, para que pudessem, em eventual investigação policial sobre a liberdade de manifestação do pensamento crítico ao regime, que fosse anônima; pudessem saber quem teria escrito aquilo, numa linha investigatória de exclusão e procura pelo seu autor.
Esse tipo de filme, para nós, penso, tem o significado constitucional, o significado civilizatório de nos mostrar o alto valor de muitas liberdades e direitos, entre os quais o de resguardo da privacidade das comunicações e da vida privada, da privacidade, da intimidade, como bens assegurados em nossa Constituição, assim como o sigilo das correspondências, a proteção a imagem e ao domicílio da pessoas.
Tem o valor filosófico para que nos armemos com a razão e indaguemos sobre quais os limites do Estado, seja o do estado-legislador, seja o do estado-juiz, ou do estado-polícia, ou do estado-acusador, enfim, o poder em todas as suas formas (mesmo o poder social), quais os limites deste estado na atuação sobre essas liberdades, em um regime democrático, de constituição rígida e analítica, que assegura um rol de liberdades, direitos e garantias que exige não só instituições fortes, mas, antes disse, cultura política e jurídica que a ilumine, dosifique e dirija, racionalmente, o uso dessas forças de estado.
A poesia de nosso Mestre e Ministro Carlos Ayres, em sua obra poética Ópera do Silêncio, Fórum, p. 116, resume um pouco a nossa preocupação, nesta palestra, com o seu poema “Silogismo”
“A Autoridade não tem autoridade
Pra dizer qual parte do seu corpo imolar
Em favor da Liberdade.
A Liberdade é que tem autoridade
Sobre o tanto a cortar da sua carne
Em favor da Autoridade.
Logo,
O princípio de maior autoridade
Não é o princípio da Autoridade.
- É o da Liberdade.”
VII
Na obra fílmica que lhes falo – aconselho que assistam -, vemos que o que levou a escuta, o monitoramento, foi o mero capricho persecutório, o mero ânimo de devassa, de um burocrata sem escrúpulos, que desejava a mulher de Georg, a vasculhar sua vida e pedir algo que o acusasse, para afastá-lo da mulher e deixasse caminho livre para o déspota, em seu assédio sexual.
Vendo o filme, ninguém duvida da maldade de tudo aquilo, de sua nocividade para a vida daquelas pessoas, e que custo político triste aquele povo, na Alemanha Oriental, pagava para viver sob um regime que tanto lhe oprimia.
Mas num regime de liberdades, onde se impõe, se exige, com altivez, perante um Judiciário forte e no mais das vezes independente, como o Estado se porta diante de tais direitos?
Em nossa democracia constitucional, como agimos diante de gravações ambientais banalizadas, como as últimas eleições demonstram (as de 2008), com flagrantes preparados e gravações ambientais adrede incriminadoras?
Como reagimos diante da violação da privacidade por particulares ou por ilegítimos atuares do Estado, em ação ultra vires?
Vemos tudo com olhos de acusadores a procura de culpados?
Ou com os olhos da razão, vemos que o estado tem limites e que não podem serem transpostos, mesmo diante do mais agudo e elevado fim político ou moral, pois os fins não justificam os meios?
Eu gostaria de lembrar, antes de seguir adiante – e ferir os conceitos temáticos de minha exposição, tendo em vista essa oposição nunca finalizada, entre democracia e ditadura, totalitarismo e regime das liberdades, algo que escrevi por ocasião de análise das liberdades em face do candente tema dos direitos e liberdades políticas pressupostos no tema “ficha limpa”, que, mudando o que deve ser mudado, se aplica as reflexões que quero aqui empreender, neste momento:
“(...) a democracia não é a vacina definitiva contra a volta da ditadura nem imunidade inexpugnável contra o totalitarismo. E ditaduras e totalitarismos não morrem totalmente por que delas ou de suas cinzas emergiram democracias. Idéias e práticas democráticas assombram ditaduras (vejam os tsunamis políticos no oriente médio na crônica atual) e idéias e práticas totalitárias ou ditatoriais, convivem, cotidianamente, no seio das democracias com muita mais facilidade e sutileza (EUA, e caça ao terror; Brasil, moralidade pública superior a Constituição e seu regime de liberdades!). Muitas vezes essas idéias são ilusoriamente vendidas como democráticas... e compradas iludidamente como tais, por amplos setores da sociedade civil, imprensa, representações de classe, movimentos sociais, partidos políticos, tribunais, etc...
Isso ocorre em nações onde o debate não é verdadeiramente livre, plurilateral, franco e democrático. Onde o pluralismo de idéias é renegado em nome da unicidade dos dogmas fruto do moral e politicamente correto, a despeito do direito posto. Onde o medo de ser perseguido ou rotulado por suas idéias diferentes é moeda corrente. No Brasil não podemos deixar que tais idéias tenham vida fácil perante o Tribunal da razão e da ciência - as do politicamente correto e moralmente apetecível, em contraste ao constitucionalmente sustentável.
A democracia é o regime que, dialética e respeitosamente, admite o seu contrário (Norberto Bobbio). Mas é o constitucionalismo que lhe assegura a vida e impede o avanço das forças contrárias, mesmo que aclamadas por vontade popular circunstancial que agrida a perene e pétrea vontade constituinte fundacional (Vanossi).
O fiel da balança em uma democracia, que a salvaguarda da emergência de arroubos ditatoriais ou totalitários, ou melhor, de idéias provindas desses matizes, é a existência de uma Constituição democrática e efetiva (como nos diz Luis Roberto Barroso). Constituição originada de uma constituinte livre, representativa e soberana, guarnecida por uma Corte Constitucional independente e ciosa de suas tarefas institucionais em um regime de direitos fundamentais e separação de poderes.
Corte Superior cujos juízes julguem, acima de qualquer expediente, com base em regras e princípios constitucionais pré-estabelecidos no próprio texto da Constituição. E não se fundamentem em volúveis, difusos, imprecisos e irracionais sentimentos populares vazados por setores da sociedade que nem sempre atentam para o valor de uma Lei Fundamental e seu regime de contenção dos arbítrios de toda sorte - proveiam esses abusos do Poder Estatal ou do Poder Social, ambos poderes constituídos e contidos pela Constituição democrática vigente.
Nesse tema de liberdades constitucionais, que são liberdades de todos – o condomínio social das liberdades assentes na Constituição, como diria Rui Barbosa -, independe, para ter eficácia e ganhar vida, de quem, ocasionalmente, esteja sob o pálio protetivo delas. Essas liberdades, como o sol que nos ilumina, são para todos, sob uma constituição democrática. Não se podem tolerar casuísmos, nem para se atingir o demônio, pois este, se em corpo de gente, tem direitos comum a todos nós, e não pode haver força viva acima ou abaixo da Constituição que excepcione direitos em função do tipo de pessoa, e sim, apenas em face de sua conduta juridicamente relevante, segundo o direito positivo válida e legitimamente posto.
Tenho constatado, quanto ao tema das liberdades, e das garantias processuais e matérias, ao lado da garantia da privacidade, do sigilo das comunicações, da intimidade, entre outras garantias e direitos processuais e materiais, principalmente as constitucionais, um certo permissivismo judicial, um relativismo hermenêutico pernicioso, em nome de correções morais, em nome de recortes moralistas feitos por operadores do direito, juízes, promotores e colegas advogados, que procuram, manuseando princípios, standards, cláusulas gerais, corrigir as falhas do legislador e atender ao clamor das ruas – recentemente vimos um conhecido e respeitado Juiz de nossa Suprema Corte dizer que se seu voto pode contrariar os interesses da rua, ao admitir a realização de práticas tidas pela opinião pública como corruptoras, que o voto poderia ser adaptado para conformar-se à essa opinião.
Essas posturas, no mais das vezes envolta em plena boa fé e bom ânimo público, são reflexos, muitas vezes, dos movimentos da lei e da ordem, no direito penal, no direito eleitoral e no direito administrativo – como disse -, que mesmo sem o querer de seus defensores, dão vida a antigas práticas, autoritárias e mesmo fascistas, contrárias à ambiência democrática e ao regime de direitos e liberdades constitucionalmente posto.
Nesse mesmo clima, que assume ares antidemocráticos, temos vistos juízes serem criticados por cumprirem seus deveres constitucionais de proteger essas liberdades asseguradas na Constituição e em Tratados Internacionais e normas legais. É o caso, muitas vezes, do Ministro Gilmar Mendes, que no caso Daniel Dantas, tantas e injustas críticas sofreu por respaldar garantias constitucionais e prestigiar a própria jurisprudência corrente do STF.
Essas eram algumas dessas considerações sobre o tema.
Gostaria de, no largo espectro do que tentei expor, concluir com pensamentos poéticos do nosso Ministro Carlos Ayres, colhidos em seu Varal de Borboletas:
“Tenho tido força de vontade para domar a vontade da força.” (Varal de Borboletas, 2 ed., Forum, p. 86.).
O que deve fazer refletir a autocontenção do arbítrio pelos agentes de estado, ao tratarem com os direitos em exposição.
“Certos policiais que indiciam pessoas nem mais indícios de pessoa têm.” (Varal de Borboletas, 2 ed., Fórum, p. 69).
O que nos faz refletir o caráter proporcional, reto e justo que deve conter a atividade estatal persecutória.
“CPI que não dá em nada é minha pizza despreferida.” (Varal de Borboletas, 2 ed., Forum, p. 94.
O que deve refletir sobre a seriedade das limitações a esses direitos, em face de outros bens constitucionais de relevância para todos.
“Enquanto houver uma promessa de sol em cada madrugada, Dom Quixote de La Mancha viverá como hóstia consagrada.” (Varal de Borboletas, 2 ed., Forum, p. 119.
O que deve fazer refletir sobre nossa missão e deveres, a nos todos, advogados, defensores das liberdades, de forma intemerata, diante de quaisquer poderes públicos ou sociais que venham afrontar as liberdades, em nossa democracia.
Obrigado a todos pela atenção!
Notas
[1] Extrato de exposição de conferencia ministrada na Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, ocorrida em novembro de 2011, na cidade de Curitiba/PR.
[2] Professor de Direito Constitucional da Escola Superior de Magistratura de Santa Catarina e Professor de Direito Eleitoral da ESA/OAB/SC – Mestre em Direito Público pela UFSC – Autor do livro “Conceito de Princípios Constitucionais”, RT – Conferencista Internacional – Presidente da Comissão dos Comemorativos da CF de 1988 junto ao Conselho Federal da OAB e membro da Comissão de Direito Constitucional da Seccional da OAB de SC - Sócio gerente da Espíndola & Valgas, Advogados Associados, com sede em Florianópolis/SC – Advogado militante perante o TSE e STF - [email protected], www.espindolaevalgas.com.br.
[3] Tenho presente, na minha afirmação, a obra de Rosália Duarte, Cinema & Educação, Belo Horizonte, Autêntica, 2002, 127 p.