Artigo Destaque dos editores

O sistema acusatório e o novo formato de inquirição de testemunhas no Código de Processo Penal

Leia nesta página:

O STF e o STJ deixaram claro que a inquirição de testemunhas pelo juiz deve ser feita de forma complementar e não principal, nunca em substituição ao órgão incumbido da acusação. Caso contrário, configura-se violação indisfarçável ao sistema acusatório.

O Código de Processo Penal em vigor foi editado sob a égide da Constituição Federal de 1937 e foi influenciado pela ideologia do Estado Novo, momento histórico brasileiro em que os interesses dos cidadãos foram mitigados pelos interesses do Estado.

A Constituição Federal de 1988 inaugurou um novo regime, garantidor de direitos e garantias individuais. Com isso, o sistema processual penal pátrio passou a exigir adequações na legislação infraconstitucional e, pode-se dizer, na própria postura dos operadores do Direito.

Em busca de um processo penal constitucional, há uma tendência a reformas parciais, tópicas, pontuais (reformas a “conta gotas”). Segundo Ada Pellegrini Grinover[1], “a reforma total teria a seu favor a completa harmonia do novo sistema”, no entanto, “a morosidade própria da tramitação legislativa” exige como técnica “reformas tópicas”, “mas não isoladas”, para se manter “a unidade e homogeneidade do sistema”.

Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[2] é mais enfático ao afirmar que “reformas parciais” tendem a “destruir os sistemas”, “se eles não são levados em consideração, justo porque os elementos que o integram estão umbilicalmente relacionados entre si, de modo a qualquer alteração produzir reflexos gerais”. E conclui: “Desfigurado, por outro lado, escapa da lógica que o preside e, por isso, não se faz compreensível facilmente por todos, como é de se esperar de uma estrutura organizada para tanto”.

Factíveis ou desfiguradoras, não há como negar que boa parte das alterações promovidas no sistema processual penal nos últimos tempos tem como norte o sistema acusatório.

No contexto de tais reformas, o art. 212 do Código de Processo Penal sofreu uma significativa mudança, passando a ter a seguinte redação:

Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

Para melhor compreender as modificações trazidas pela Lei 11.690/2008, lembra-se aqui da antiga redação do artigo em análise:

Art. 212. As perguntas das partes serão requeridas ao juiz, que as formulará à testemunha. O juiz não poderá recusar as perguntas da parte, salvo se não tiverem relação com o processo ou importarem repetição de outra já respondida.

Trata-se de clara tentativa de superação do sistema presidencialista, substituído pela inquirição direta, de origem estadunidense. Pode-se dizer que é mais uma das propostas de mitigação dos resquícios inquisitivos do Código de Processo Penal.

Como se sabe, o sistema inquisitivo desenvolveu-se na Idade Média. De acordo com Coutinho[3], a estrutura inquisitorial origina-se “no seio da Igreja Católica, como uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que se convencionou chamar de ‘doutrinas heréticas’. Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu”.

Segundo as lições de Salo de Carvalho[4], em um procedimento inquisitivo, as funções de investigar, acusar, defender e julgar centralizam-se na mesma pessoa. Prevalecem os procedimentos baseados em denúncias anônimas e vagas, em estruturas probatórias centradas na confissão e na busca da “verdade material”, bem como na prisão processual como regra.

O processo aqui é sigiloso e sem contraditório, desenvolvendo-se por impulso oficial. Com as provas tarifadas e a confissão com valor absoluto, esta era perseguida a todo custo, inclusive com a prática de tortura. O acusador-julgador, sob o argumento da busca da “verdade real”, tinha uma postura ativa e buscava a prova como um verdadeiro investigador.

O sistema acusatório, por sua vez, desenvolveu-se a partir do Século XVIII (com a Revolução Francesa) e atualmente predomina “nos países que respeitam mais a liberdade individual e que possuem uma sólida base democrática”. Trata-se de um “imperativo do moderno processo penal”.[5]

As suas características podem ser resumidas na distribuição das funções de acusar, defender e julgar (actum trium personarum), com paridade de armas entre acusação e defesa. O modelo acusatório permite o contraditório e a ampla defesa, com plena publicidade do procedimento. O magistrado, terceiro imparcial que deve ser, fomenta a iniciativa probatória das partes.

Pode-se dizer que as diferenças entre os dois sistemas estão basicamente na divisão das funções de acusar, defender e julgar, bem como na gestão da prova. Conclusão: no sistema inquisitivo, as funções de acusar e julgar e a gestão da prova encontram-se nas mãos do julgador (juiz ator). No sistema acusatório, as funções de acusar e defender e a gestão da prova passam para as mãos das partes (juiz espectador).

Infelizmente, o “maior engenho jurídico que o mundo conheceu”[6] não perdeu sua influência e, ainda nos dias de hoje, fascina casas de leis e juristas em todo o Brasil e no mundo.

Não há como negar, ao menos aos olhos da doutrina majoritária, que o sistema processual penal pátrio é acusatório. No entanto, essa informação não pode ser “absorvida” de forma acrítica. Isso porque, inúmeros são os resquícios inquisitoriais no Código de Processo Penal. São alguns exemplos: (1) possibilidade do magistrado ouvir testemunhas além das indicadas pelas partes (CPP, art. 209); (2) diligências, de ofício, durante as fases preliminar e processual (CPP, art. 156, inc. I e inc. II); (3) possibilidade de condenação ainda que o Ministério Público tenha postulado a absolvição (CPP, art. 385).   

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

Sendo assim, os Tribunais pátrios, bem como os processualistas penais modernos, devem sempre refletir e interpretar a partir das duas premissas acusatórias: no Processo Penal, as funções de acusar e defender e a gestão da prova devem estar nas mãos das partes.

O que foi dito até então permite algumas conclusões sobre a “nova” redação do art. 212 do Código de Processo Penal. Quando se fala que “as perguntas serão formuladas pelas partes diretamente à testemunha” e que “o juiz poderá complementar a inquirição”, deve-se entender que cabe às partes a tarefa de provar o alegado, ou seja, a gestão da prova, sendo a atividade do magistrado, quando muito, supletiva.

A manutenção do antigo sistema presidencialista não deve ser vista com bons olhos. Afinal, como já dito, cuida-se de alteração legislativa que transmite claramente a mensagem de superação do sistema inquisitivo nas salas de audiências de todo o País.

Tanto o Supremo Tribunal Federal, quanto o Superior Tribunal de Justiça, já enfrentaram o tema em recentes julgados. Apesar da contestável opção pela decretação de nulidade relativa frente à desatenção ao art. 212 do Diploma Processual Penal, o Pretório Excelso e o Tribunal da Cidadania deixaram claro que a inquirição de testemunhas pelo juiz deve ser feita de forma complementar e não principal, nunca em substituição ao órgão incumbido da acusação. Caso contrário, configura-se violação indisfarçável ao sistema acusatório.


Notas

[1] GRINOVER, Ada Pellegrini. A reforma do Código de Processo Penal brasileiro – pontos de contato com o direito estrangeiro. In Reforma Infraconstitucional: Processo Penal. Brasil: Ministério da Justiça, 2009.

[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Reformas parciais do Processo Penal: breves apontamentos críticos. In Reforma Infraconstitucional: Processo Penal. Brasil: Ministério da Justiça, 2009.

[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Reformas parciais do Processo Penal: breves apontamentos críticos. In Reforma Infraconstitucional: Processo Penal. Brasil: Ministério da Justiça, 2009.

[4] CARVALHO, Salo de. Revisita à Desconstrução do Modelo Jurídico Inquisitorial. Mal-Estar na Cultura Punitiva. PUC/RS.

[5] LOPES JR., Aury, Direito Processual Penal e sua Conformidade Constitucional. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.

[6] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Reformas parciais do Processo Penal: breves apontamentos críticos. In Reforma Infraconstitucional: Processo Penal. Brasil: Ministério da Justiça, 2009.

Assuntos relacionados
Sobre a autora
Caroline de Paula Oliveira Piloni

Defensora Pública Federal Titular do 1º Ofício Criminal Militar no Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PILONI, Caroline Paula Oliveira. O sistema acusatório e o novo formato de inquirição de testemunhas no Código de Processo Penal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3754, 11 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25469. Acesso em: 26 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos