A Constituição da República estabelece no caput do art. 227[1] como dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, dentre outros, o direito à dignidade, ao respeito e à liberdade, colocando-os a salvo de toda forma de negligência, exploração, violência e crueldade.
Em atendimento a essas disposições constitucionais, foi editada em 1990 a Lei nº 8.069 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) que criminalizou algumas condutas praticadas, por ação ou omissão, contra crianças e adolescentes, dentre as quais a produção, veiculação e comercialização de pornografia infantil.
No ano de 2008, o ECA foi alterado pela Lei nº 11.829 que modificou a redação dos artigos 240 e 241 e acrescentou os artigos 241-A, 241-B, 241-C, 241-D e 241-E, visando aprimorar o combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, bem como criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pornografia infantil na internet.
Posteriormente, por meio da Lei nº 12.015/2009, foi acrescentado ao ECA o art. 244-B que tipifica o crime de corrupção de menores.
Em outro contexto legislativo, em 2011, com a edição da Lei nº 12.403, foram alterados dispositivos do Código de Processo Penal (CPP) relativos, dentre outros, à prisão processual, à fiança e à liberdade provisória.
Nesse diapasão, os crimes cuja pena privativa de liberdade máxima cominada não é superior a 4 (quatro) anos passaram a ser afiançáveis pelo Delegado de Polícia (art. 322 do CPP[2]), não sendo passíveis de decretação de prisão preventiva (art. 313, I, do CPP[3]).
Assim, boa parte dos crimes do ECA foi abrangida por essas alterações promovidas no estatuto processual penal.
Com efeito, por ocasião da autuação em flagrante delito de cidadão que pratica alguns dos crimes tipificados no ECA cuja pena privativa de liberdade máxima cominada não é superior a 4 (quatro) anos, o Delegado de Polícia, logo após a lavratura do flagrante, deverá arbitrar fiança.
É o que ocorre, por exemplo, quando se constata:
a) posse de pornografia infantil (art. 241-B[4]);
b) produção (ou venda/disponbilização etc) de imagem com simulação de participação de criança/adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica (art. 241-C e parágrafo único[5]);
c) aliciamento (ou assédio, instigação etc), por qualquer meio de comunicação, de criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso (241-D, caput e parágrafo único[6]); ou
d) corrupção ou facilitação a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la (art. 244-B, caput e §1º[7]).
Não bastasse esse dever de arbitramento de fiança, não são tais crimes passíveis de representação pelo Delegado de Polícia ao juízo competente pela decretação da prisão preventiva do investigado, salvo se constatada a prática, por ele, de outro fato criminoso em concurso com pena máxima cominada maior que 4 (quatro) anos ou que a violência seja praticada contra criança/adolescente, em âmbito doméstico/familiar (art. 313, I a III, do CPP).
Destarte, não têm sido poucos os casos de flagrante por posse de pornografia infantil - com investigados que confessam serem ávidos “consumidores” daquele material ilícito e que possuem grandes quantidades de arquivos armazenados em seus computadores ou mídias - que terminam com o arbitramento de fiança, restituindo imediatamente à liberdade e ao convívio social pessoas com grande potencial lesivo à dignidade infanto-juvenil.
Neste ponto, cumpre ressaltar que o apreciador/possuidor de pornografia infantil, ainda que não venha a abusar sexualmente de crianças/adolescentes, estimula outro tipo de predador sexual (os abusadores) a praticar agressão sexual contra menores, ato essencial para a produção de vídeos ou fotografias sobre o tema, na medida em que busca na internet este tipo de material para fazer o download e armazená-lo para seu deleite.
O fomento à produção, aliado à impossibilidade prática e efetiva de restringir o acesso do pedófilo a conteúdo pornográfico infanto-juvenil na internet, configuram os requisitos “garantia da ordem pública” e “assegurar a aplicação da lei penal”, necessários para a decretação da prisão preventiva[8] do investigado pela prática dos crimes aqui mencionados.
Por tais motivos, levando em conta a gravidade dos citados crimes e a necessidade de proteção aos bens jurídicos por eles tutelados, assegurada no art. 227 da Constituição da República, é imperiosa a revisão, pelo Congresso Nacional, das penas cominadas aos crimes tipificados nos artigos 241-B, 241-C, 241-D, caput e parágrafo único e 244-B, caput e §1º, todos da Lei nº 8.069/90, majorando suas penas máximas de forma a torná-los afiançáveis apenas pela autoridade judiciária e passíveis de decretação de prisão preventiva.
Notas
[1]Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010)
[2] Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
[3] Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
[4] Art. 241-B. Adquirir, possuir ou armazenar, por qualquer meio, fotografia, vídeo ou outra forma de registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
§ 1º A pena é diminuída de 1 (um) a 2/3 (dois terços) se de pequena quantidade o material a que se refere o caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
[5] Art. 241-C. Simular a participação de criança ou adolescente em cena de sexo explícito ou pornográfica por meio de adulteração, montagem ou modificação de fotografia, vídeo ou qualquer outra forma de representação visual: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Parágrafo único. Incorre nas mesmas penas quem vende, expõe à venda, disponibiliza, distribui, publica ou divulga por qualquer meio, adquire, possui ou armazena o material produzido na forma do caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
[6] Art. 241-D. Aliciar, assediar, instigar ou constranger, por qualquer meio de comunicação, criança, com o fim de com ela praticar ato libidinoso: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Pena – reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
Parágrafo único. Nas mesmas penas incorre quem: (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
I – facilita ou induz o acesso à criança de material contendo cena de sexo explícito ou pornográfica com o fim de com ela praticar ato libidinoso; (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
II – pratica as condutas descritas no caput deste artigo com o fim de induzir criança a se exibir de forma pornográfica ou sexualmente explícita. (Incluído pela Lei nº 11.829, de 2008)
[7] Art. 244-B. Corromper ou facilitar a corrupção de menor de 18 (dezoito) anos, com ele praticando infração penal ou induzindo-o a praticá-la: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
§ 1º Incorre nas penas previstas no caput deste artigo quem pratica as condutas ali tipificadas utilizando-se de quaisquer meios eletrônicos, inclusive salas de bate-papo da internet. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)
[8] Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).