5. Constitucionalismo no século XX
O início do século XX brindou o mundo com diplomas fortemente marcados pelas preocupações sociais, conforme poderá ser notado a seguir.
5.1. Constituição mexicana, 1917
A Constituição mexicana de 1917 passou a garantir direitos individuais com fortes tendências sociais, como, por exemplo, direitos trabalhistas e a efetivação da educação.
Conforme ensina Ricardo Castilho:
“A Revolução Mexicana foi a primeira das grandes revoluções do século XX. Foi considerada uma revolução social porque postulava a reforma agrária e a justiça social. Como movimento constitucionalista, cumpriu seu papel em 1917. A Constituição mexicana, promulgada em 5 de fevereiro de 1917, é reconhecida como a primeira constituição liberal do mundo, moderna para a época, porque garantia direitos civis e políticos e reformas liberais como a reforma agrária e uma avançada legislação trabalhista, além de abordar temas religiosos e educacionais. É a Constituição que ainda rege os Estados Unidos do México” (2013, p.88)
Entre suas normas fundamentais destacam-se as seguintes:
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Outorga de garantias ou de direitos individuais a todos os tipos de pessoas, sem discriminação de classe social ou categoria econômica.
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Proíbe a escravidão
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Estabelece educação laica para escolas pública e particulares
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Prevê a liberdade de trabalho
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Proíbe a criação e os votos religiosos de ordens eclesiásticas
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Estabelece a liberdade de imprensa
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Estabelece a liberdade de crença, proibindo, porém, qualquer ato de culto fora dos templos ou casas particulares
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Distribuição de terras e perpétua nacionalização dos bens da Igreja, assim como proíbe a existência de escolha religiosas, mosteiros, bispados e outros
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Princípio da soberania nacional
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Sistema de governo é de república representativa, democrática e federal
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Divide o poder supremo da Federação em três ramos: legislativo, executivo e judiciário
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Estabelece bases do livre município
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Sistema de defesa da classe trabalhadores
5.2. Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, 1918
Para Bernard Chenot, as declarações dos séculos XVIII e XIX se voltavam para garantias formais de liberdade, desta forma, considerando o indivíduo uma abstração. O homem era visto sem que se levasse em conta sua inserção em grupos, família ou vida econômica, estabelecendo-se uma igualdade abstrata entre os homens.
Com isso, o Estado deveria se abster, apenas devendo vigiar, ser simples “gendarme”. Esse prisma abstrato da liberdade e igualdade entre os homens foi duramente criticado pelos socialistas. Pois, segundo José Afonso da Silva, “apesar de retoricamente afirmadas e reconhecidas, permitiam medrassem a injustiça e a iniquidade na repartição da riqueza, e prosperasse a miséria das massas proletárias” (1992, p. 147)
O “Manifesto Comunista”, escrito em 1848 por Marx e Engels, é comparado por Harold Laski, por sua influência, com a Declaração de Independência americana e com a Declaração dos Direitos de 1789, pois foi o documento político mais importante na crítica socialista ao regime liberal-burguês.(Apud SILVA, 1992, p.148)
É a partir do Manifesto que essa visão crítica passa a ser fundamentada em bases teóricas, tornando-se mais coerente, provocando o aparecimento de outras correntes e outros documentos, como a Encíclica Rerum Novarum de 1891, elaborada pelo Papa Leão XIII.
Segundo Alexandre de Moraes:
“A Declaração Soviética dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, pelas próprias circunstâncias que idealizaram a Revolução de 1917, visava suprimir toda a exploração do homem pelo homem, a abolir completamente a divisão da sociedade em classes, a esmagar implacavelmente todos os exploradores, a instaurar a organização socialista da sociedade e fazer triunfar o socialismo em todos os países.” (2010, p. 13)
Entre os seus preceitos, podemos destacar não ter se limitado a reconhecer direitos econômicos e sociais, efetivamente realizou uma nova concepção da sociedade e do Estado, também trouxe uma nova concepção de direitos, que buscasse libertar o homem de uma vez por todas de qualquer forma de opressão.
Outro ponto relevante foi a abolição do direito de propriedade privada, com todas as terras privadas passando a ser propriedade nacional e entregues aos trabalhadores sem qualquer espécie de resgate, na base da repartição igualitária em usufruto.
5.3. Constituição Soviética (Lei Fundamental), 1918
Em seu artigo 22 proclamou o princípio da igualdade, independentemente de raça ou nacionalidade. Além disso, anunciou em seu artigo 16 a prestação de assistência material e outras formas de apoio aos operários e aos camponeses mais pobres, a fim de concretizar a igualdade.
Contudo, Alexandre de Moraes faz importante ressalva:
“Apesar desses direitos, a Lei Fundamental Soviética avança em sentido oposto à evolução dos direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, ao privar em seu art. 23. os indivíduos e os grupos particulares dos direitos de que poderiam usar em detrimento dos interesses da revolução socialista, ou ainda ao centralizar a informação e a obrigatoriedade do trabalho (art. 14) com o princípio quem não trabalha não come” (2011, p. 24).
Importa ressaltar que tanto a declaração como a constituição soviética de 1918 apresentam-se como “cartas de intenções” muito pomposas e idealistas. Porém, o que prevalece na prática é uma “ideologia revolucionária” que tende à supressão de uma ordem constituída e a ereção de outra, com nova concentração de poder. Desta feita o poder é concentrado no Partido Comunista e, na verdade, isso acaba gerando uma casta privilegiada politicamente e uma massa totalmente subordinada a um regime totalitário e genocida de seu próprio povo. A história do comunismo soviético, assim como na China, no Camboja, no Vietnã e em Cuba é marcada por prisões arbitrárias, execuções sumárias de milhões de cidadãos, repressão política, supressão de liberdades individuais e outras terríveis lesões aos direitos humanos. Dessa forma, o “ideal” comunista acaba se revelando como uma terrível “ideologia” fortemente violadora dos direitos fundamentais. Há um abismo total entre a teoria e a prática.
5.4. Constituição de Weimar, 1919
Com o fim da I Guerra Mundial e a queda da monarquia na Alemanha, ocorreu a proclamação da República de Weimar por Philipp Scheidemann, assim chamada em função da cidade onde se reuniu a Assembléia Nacional Constituinte.
Alexandre de Moraes afirma:
“Além dos direitos sociais expressamente previstos, a Constituição de Weimar demonstrava forte espírito de defesa dos direitos sociais, ao proclamar que o império procuraria que assegurasse ao conjunto da classe operária da humanidade um mínimo de direitos sociais e que os operários e empregados seriam chamados a colaborar, em pé de igualdade, com os patrões na regulamentação dos salários e das condições de trabalho, bem como no desenvolvimento das forças produtivas” (MORAES, 2011, p. 22).
A República de Weimar foi uma democracia liberal nos moldes ocidentais até 1933, quando os nazistas tomaram o poder, inaugurando uma ditadura totalitária que culminaria na II Guerra Mundial.
Previa em sua Parte II os Direitos e Deveres fundamentais dos alemães:
Seção I – previa os tradicionais direitos e garantias individuas.
Seção II – trazia os direitos relacionados à vida social
Seção III – direitos relacionados à religião e às Igrejas
Seção IV – direitos relacionados à educação e ensino
Seção V – direitos referentes à vida econômica
5.5. Carta do Trabalho, 1927
Editada pelo Estado Fascista italiano, apesar de impregnada pela sua doutrina, trouxe grande avanço em relação aos direitos sociais dos trabalhadores, prevendo, principalmente:
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Liberdade sindical
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Magistratura do trabalho
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Possibilidade de contratos coletivos de trabalho
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Maior proporcionalidade de retribuição financeira em relação ao trabalho
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Remuneração especial ao trabalho noturno
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Garantia do repouso semanal remunerado
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Previsão de férias após um ano de serviço ininterrupto
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Indenização em virtude de dispensa arbitrária ou sem justa causa
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Previsão de previdência, assistência, educação e instrução sociais
6. Universalização das Declarações de Direitos
6.1. A II Guerra Mundial
Apontada por muitos como o maior conflito bélico da história da humanidade, os horrores vividos neste período significaram a ruptura com os direitos humanos, porém, sem dúvida o pós-guerra significou sua reconstrução.
Segundo cálculos publicados por Fabio Konder Comparato em sua obra “A afirmação histórica dos direitos fundamentais”, ao final da guerra, em 1945, mais de 25 milhões de soldados haviam morrido, cerca de 50 milhões de civis tinham sido sacrificados, entre eles 6 milhões de judeus, no chamado “holocausto”, além de cerca de 40 milhões de refugiados (2010, p. 225).
Hannah Arendt na obra “A condição humana” aponta como razões para o surgimento de Estados totalitários em pleno século XX: “o imperialismo capitalista e o antissemitismo, além dos ideologismos, racial e revolucionário, vigentes à época” (1981, p. 227-228),
Para Manoel Gonçalves Ferreira Filho a II Guerra Mundial constitui um marco na história dos direitos humanos. A partir dela o mundo passou a caminhar para o chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos (2010, p. 225).
Flávia Piovesan afirma que:
“a internacionalização dos direitos humanos constitui, assim um movimento extremamente recente na história, que surgiu a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. Apresentando o Estado como o grande violador de direitos humanos, a Era Hitler foi marcada pela lógica da destruição e da descartabilidade da pessoa humana, o que resultou no extermínio de onze milhões de pessoas. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – raça pura ariana” (2010, p. 122)
No mesmo sentido, Ricardo Castilho:
“a II Guerra Mundial evidenciou que a tutela dos direitos humanos não poderia ficar restrita ao âmbito nacional. Pior: que a soberania, fruto da unificação dos Estados ocorrida na Era Moderna, poderia servir de escudo para a prática de atrocidades inomináveis. A urgência da criação de mecanismos supraestatais de proteção do ser humano adveio daí” (2013, p. 102)
Castan Tobeñas, em sua obra “El Derecho Constitucional de la Posguerra”, afirma que as declarações de direitos do século XX procuraram consubstanciar as seguintes tendências fundamentais:
- Universalismo – já implícito na Declaração francesa de 1789, todavia, passou a ser objeto de reconhecimento supraestatal, em documentos declaratórios de feição multinacional ou mesmo universal. Este sentido universalizante passou a ser objeto de reconhecimento supraestatal em documentos declaratórios de feição multinacional ou mesmo universal.
- Socialismo – expressão tomada em sentido amplo, com a extensão do número dos direitos reconhecidos, o surgimento dos direitos sociais, uma inclinação ao condicionamento dos direitos de propriedade e dos demais direitos individuais, essa propensão se refletiu no Direitos Constitucional contemporâneo. (Apud SILVA, 1992, p. 149)
6.2. Organização das Nações Unidas
A preocupação com a sistematização dos direitos fundamentais do homem aparece delineada na Carta das Nações Unidas, mediante o objetivo de elaboração de uma Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Visando manter a segurança coletiva e a paz mundial, a ONU foi criada em 24 de outubro de 1945, com a entrada em vigor da Carta das Nações Unidas:
Art.1 - Os propósitos das Nações unidas são:
1. Manter a paz e a segurança internacionais e, para esse fim: tomar, coletivamente, medidas efetivas para evitar ameaças à paz e reprimir os atos de agressão ou outra qualquer ruptura da paz e chegar, por meios pacíficos e de conformidade com os princípios da justiça e do direito internacional, a um ajuste ou solução das controvérsias ou situações que possam levar a uma perturbação da paz;
2. Desenvolver relações amistosas entre as nações, baseadas no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal;
3. Conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e
4. Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.
Para José Afonso da Silva, o instrumento estava impregnado pela idéia do respeito aos direitos do homem, desde o seu segundo considerando:
“a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos de homens e mulheres das nações grandes e pequenas”. (1992, p.149)
Entretanto, a Carta da ONU deixou de definir os direitos humanos e liberdades fundamentais que devem ser promovidos e estimulados. Essa tarefa coube, então, à Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948.
Na visão de Guido Fernando Silva Soares a Declaração Universal
“nada mais teria sido do que um desejo claro de especificarem-se em normas particulares aquelas normas pragmáticas gerais constantes da Carta de São Francisco” (2002, v.1, p. 344-345).
6.3. Declaração Universal dos Direitos Humanos
Com o objetivo de elaborar a referida Declaração, foi criada na ONU uma Comissão dos Direitos do Homem, cuja presidência coube à Eleonor Roosevelt, esposa do presidente americano Franklin Roosevelt.
Durante o processo de elaboração, houve acirrada polêmica quanto ao conteúdo do documento. Afinal de contas, como conjugar numa mesma Declaração direitos individuais tradicionais e, ao mesmo tempo, destacar a importância dos novos direitos sociais. Sobre isso, Philippe de La Chapelle ressalta a colaboração de Bogomolov, representante soviético, que deu eficaz ajuda na redação dos artigos concernentes aos direitos econômicos, sociais e culturais da Declaração (Apud SILVA, 1992, p.149).
Em 10/12/1948 a Assembléia Geral das Nações Unidas proclamou solenemente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento que enumerou os direitos e liberdades fundamentais.
Em seus trinta artigos precedidos de um preâmbulo com sete considerandos, reconhece solenemente:
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Dignidade da pessoa humana, como base da liberdade, da justiça e da paz
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O ideal democrático com fulcro no progresso econômico, social e cultural.
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O direito de resistência à opressão
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Concepção comum desses direitos
Para Dalmo de Abreu Dallari, a Declaração consagrou três objetivos fundamentais:
“A certeza dos direitos, exigindo que haja uma fixação prévia e clara dos direitos e deveres, para que os indivíduos possam gozar dos direitos ou sofrer imposições; A segurança dos direitos, impondo uma série de normas tendentes a garantir que, em qualquer circunstância, os direitos fundamentais serão respeitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procure assegurar a todos os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se permanecendo no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de direitos onde grande parte do povo vive em condições subumanas” (1991, p. 179)
Importante ressaltar que foi aprovada pela Resolução n. 217-A da Assembléia Geral, ou seja, não tomou força vinculante, já que “resolução não possui força de lei”, como salienta Ricardo Castilho (2013, p. 167).
De acordo com Fabio Konder Comparato,
“tais questionamentos pecam pelo excesso de formalismo. Com efeito, pouco importa, para fins de proteção aos direitos humanos a denominação que se dê aos instrumentos que os reconheçam. Aliás, a rigor, pouco importa o reconhecimento: reconhecidos solenemente ou não, eles devem ser respeitados” (2010, p. 239)
Entretanto, em 1966 ocorreu a criação de dois pactos para dar juridicização à DUDH:
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Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
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Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais
Releva destacar que essa tendência de universalização de direitos e sua positivação em diplomas internacionais que chegam a ganhar dimensão supraconstitucional em relação às normas internas, vai ganhando cada vez mais força naquilo que Neves denomina de “Transconstitucionalismo”:
“O fato é que, mais recentemente, com a maior integração da sociedade mundial, esses problemas tornaram-se insuscetíveis de serem tratados por uma única ordem jurídica estatal no âmbito do respectivo território. Cada vez mais, problemas de direitos humanos ou fundamentais e de controle e limitação do poder tornam-se concomitantemente relevantes para mais de uma ordem jurídica, muitas vezes não estatais, que são chamadas ou instadas a oferecer respostas para a sua solução. Isso implica uma relação transversal permanente entre ordens jurídicas em torno de problemas constitucionais comuns” (2012, p. 21).