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Vocação hereditária do nascituro

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25/10/2013 às 15:16
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Ampara-se o concebido vivente no útero materno com mais evidência, tendo em vista o conhecimento indubitável da sua presença. Sua expectativa de direito deve ser tomada com seriedade durante a transmissão do acervo hereditário.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho monográfico surge do resultado de uma análise específica do tema Tutela Jurídica do Nascituro, ao concentrar sua essência na sua capacidade sucessória. Para tanto, foi necessária uma decomposição concernente ao que seria a personalidade jurídica e a capacidade civil do homem, de forma que estas são pilares basilares para a aquisição e o exercício, respectivamente, dos direitos civis.

A pesquisa discorre sobre a problemática da consequência advinda da possibilidade de ser o nascituro contemplado como sucessor legítimo ou testamentário. Paralelamente, o surgimento dos efeitos patrimoniais submetidos às regras previstas para a transmissão da herança, uma vez que estas são fundamentadas pelo prévio nascimento do sucessor ao tempo da morte do de cujus. De tal maneira, aborda o estudo a sua ressalva, qual seja, a do ser ainda não nascido, mas já concebido no instante deste marco transmissor.

Nesse sentido, convém enveredar pelo ordenamento jurídico que salvaguarda os interesses futuros daqueles cuja existência é comprovada e que, no entanto, ainda não é nascido, tangenciando, com isso, a controvertida natureza jurídica do nascituro, que é pendente e condicionada ao evento do seu nascimento com vida.

Com isto, demonstra-se a dependência do nascimento com vida a que se sujeita o feto do direito pretenso aquisitivo, posto que a perspectiva de vida existe e é igualmente importante a de qualquer outro ser humano, devendo, portanto, ser estudado seus direitos e garantias. Além, destarte, da identificação específica dos casos em que o espólio advindo de uma sucessão hereditária deverá ser transmitido, com efeito, ao nascituro.

A natureza da vertente metodológica utilizada nesta pesquisa será a qualitativa, na medida em que esta modalidade permite a conversão da variabilidade das condutas humanas em uma compreensão de um todo. Não ocorre, porém, a preocupação com a representatividade numérica e estatística, mas sim com o aprofundamento da subjetividade do fenômeno sucessório no tocante ao nascituro.

Foi empregado, ainda, o método de abordagem dedutivo. Dessa forma, a pesquisa levará contornos especificadores, transferindo os princípios gerais do direito das sucessões para o exame minudente da vocação hereditária do nascituro. Quanto ao método de procedimento, o tratamento do tema estará ligado ao recurso monográfico, em virtude das ferramentas bibliográficas, com a contribuição dos doutrinadores do meio jurídico que esmeram o cotidiano do Direito, proporcionando resultados detalhados e exaustivos do caso em aprofundação. Assim, utilizando de um material já elaborado, constituído de livros e artigos científicos, para se chegar ao fim que se destina.

No tocante aos métodos de interpretação jurídica, a função deste estudo será intensificar o olhar sobre o nascituro sucessor, analisando os aspectos sociológicos e jurídicos que envolvem essa problemática, sobressaltando criteriosamente seus aspectos legais e costumeiros ao longo do tempo.

No que concerne ao desenvolvimento da pesquisa, ela foi estruturada em três capítulos. No primeiro, prioriza-se uma explanação acerca da tutela jurídica do nascituro, uma vez que esta proteção o insere no panorama normativo. Com isso, o estudo foi retificado em tópicos referentes ao início da vida, como as formas de comprovação da existência de um feto nas vísceras maternas e os seus dilemas quanto ao começo da personalidade civil, abrangendo, dessa forma, as teorias doutrinárias da personalidade. Ainda, nesse capítulo inaugural, são evidenciadas as evoluções do nascituro no tempo, com o intuito de compreender os conceitos hodiernos.

No segundo capítulo, expõe-se a contribuição do direito codificado romano, cuja parcela referente ao direito sucessório é preambular e inspiradora aos conceitos e procedimentos adotados no nosso novel código civil brasileiro, no que promove, igualmente, o direito das sucessões.

Por fim, no terceiro capítulo, a temática discutida adentra na delimitação proposta pelo estudo, discorrendo sobre a vocação hereditária do nascituro. Por essa razão, a minúcia evidencia a capacidade de suceder pelas formas elencadas pela lei ou, simplesmente, por puro ato de liberalidade do autor da herança. Ainda, fita-se o instituto da curatela do nascituro, em virtude da impossibilidade óbvia do estado limitado de expressão e defesa dos direitos de um feto. Por conseguinte, fez-se necessário a explanação diferençável entre embrião, nascituro e concepturo. Concluindo-se com o importantíssimo meio de rogo dos direitos de herdeiro, qual seja a petição da herança.

Nas considerações finais, revelou-se a preocupação em preservar no direito sucessório brasileiro um espaço destinado à conjuntura que envolve o vivente no útero materno, posto a relevância do tema. A qualidade ainda virtual do nascituro fica condicionada a pressupostos eventuais e legais que, porém, não o retira do alistamento para a recepção dos frutos e rendimentos decorrentes da deixa testamentária ou legítima, mesmo que estes sejam deferidos de maneira potencial e com o devido teor legal, uma vez que será ineficaz caso o feto nasça morto. De qualquer forma, o interesse do nascituro deve ser resguardado sem esperar a infortunística ou a sobrevivência pós-parto, em virtude dos meios probatórios de sua existência.  


CAPÍTULO 1     - TUTELA JURÍDICA DO NASCITURO

1.1 O INÍCIO DA VIDA

Para o nosso ordenamento jurídico a compreensão do ciclo da vida humana é de extrema importância, pois o seu início e fim acarretam consequências relevantes. O interesse teórico acerca dos dilemas existenciais e da polêmica investigação sobre o início da vida acarreta uma intensa busca sobre o estabelecimento do instante exato em que um novo ser humano será revelado. Para tanto, a definição desse marco civil deve ser encontrada sem inclinações místicas, bem como pautadas em preceitos éticos e morais, posto que a determinação do momento exato em que uma nova entidade será considerada viva proporcionará a prerrogativa do direito subjetivo, decorrente das normas postas a viger num dado momento, afiançando segurança jurídica ao novo ser.

Tomando por base a premissa de que não haverá direito subjetivo sem que haja sujeito, observa-se que a grande indagação e controvérsia está no estabelecimento da precisa ocasião em que a vida será iniciada. Aspectos filosóficos, religiosos e científicos foram e ainda são confrontados ao que tange a temática, uma vez tratar-se de diretrizes para o desenvolvimento dos valores morais, da tutela dos direitos personalíssimos e, mais atualmente, das pesquisas embrionárias. Assim, diversas teses foram suscitadas, mas, basicamente, são três as principais teorias que versam sobre o início da vida.

A primeira delas refere-se ao momento da concepção, no qual a fecundação do óvulo pelo espermatozóide define o instante revelador do ser humano; portanto, se baseia no fato de que o início da gravidez também demonstra o início da vida humana. A Igreja Católica é adepta desta tese e, assim como ela, os doutrinadores de direito penal, pois no que tange ao aborto, por exemplo, localizado no capítulo dos crimes contra a vida, o bem jurídico tutelado é o feto em qualquer grau de maturidade, ou seja, em forma de ovo, embrião ou nascituro[1].

Neste enfoque, esclarece Teodoro:

A teoria da concepção se mantém como a mais forte entre todas. A fetologia, muito desenvolvida nas últimas décadas, aponta como o início da vida o momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide. Irrelevante se a fecundação se deu in vitro ou no útero. Para os defensores dessa teoria, a única mudança concreta alcançada com o desenvolvimento da ciência foi a capacidade de se fecundar os gametas femininos e masculinos fora do organismo da mulher; porém, o início da vida sempre foi e sempre será o exato instante em que os gametas se encontram e se fundem.[2]

Ainda, corrobora Carlos Betancur[3]:

[...] hay vida humana independiente desde el momento mismo de la concepción, esto atendiendo a declaraciones de la biología y no a lo establecido por el derecho. Esto porque el concepto de vida obedece a um asunto natural que em nada se altera por las concepciones que tengan los hombres de ella, porque es netamente objetivo.[4]

Contrapondo-se à tese concepcionista, a teoria da nidação declara ser o fenômeno da implantação do ovo no útero o instante que promove o estado gravídico de uma mulher, promovendo, assim, uma ideal condição de viabilidade ao novo ser. Para ela, somente através da nidação é que se adquirirá perspectivas para o desenvolvimento de formas humanas. Sobre o tema, discorre Lothar Carlos:

É extremamente alta a quantidade de óvulos fecundados que não chegam a se alojar no útero. Estimativas variam entre 40% a 70% de zigotos que se perdem no trajeto. A nidação, pois, encerra um processo de rigorosa seleção. Caso todos esses óvulos fecundados, normalmente abortados sem tomada de conhecimento por parte da mulher, devessem ser considerados seres humanos em sentido integral, tratar-se-ia nessa seleção de uma tragédia humana de gigantescas e singulares proporções. Deveria ser deplorado verdadeiro “genocídio natural”, com diariamente milhares e milhares de vítimas. Enquanto não assegurado que o amontoado de células, ou seja, o zigoto, tenha condições de se tornar um ser humano, é impróprio conceder-lhe o status moral.[5]

Logo, por esta teoria, apenas a fixação do embrião no útero é que permitirá a programação genética suficiente para a sobrevivência e evolução do novo ser. Com isso, tornando possível o surgimento do ser humano, já que o corpo materno poderá geri-lo.

Por fim, temos a teoria da formação dos rudimentos do sistema nervoso central. Esta corrente utiliza, por analogia, a inversão do critério legal destinado para a determinação da morte como o meio pelo qual se conclui o marco preambular para o sinal de vida. Na nossa legislação vigente, a sucumbência de uma pessoa é declarada através da irreversível perda das suas funções cerebrais e, por conseguinte, o início da vida será a formação da placa neural. Em outras palavras, se a morte é determinada pelo fim das ondas cerebrais, a vida será iniciada pelas atividades inaugurais das mesmas. Outrossim, alega ser o surgimento da linha primitiva do sistema nervoso central o impulso para a constituição propriamente dita da vida humana, pois a situação torna o embrião, geneticamente, uma entidade individual[6].

Os estudos sobre o princípio da nossa série humana se exaurem na investigação do dado momento em que será seguro afirmar que uma vida teve origem, pois diversas serão as conseqüências. As descobertas científicas sobre o código genético próprio de uma única célula impulsionam os questionamentos acerca do moralismo inserido na proteção da pessoa.

Gustavo Monaco conclui que:

Essas formas de conceber o início da vida humana acarretam uma série incrível de conseqüências que vão desde a garantia ou não de direitos patrimoniais até a justificação de interrupção voluntária da gravidez que leva em conta essa proteção ao embrião, ao feto ou ao nascituro, impedindo que sua expectativa de vida seja retirada.[7]

Dessa maneira, percebe-se que, independendo da teoria utilizada, os fenômenos biológicos já estão solidificados e os valores morais agregados à vida, possibilitando a aquisição de direitos iguais aos daqueles que já nasceram e que transitam no universo civil. Todavia, estreitar em teses o evento remoto da criação de um novo homem ainda resta dividido em opiniões tendenciosas a cada área de conhecimento.

1.1.1         A Existência da Pessoa Natural

Em qualquer instituto jurídico deve-se tomar um ponto de partida, fundamental para a ordem e regulamentação de um direito. Para esse fim, o Direito Civil, baseado nas relações sociais (Ubi societas, ibi jus), estabeleceu o estudo das pessoas naturais. Pois, como dizia José Cretella Júnior, “o estudo do direito deve começar pelas pessoas, porque não é possível conhecê-lo sem conhecer estas últimas”[8].

O termo pessoa provém do latim persona, substantivo que determinava, na linguagem teatral da Roma antiga, as famosas máscaras de teatro e assim os próprios papéis sociais ou personagens por elas representados. Contudo, eram confundidas com a dicção do vocábulo personare, que significa propagar a voz, soar através de, ao passo que as máscaras possuíam um orifício que fazia ecoar e majorar o tom da fala dos atores, possibilitando uma qualidade sonora ao espetáculo. Porém, a verdadeira origem, talvez a mais remota, proveio do grego prósopon de onde projetou ao etrusco phersu. Ocorre que a evolução da palavra passou a designar o próprio indivíduo e, posteriormente, a comportar todos aqueles suscetíveis de direitos e obrigações nas mais diversas relações jurídicas.

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A idéia primitiva de pessoa coincidiu com a própria imagem do homem e, por conseguinte, com a acepção jurídica de sujeito de direito, uma vez que por razões biopsíquicas apenas a autonomia humana teria possibilidades para proclamar os complexos de direitos e deveres. Dessa forma, a tradicional doutrina revela a pessoa como um ente físico ou moral idôneo para gozar dos direitos subjetivos. Embora, seja corolário do direito o dever.

A ordem jurídica atual aceita duas espécies de pessoas: a pessoa natural e a pessoa jurídica. A primeira consiste na pessoa física, enquanto a segunda no agrupamento daquelas para o alcance de fins comuns.

A pessoa natural, sustentáculo do nosso estudo, é o termo formal para designar o próprio homem, como entidade física e singular percebida pelas leis da natureza. Para Gonçalves, essa nomenclatura revela “o ser humano tal como ele é, com todos os predicados que integrem a sua individualidade”[9]. O termo, ainda, tanto pode abranger o ser gerado por meio biológico, como por meio artificial, desde que reserve os genes humanos.

Todavia, em pensamento distinto, Heloísa Helena Barboza, baseando-se em Ferrara, estabelece que:

Pessoa é um conceito jurídico-formal, que não implica qualquer condição de corporalidade ou espiritualidade ao investido [...] O homem não por natureza, mas por força do reconhecimento do direito objetivo, é pessoa: não se tem um direito inato e primordial à personalidade.[10]

Ocorre que a determinação da pessoa natural é tão somente o condão para a individualização de uma criatura humana, a ponto de torná-la sujeito de direito. Com isso, o real intento da nomenclatura é transcender o homem a ponto de portá-lo a uma medida padrão adquirente de um rol de proteções dada pela normativa vigente. Portanto, não é de total absurdo confundir o homem com a própria determinação de pessoa natural, em virtude da presença de valores, como igualdade, por exemplo, agregados às atividades jurídicas direcionadas a todos os seres humanos, equiparando homem, pessoa e sujeito de direitos.

1.1.2        Teorias da Personalidade Civil do Homem

A personalidade civil constitui o vetor para se ter a aptidão de exercer direitos e contrair obrigações. Por essa razão, percebe-se sua umbilical ligação ao conceito de pessoa, pois como dita o art. 2° do novel Código Civil: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”[11]. Assim, nascendo um homem com vida, torna-se pessoa e, por conseguinte, adquire personalidade.

Sobre o tema, afirma Venosa que:

[...] ao conjunto de poderes conferidos ao ser humano para figurar nas relações jurídicas dá-se o nome de personalidade. A capacidade é elemento desse conceito; ela confere o limite da personalidade. Se a capacidade é plena, o indivíduo conjuga tanto a capacidade de direito como a capacidade de fato, mas sua capacidade de exercício está mitigada; nesse caso, a lei lhe restringe alguns ou todos os atos da vida civil. Quem não é plenamente capaz necessita de outra pessoa, isto é, de outra vontade que complete sua própria vontade no campo jurídico [...].[12]

Ademais, o início da personalidade diverge entre três teorias: a teoria natalista, a teoria concepcionista e a teoria pré-concepcionista.

A teoria natalista é adepta da tese de que o nascituro só adquire personalidade jurídica após o seu nascimento com vida, constatando que o feto trata-se de um mero expectador do direito, cuja esperança é possuir um ingresso na vida civil.

Sobre a mesma, comenta Caio Mário da Silva Pereira:

O nascituro não é ainda pessoa, não é um ser dotado de personalidade jurídica. Os direitos que se lhe reconhecem permanecem em estado potencial. Se nasce e adquire personalidade, integram-se na sua trilogia essencial, sujeito, objeto e relação jurídica; mas, se se frustra, o direito não chega a constituir-se, e não há falar, portanto, em reconhecimento de personalidade ao nascituro, nem se admitir que antes do nascimento já ele é sujeito de direito.[13]

A personalidade é conferida, portanto, ao indivíduo que se desprende das vísceras maternas e absorve o oxigênio, mesmo que posteriormente venha a sucumbir, pois o evento é suficiente para a aquisição dos direitos efetivos. Sustenta essa corrente que tal presunção vital, em casos de morte no parto, verifica-se através do exame de Docimasia Hidrostática de Galeno, onde há uma averiguação no neonato para saber se o mesmo chegou a respirar durante algum instante do parto. Este estudo é uma medida pericial, de natureza médico-legal, aplicada com a finalidade de verificar se uma criança nasceu viva ou morta, através da densidade pulmonar sobre a água, pela qual, se respirar, a densidade será menor e flutuará[14].

No tangente à teoria concepcionista, uma corrente mais moderna, o ato da concepção é uma realidade científica que, por sua vez, comprova um sinal de vida, cuja negação de seu direito propriamente dito restringe a defesa do nascituro ao auferi-lo suspensividade, posto que não sendo a tutela do já concebido um direito subjetivo, se morto nascer o feto, não existirá aquisição de direitos. Fato este, inaceitável para uma teoria que já defende o embrião como pessoa, não importando a fase de maturação no qual se encontra.

Para Stela Barbas inexiste diferença qualitativa entre a vida nascida e a não nascida, e de que uma criança antes do parto ainda não seria um ser humano. Desde a concepção há vida, existência humana que não pode ser prejudicada por se encontrar no útero materno ou porque foi fertilizado in vitro[15].

Ainda, sustenta Rodolfo Pamplona, juntamente com Ana Thereza Meirelles:

A doutrina concepcionista tem como base o fato de que, ao se proteger legalmente os direitos do nascituro, o ordenamento já o considera pessoa, na medida em que, segundo a sistematização do direito privado, somente pessoas são consideradas sujeitos de direito, e, conseqüentemente, possuem personalidade jurídica [...] Dessa forma, não há que se falar em expectativa de direitos para o nascituro, pois estes não estão condicionados ao nascimento com vida, existem independentemente dele.[16]

A teoria pré-concepcionista já discorre de maneira mais inovadora, de forma a remeter suas fundamentações aos atuais reflexos tecnológicos da nossa sociedade. Assim, baseia-se nas evoluções reprodutivas, como, por exemplo, as fecundações in vitro, cujo procedimento laboratorial promove a fecundação entre óvulo e espermatozóide, sob condições estéreis. Para esta teoria, é bastante o sucesso da fecundação para que já exista o novo ser, mesmo que ainda não esteja no ventre materno.

Se bem observado, dentre as teses, a teoria natalista garante uma maior compatibilidade com a escolha do legislador civil de 2002, de um modo que o nascituro só será agraciado com a personalidade civil ao vir ao mundo, através do nascimento com vida. Visto, portanto, que a respiração do ser gerado será a prova para seu marco civil. Contudo, a nossa normativa amplia essa subjetividade de direitos a uma capacidade de exercício, situação esta restritiva à criança. Dessa forma, valerá seu direito por via de representação legal.

1.2 NATUREZA JURÍDICA DO NASCITURO

Para o desenvolvimento desse estudo é necessário que façamos uma breve definição do que seja o nascituro. Numa forma simplificada, este se refere ao ser humano já concebido, mas que ainda não nasceu. Dessa forma, é o ente já gerado e existente no ventre materno, que, embora vivo, ainda não se tornou pessoa, pois, para tanto, terá que passar pelo acontecimento futuro e certo do seu nascimento.

Na definição de Sílvio Rodrigues:

Nascituro é o ser já concebido, mas que ainda se encontra no ventre materno. A lei não lhe concede personalidade, a qual só lhe será conferida se nascer com vida. Mas como provavelmente nascerá com vida, o ordenamento jurídico desde logo preserva seus interesses futuros, tomando medidas para salvaguardar os direitos que com muita probabilidade serão seus.[17]

Embora a dádiva do marco inicial da personalidade civil não tenha alcançado o nascituro, este, ainda assim, recolhe vestígios dessa titularidade de direitos, pois sua natureza humana promove, desde a sua concepção, o direito à vida, à integridade e à dignidade.

O art.2° do vigente Código Civil apesar de resguardar os direitos do nascituro, preserva uma lacuna no que concerne à tutela jurídica do mesmo, de forma a promover um encargo residual para as outras fontes do direito lidarem com tal exposição.

A doutrina, por sua vez, mesmo que dividida nas teorias da personalidade, confirma a essência humana e frágil do nascituro. Nesse sentido, corrobora Maria Helena Diniz:

[...] se não se pode recusar humanidade ao bárbaro, ao ser humano em coma profundo, com maior razão o embrião e ao nascituro. A vida humana é um bem anterior ao direito, que a ordem jurídica deve respeitar. O direito ao respeito da vida não é um direito à vida. Esta não é uma concessão do jurídico-estatal, nem tampouco um direito de uma pessoa sobre si mesma. Logo, não há como admitir a licitude de um ato que ceife a vida humana, mesmo sob o consenso de seu titular, porque este não vive somente para si, uma vez que deve cumprir sua missão na sociedade e atingir seu aperfeiçoamento pessoal.[18]

Enquanto criatura humana indefesa, o nascituro permite ser alvo do princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que da sua natureza se extrai a característica inicial de ser homem. À luz desse dogma, observamos que para o desenvolvimento do ser humano é imprescindível que haja um mínimo existencial. Assim, toma-se o homem como um fim em si mesmo, negando-o como meio para a realização de objetivos que ultrapassem a moralidade da sua figura. “A grosso modo”, é injustificável qualquer relativização à dignidade da pessoa humana, como bem pontifica Clayton Reis ao revelar que:

É inadmissível conceber ordenamento jurídico que não adote como norma fundamental o princípio da dignidade da pessoa humana. Afinal, toda ordem normativa é destinada à organização da vida social, com o propósito de assegurar aos seus cidadãos uma vida pautada por respeito aos valores de seus semelhantes.[19]

É nesse diapasão, que encontramos no Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil em 1992, um instrumento de reiteração ao princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez tratar-se de um defensor dos direitos humanos.

Tomando o direito como ordenamento social estruturado pela hierarquia de normas, cuja segurança jurídica encontra-se fundamentada a partir da disposição de uma ordem de elementos normativos solidários, baseados numa sequência de superioridade, temos no Brasil a Constituição Federal ocupando o espaço da supremacia legal, no qual os tratados internacionais submetem-na, através de uma coerência legislativa, e desde que ratificados, colocam-se numa segunda posição na então imaterial pirâmide hierárquica. Com isso, expõe as leis complementares e as leis ordinárias a um terceiro plano de subordinação.

Desse modo, retomando ao suntuoso pacto, elevado ao ponto de uma norma supralegal, encontramos um dos maiores defensores dos valores humanos. Assim, o Pacto de São José da Costa Rica, ou, como melhor intitulado, Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, tem o propósito de consolidar um regime de liberdade pessoal e justiça social, oferecendo ao direito interno dos Estados americanos normas basilares para a proteção absoluta dos direitos humanos essenciais. Reintegra, portanto, todos os valores inerentes à pessoa humana já consagrados internacionalmente, fomentando o ideal de ser humano livre e capaz de gozar de seus direitos.

No capítulo denominado “direitos civis e políticos” da convenção supramencionada, encontramos o art. 4° referente ao direito à vida, onde determina que “Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. Dessa forma, identificamos que a convenção optou pela teoria concepcionista da personalidade civil do homem.

Tal como o pacto, o ordenamento jurídico brasileiro também acolheu a doutrina concepcionista, tendo em vista a inclusão tácita nos direitos fundamentais presentes na Carta Magna, onde tutela o ser humano em sua generalidade.

De igual forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente também se torna adepto da teoria quando no título referente aos direitos fundamentais menciona em seu art.7° que “A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”[20].

A condição jurídica do nascituro, desmistificada dos requisitos de um direito antigo defensor da viabilidade do novo ser, é, em sua maioria, tutelada pela notoriedade da sua existência, devido as diversas evoluções científicas sobre a fácil constatação da presença da sua vida em um útero materno, bastando, apenas, que se recorra à Constituição Federal, aos tratados internacionais e ao ECA como forma de garantir o seu direito à vida, à segurança e à saúde; enfim, soluções que empreguem condições basilares para o seu desenvolvimento e formação de pessoa, onde a partir de então possibilitará a aptidão de recepcionar a personalidade jurídica.

O nosso panorama legislativo, portanto, permite ao nascituro um apoio ao que tange os seus interesses, porém não é o bastante a proteção do direito à vida, pois eles transcendem esse bem, como os direitos patrimoniais, por exemplo, que também podem ser incorporados aos direitos do nascituro, daí surgir a possibilidade do mesmo ser figura de uma sucessão.

Nesse tema, particularmente, compreendemos porque o Código Civil filia-se a teoria natalista, pois a essência absoluta do princípio da proteção ao nascituro, no tocante a sua esfera humana, já é satisfatória e concebida por diversos espaços legais, sendo, pois, indiscutível. Todavia, na esfera patrimonial e da segurança jurídica, faz-se necessário aguardar o nascimento. É nesse raciocínio que proclama Silmara Chinelato:

[...] apenas certos efeitos de certos direitos dependem do nascimento com vida, notadamente os direitos patrimoniais materiais, como a doação e a herança. Nesses casos, o nascimento com vida é negócio jurídico que diz respeito à sua eficácia total, aperfeiçoando-a.[21]

Então mesmo o nascituro tendo grandes chances de sobreviver após o parto, ainda há a possibilidade de o inverso ocorrer, causando males para a consolidação e efetividade de uma decisão patrimonial favorável ao mesmo, por isso nas relações civis o seu status é de suspensividade, necessitando a corporificação da titularidade do direito.

1.3  EVOLUÇÃO CONTROVERTIDA DO NASCITURO NO TEMPO

1.3.1 Aspectos Religiosos

Ao atentarmos para os primórdios do Direito verificamos uma aliança consolidada entre este, a religião e a moral. Os princípios basilares do alcance do bem comum e da organização social proporcionaram à ordem jurídica a feitura de uma normativa ética com influências religiosas. A lei, lato sensu, firmava-se em conformidade com a crença no divino na medida em que os povos se desenvolviam.

Consoante esclarece Fustel de Coulanges:

Observai as instituições dos antigos sem atentar para as suas crenças religiosas e julgá-las-eis obscuras, extravagantes, inexplicáveis [...] Mas se ao lado destas instituições e destas leis colocarmos as suas crenças, os fatos tornar-se-ão mais claros e sua explicação mais evidente por si mesma. Se, remontando às primeiras idades desta raça, isto é, à época em que este povo fixou suas instituições, observarmos a idéia então concebida da criatura humana, da vida, da morte, da segunda existência, do princípio divino, perceberemos uma íntima relação entre estas opiniões e as antigas regras do direito privado, entre os ritos que se originaram dessas crenças e as instituições políticas.[22]

Ocorre que no passar dos tempos os ordenamentos jurídicos permaneceram a acolher o consentimento dado pela religião, mesmo com a admissão da vontade humana e da figura coercitiva do Estado. Por essa razão, achamos, por bem, relevarmos a temática, principalmente por extrairmos do Direito Brasileiro alguns vestígios do Direito Canônico.

No Brasil, a Constituição Federal consagra como um dos direitos fundamentais a liberdade religiosa, pois declara em seu art. 5°, inciso VI, que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e suas liturgias”[23].

O fato de o Brasil declarar-se um Estado laico, ao desvincular sua imagem a uma única religião oficial, não retira da legislação algumas referências do cristianismo, nem as tornam inconstitucionais. Na verdade, a intenção da liberdade religiosa é possibilitar a cada indivíduo o direito de escolha no pluralismo religioso e no contato com os princípios éticos e morais, pautados na benevolência.

No tocante ao nascituro e a Igreja Católica encontramos a permanente defesa à vida intra-uterina. O feto é considerado uma verdadeira pessoa, apesar de incompleta. Nessa perspectiva, o Compêndio do Vaticano, sob o título “A harmonização do Amor Conjugal com o Respeito à Vida Humana”, declara que:

Deus, com efeito, que é o Senhor da vida, confiou aos homens o nobre encargo de preservar a vida, para ser exercido de maneira condigna pelo homem. Por isso, a vida deve ser protegida com o máximo de cuidado, desde a concepção.[24]

A tutela ao nascituro é exposta, igualmente, no Velho Testamento, em Êxodo 21: 22, quando afirma:

22 Se alguns homens brigarem, e um ferir uma mulher grávida, e for causa de que aborte, não resultando, porém, outro dano, este certamente será multado, conforme o que lhe impuser o marido da mulher, e pagará segundo o arbítrio dos juízes.[25]

Ainda, revela Pe. Mário Marcelo, ao citar alguns documentos da Igreja Católica, como o Catecismo n° 2270, que:

A vida humana deve ser respeitada e protegida de maneira absoluta a partir do momento da concepção. Desde o primeiro momento da sua existência, o ser humano deve ver reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo ser inocente à vida.[26]

O dogma católico eleva o feto a um patamar de imediata tutela, consagrando um dos alicerces da religião cristã, qual seja a da compreensão de que o homem é a imagem e semelhança de Deus, sendo, pois, inconcebível qualquer atentado à vida humana, inclusive a do nascituro. Faz parte, portanto, do consenso moral secular proteger o feto, posto que nele já existe o bem maior da vida, transcendendo qualquer vaidade científica ou pessoal. 

1.3.2  O Nascituro no Direito Romano

Na época do fogo sagrado, o nascituro (do latim nasciturus) não era considerado pessoa humana, uma vez que nada mais se tratava do que parte das vísceras maternas. Com isso, considerando-o unicamente como parte do corpo de uma mulher gestante, sua personalidade jurídica coincidiria com o fato de ter nascido com vida. Todavia, existia uma condição vacilante agregada a essa personalidade, pois o intento da legislação romana era atingir somente as crianças nascidas com forma humana, de uma maneira tal, que, embora proveniente de um nascimento perfeito, se deformadas fossem seriam rejeitadas pelo direito, uma vez que eram evidenciadas como um monstrum.

Sobre o tema, revela Severino Augusto que:

A lei não os reconhecia, porquanto os antigos entendiam que, embora nascidos de mulher, aqueles que apresentassem conformação ou semelhança de animal não eram frutos dos relacionamentos dos humanos.[27]

Ademais, também não constituía pessoa o feto filho de escravo, posto que este, na Roma antiga, era equiparado à coisa, servus est res.

O nascimento perfeito, então, era o único meio efetivo para a obtenção de direitos. Portanto, exigia-se o total desprendimento do feto no ventre materno, pois, caso contrário, permaneceria como continuidade do corpo da mulher. Nota-se, com isso, que negavam ao nascituro o seu patamar de homem, de forma a considerarem que lhe faltava, ainda, a in rerum natura.  

Contudo, o repúdio à condição natural de homem ao nascituro não impedira um intento favorável ao mesmo, pois são reputados como nascidos ao que tangem os seus interesses futuros. Assim, deve-se equiparar o que está no útero com o que está entre as coisas humanas nos aspectos que questionarem as próprias vantagens. Nesse sentido, proclamava o brocardo nasciturus pro iam nato habetur quoties de eius commodis agitur, isto é, o nascituro é tido como nascido no que se refere aos seus interesses, os quais os direitos que lhe são assegurados retroagiriam até o momento de sua concepção. Havia, portanto, um estado em potencial, onde pressupostos deveriam ser satisfeitos para que os interesses do feto estivessem presentes desde o seu conhecimento em ventre materno. Tal princípio, por óbvio, se sustenta sob uma égide suspensiva, uma vez que nascido morto não haverá interesses, direitos e, sobretudo, existência. Com isso, aguardava o ser em desenvolvimento a ventura da sua vinda ao mundo, posto que a eficácia da retroação ficaria subordinada a esse acontecimento. Mister, portanto, que se tutelasse os direitos que futuramente sê-lo-iam percebidos.

Nesse contexto, corrobora Álvarez Suarez[28]:

El concebido, pero áun no nacido, es decir, según la terminologia usada por las fuentes, el conceptus, el que <<in utero est>>, el que <<nasci speratur>>, y también, en ocasiones, el postumus, no puede, em principio, ser titular de derechos, ni tampouco transmitirlos, pues el primer supuesto para poder predicar de um hombre, (persona) que posee capacidad jurídica, es que exista, y la existencia sólo se produce por el nacimiento. El concebido pero aún no nacido, no puede aún contarse entre los humanos (in rebus humanis), ni entre lãs cosas de la naturaleza (in rebus natura); al no hallarse desprendido del caustro materno, ni poseer autonomía respecto de su madre, constituye, según antes se dijo uma parte integrante de ésta (mulieres portio). Sin embargo, en el feto intrauterino se encierra uma esperanza de hombre, que en su día nacerá a la vida, y el derecho toma em consideracíon esta spes nascendi, contando con ella para asignarle determinados efectos.[29]

Retomando a consideração, analisamos que o nascituro no panorama das leis romanas era desconsiderado como entidade humana e independente, onde, a princípio, somente o nascimento seria capaz de configurá-lo como pessoa e sujeito de direito. Todavia, não resta contraditória a suspensividade dada pela legislação, quando determina assegurar retroatividade aos direitos do nascituro até o instante da sua concepção, pois se busca negar sua unidade ao corpo da genitora quando ao der à luz é percebido um ser humano, tornando apto a computar desde a época da gestação os direitos percebidos por sua natureza. Dessa forma, condiciona-se ao nascimento toda a possibilidade de retroceder à data da concepção, desde que o nascimento traga um ente capaz de direito, ou seja, não escravo, perfeito e viável. O efeito vacilante dá-se, portanto, apenas em razão do desconhecimento da forma humana nas entranhas de uma mulher grávida, sendo inconcebível imaginar ter dentro de alguém outrem similar, justificando, assim, a teoria natalista implícita no Direito Romano.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OLIVEIRA, Giovana Deininger. Vocação hereditária do nascituro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3768, 25 out. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/25613. Acesso em: 26 abr. 2024.

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