A Reforma político-eleitoral é uma necessidade de enorme importância para o aperfeiçoamento do Estado Democrático de Direito no Brasil, notadamente no tocante ao saneamento dos costumes políticos e legitimação das representações da soberania popular nas instâncias do Poder Público. As recentes manifestações populares no mês de junho de 2013 apontaram inequivocamente nesse sentido.
Discute-se de forma crescente, no Parlamento e fora dele, os inúmeros aspectos do assunto. Podemos arrolar, entre outros, os seguintes temas: a) financiamento de campanhas; b) sistema eleitoral para preenchimento das vagas no Parlamento; c) liberdade de debate político-eleitoral dentro e fora de espaços eletrônicos; d) candidaturas avulsas; e) voto obrigatório; f) cláusula de barreira; g) partidos de aluguel; h) distribuição de tempo nos programas de rádio e televisão; i) fidelidade partidária; j) transparência das contas de campanha; k) suplência de senadores; l) distorção, em relação à população das unidades da Federação, nas representações na Câmara dos Deputados; m) reeleição; n) coincidência de mandatos; o) racionalização dos casos de desincompatibilização; p) bicameralismo no âmbito da União; q) divulgação de pesquisas eleitorais; r) revogação de mandatos por decisão dos eleitores e s) utilização de “cabos eleitorais”.
Percebe-se, facilmente, que existem pontos substanciais, que envolvem os pilares de sustentação dos processos político-eleitorais, e pontos acessórios ou secundários, sem maiores repercussões para a reorganização republicana do sistema político-eleitoral brasileiro. É de suma importância a separação dessas questões e a correta identificação do alcance/profundidade de cada uma das propostas.
Para a concretização desse significativo anseio popular, vários setores da sociedade civil organizada oferecem inestimáveis contribuições ao debate. Merece destaque a proposta apresentada pelo movimento “eleições limpas”, sucessor político do movimento “ficha limpa”, congregando o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a União Nacional dos Estudantes (UNE), o MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral), o SINPROFAZ (Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional), entre outros relevantes atores sociais.
O projeto de lei apresentado pelo movimento “eleições limpas” merece elogios quando sustenta:
a) a necessidade de financiamento público das campanhas eleitorais, afastando as doações por empresas (1) (2);
b) profunda reformulação do sistema de eleições proporcionais (para os parlamentos, com exceção do Senado Federal) com votação em dois turnos (“… o eleitor vota, primeiro, no partido e, depois, candidato” - conforme documento de divulgação da campanha);
c) radical ampliação do debate político-eleitoral, notadamente nos ambientes eletrônicos (como a internet e suas redes sociais).
Subsiste, entretanto, um grave equívoco na proposta do movimento “eleições limpas”. Com efeito, mantém-se, nas eleições proporcionais, a possibilidade de coligações partidárias. Consta na proposta apresentada pelo movimento a seguinte redação para o art. 5o-A da Lei n. 9.504, de 1997:
Nas eleições proporcionais, será obedecido o sistema de votação em dois turnos, os quais se realizarão nas oportunidades definidas no art. 1o desta Lei.
§1o No primeiro turno de votação, os eleitores votarão em favor de siglas representativas dos partidos ou coligações partidárias (destaques inexistente no original).
É possível afirmar, sem medo de errar, que as coligações partidárias nas eleições para os parlamentos representam um dos principais fatores de deterioração do ambiente político-eleitoral no Brasil. Com efeito, a formação de amplas coligações partidárias nos pleitos proporcionais, entre outras consequências: a) enfraquece e descaracteriza as siglas partidárias; b) permite negociações escusas relacionadas com o tempo disponível para a propaganda no rádio e televisão; c) viabiliza a eleição de candidato de partido distinto daquele sufragado pelo eleitor e d) cria condições favoráveis para a manutenção e proliferação de “partidos de aluguel”.
Ademais, a proibição das coligações em eleições proporcionais é solução muito superior a fixação da chamada “cláusula de barreira” para afastar a praga dos “partidos de aluguel”. Essa via permite cortar o “oxigênio” das legendas criadas para viabilizar “negócios político-eleitorais” sem o efeito colateral de dificultar ou inviabilizar os chamados “partidos de opinião” ou “partidos ideológicos”. Esses partidos, representativos de minorias políticas (em certo momento ou até certo momento, porque podem ser a maioria de amanhã), efetivam ou concretizam o pluralismo político definido como fundamento do Estado Democrático de Direito no Brasil (art. 1o, inciso V, da Constituição). O próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu nesse sentido:
ADI 1351/DF. Relator: Min. MARCO AURÉLIO. Julgamento: 07/12/2006. Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Ementa: PARTIDO POLÍTICO - FUNCIONAMENTO PARLAMENTAR - PROPAGANDA PARTIDÁRIA GRATUITA - FUNDO PARTIDÁRIO. Surge conflitante com a Constituição Federal lei que, em face da gradação de votos obtidos por partido político, afasta o funcionamento parlamentar e reduz, substancialmente, o tempo de propaganda partidária gratuita e a participação no rateio do Fundo Partidário. NORMATIZAÇÃO - INCONSTITUCIONALIDADE - VÁCUO. Ante a declaração de inconstitucionalidade de leis, incumbe atentar para a inconveniência do vácuo normativo, projetando-se, no tempo, a vigência de preceito transitório, isso visando a aguardar nova atuação das Casas do Congresso Nacional.
Portanto, a proposta conhecida como “eleições limpas”, digna de elogios e apoios, pela consistência e capacidade de galvanizar a sociedade brasileira, precisa ser depurada, interna ou externamente, desse ponto (a manutenção da possibilidade de coligações nas eleições proporcionais – para os parlamentos). Assim, poderá alcançar o desejável fim que persegue representado na racionalização e efetiva democratização dos processos eleitorais no Brasil.
NOTAS:
(1) “Quatro gigantes da construção civil que também administram rodovias foram as empresas que mais doaram dinheiro nas seis últimas eleições realizadas no país, entre 2002 e 2012. São elas, em ordem decrescente: Camargo Corrêa, Andrade Gutierrez, OAS e Queiroz Galvão. Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, as quatro empreiteiras doaram, nesse período, R$ 615,5 milhões, em valores já corrigidos pela inflação. Pela legislação eleitoral, empresas que exploram concessão pública não podem contribuir com candidatos ou partidos políticos. Não há nenhum impedimento legal, no entanto, para que elas financiem as eleições por meio de outros braços de seus grupos”. Revista Congresso em Foco. Ano 2. Número 6. Junho/Julho de 2013. Pág. 34.
(2) “Empresas que devem quase R$ 1,5 bilhão ao governo doaram a campanhas. As principais campanhas políticas de 2010 no Brasil foram bancadas por empresas que devem dinheiro ao governo federal. De cada R$ 100 injetados naquela campanha presidencial, quase R$ 30 vieram de empresas inscritas na Dívida Ativa da União, lista de devedores que, segundo o governo, não pagaram impostos ou deixaram de recolher a contribuição para a Previdência Social. No total, as doadoras devem quase R$ 1,5 bilhão”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/poder/2013/08/1321657-empresas-que-devem-quase-r-15-bilhao-ao-governo-doaram-a-campanhas.shtml>. Acesso em: 3 out. 2013.