Introdução:
A venda sobre documentos está regulamentada no Código Civil brasileiro pelos arts. 529 e ss. e no Código Civil português pelos arts. 937 e 938.
No Brasil, a venda sobre documentos surgiu no direito civil, pela primeira vez, no atual Código Civil de 2002. O Código Comercial de 1850, todavia, disciplinava essa modalidade de venda mercantil, embora de maneira sutil.
De acordo com NIEMEYER[i], o art. 199 do Código Comercial dispunha que a tradição da coisa vendida poderia operar-se pela entrega real ou simbólica, ou pelo título.
O instituto da venda sobre documentos é definido pela lei lusa da seguinte maneira no artigo 937 do seu diploma civil: “a entrega da coisa é substituída pela entrega do seu título representativo”.
E do mesmo modo pela lei italiana:
Art. 1527. Na venda sobre documentos, o vendedor se libera da obrigação de entrega remetendo ao comprador o título representativo do bem e demais documentos previstos no contrato, ou, na falta deste, dos usos.[ii]
Já a lei brasileira determina, no art. 529 do Código Civil brasileiro, que a “tradição da coisa é substituída pela entrega do seu título representativo e dos outros documentos exigidos pelo contrato ou, no silêncio deste, pelos usos”.
A doutrina, em geral, é una sobre o tema. Por todos, MARTINEZ[iii] informa que “a particularidade desta compra e venda reside no fato de a entrega da coisa, que é um dos efeitos do contrato de compra e venda, ser substituída pela entrega do seu título representativo. Deste modo, o vendedor, em vez de proceder à tradição da coisa, entrega o título que representa a titularidade do direito sobre essa mesma coisa”.
Conceito:
Não se pode confundir a entrega de documentos relativos ao bem na compra e venda comum com a cláusula especial da compra e venda sobre documentos. Na primeira, o vendedor deve entregar todos os documentos relativos ao bem, já nesta, além do vendedor entregar essa documentação, deverá entregar o documento representativo da coisa, ou seja, o documento capaz de individuar o bem e que assegure a propriedade ao detentor.
MENEZES LEITÃO[iv] reforça essa diferença entre a venda sobre documentos e a compra e venda comum: “no âmbito normal da obrigação de entrega da coisa, inclui a entrega dos documentos relativos à coisa ou direito. Na venda sobre documentos, esses representam mercadorias. O vendedor não entrega os bens em si, entrega somente os documentos”.
É possível perceber a semelhança dos institutos nos dois países. A única diferença está na substituição do objeto direto utilizado. Em Portugal a venda sobre documentos substitui a entrega da coisa, enquanto no Brasil substitui a tradição da coisa.
Embora a substituição pareça insignificante, ela reflete o sistema jurídico distinto utilizado pelos dois países. Em Portugal diz-se substituir a entrega da coisa, pois já houve a transferência da propriedade como efeito imediato da compra e venda. No Brasil, diz-se que substitui a tradição já que a compra e venda gera uma obrigação de entrega que somente se aperfeiçoa com a tradição da coisa para transferir o domínio.
Deste modo, a venda sobre documentos no Brasil é uma exceção ao sistema da compra e venda ordinária, visto que não é necessária entrega da coisa, unicamente a entrega do título representativo.
Nessa mesma linha esclarece NIEMEYER[v] que na compra e venda pura, o vendedor obriga-se a fazer a entrega efetiva da coisa, na venda sobre documentos essa obrigação reduz-se à entrega do título que a represente.
O título representativo deverá ser inequívoco, ou seja, não deixar margens para dúvidas acerca da transferência de propriedade nem sobre o bem objeto da compra e venda, uma vez que a transação se refere aos bens e não aos documentos per si. Nas palavras de NIEMEYER: “Exige, pois, título idôneo a atribuir ao seu possuidor não apenas um direito de crédito, mas a propriedade plena da coisa.”
Na legislação brasileira, essa regulamentação é mais minuciosa. Trata, por exemplo, o pagamento deve ser efetuado na data e lugar da entrega dos documentos caso não tenha sido objeto da convenção pelas partes:
A utilidade desse preceito poderia estar em uma possível dificuldade das partes perceberem a profundidade da venda sobre documentos. O direito brasileiro segue a tradição romana[vi] da compra e venda como mera obrigação de transferência da coisa, os efeitos reais só são gerados com a tradição, ou seja, com a efetiva entrega da coisa.
Como na venda sobre documentos, não existe a tradição dos bens, poderia haver conflito caso o comprador desejasse pagar somente ao receber os bens e não no momento da entrega do documento. Assim, no silêncio da convenção entre as partes, seria útil o art. 530 supramencionado.
O direito português, por sua vez, não possui norma especial equivalente. Poderíamos explicar tal fato pelo efeito real que o contrato de compra e venda possui. O fato da desnecessidade da tradição da coisa para a transferência da propriedade está tão arraigado à lógica jurídica que uma norma nesse sentido pareceria despicienda.
Venda de bens imóveis:
O conceito do instituto em análise não menciona a qualificação dos bens quanto à mobilidade. Não dispõe sobre a possibilidade de se realizar a venda sobre documentos tendo como objeto, além dos bens móveis, os imóveis.
Tendo em vista a finalidade da compra e venda em seus primórdios, como alternativa que contribuía para a livre circulação dos bens, que oferecia a agilidade exigida nas relações mercantis, devemos considerar pela impossibilidade em se utilizar a cláusula para vendas de imóveis.
Frise-se o fato da venda sobre documentos ter “por pressuposto que a coisa esteja sob a detenção de outrem (transportador, depositário etc.), que a detém em nome do dono, assim entendido aquele que possui o título representativo da própria coisa.”[vii]
Esse posicionamento é o acolhido pelo Código Civil italiano de 1942, ao tratar do instituto em capítulo destinado aos bens móveis[viii].
Não basta, contudo, ser móvel para ser objeto da compra e venda sobre documento, o bem deverá ser infungível ou, caso fungível, seja possível de ser representado por documento, ou seja, possa ser identificado e individuado pela sua quantidade e gênero. Nas palavras de NIEMEYER: “quando o documento não é capaz de individuar a coisa, ou não pode ser entregue ao comprador porque referente a várias coisas dentre as quais figura aquela que foi objeto da venda, também haverá irregularidade”.
Aspectos específicos:
O vendedor terá responsabilidade pelos vícios redibitórios e os riscos correm para ele até a entrega do documento, estando a coisa em depósito por terceiro ou em transporte. Somente após a entrega do documento, e não do bem, o risco passa ao comprador.
Caso haja garantia, o prazo de início será a efetiva entrega do bem e não a entrega do documento. Se, porventura, o comprador não atender ao prazo convencionado para buscar o bem, a garantia começará no último dia desse prazo.
Se houver perda do bem, deveremos identificar o efetivo momento do dano. Se o bem nunca existiu ou a avaria se deu em momento anterior ao da entrega do título, “evidencia-se hipótese de contrato nulo por falta do objeto. Nulo também serão os títulos representativos de coisa inexistente ou que veio a perecer após a emissão e antes de concluído o contrato.”[ix].
Niemeyer explica que nesses casos se verifica ofensa à boa-fé, já que o vendedor saberia, ou deveria saber, do perecimento da coisa se houvesse agido com diligência. Assim, ele seria responsável pelo ressarcimento das perdas e danos do comprador.
No caso do dano ter ocorrido após a entrega do documento, quem responderia seria o detentor da coisa ou o transportador. A indenização é devida ao comprador, visto que já houvera a transferência de domínio.
O Código Civil português apresenta que “se o contrato tiver por objeto coisa em viagem e, mencionada esta circunstância, figurar entre os documentos entregues a apólice de seguro contra os riscos do transporte” o “preço deve ser pago, ainda que a coisa já não existisse quando o contrato foi celebrado ou por se haver perdido casualmente depois de ter sido entregue ao transportador”. E decreta que “o contrato não é anulável com fundamento em defeitos da coisa, produzidos casualmente após o momento da entrega”, permanecendo o risco com o comprador desde a data da compra.
As exceções, para esse regime, são duas. A primeira é quando o vendedor já saiba da perda ou deterioração da coisa na data de compactuação do contrato e mesmo assim não revele ao comprador[x], a segunda é que no caso de seguro parcial, o regime protege somente em relação à parte segurada.
Os artigos mencionados protegem a boa-fé do vendedor e asseguram ao comprador a indenização pela perda do bem, já que a lei o coloca como beneficiário do sinistro ocorrido no transporte.
Sobre a tradição, podemos dizer que ela é documental e não simbólica, apesar de ambas serem uma ficção jurídica. O comprador é parte legítima para intentar ação real contra detentores da coisa.
A conclusão que podemos chegar é que no Brasil, essa cláusula tem grande importância mercantil e civil, uma vez que permite substituir a obrigação de tradição da coisa pela de entrega dos documentos, tornando a economia mais célere e menos burocrática, além de permitir todas as garantias da compra e venda comum.
Portugal, por sua vez, adota um sistema jurídico diferente. A compra e venda se dá nos moldes do sistema francês, onde o contrato, por si, transfere a propriedade, não sendo necessária a tradição, contrariando a opção romana clássica.
Se o contrato transfere o bem, para que fazer uso da cláusula especial? Perceba que no Brasil a compra e venda sobre documentos transfere o domínio, além de dar o bem como entregue. Em Portugal, o contrato já transferiu o domínio, restando apenas o efeito secundário: dar a coisa como entregue.
Notas:
[i] NIEMEYER, Sérgio. Da venda sobre documentos no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 489, 8 nov.
[ii] Tradução livre: Art. 1527: Nella vendita su documenti, il venditore si libera dall'obbligo della consegna rimettendo al compratore il titolo rappresentativo della merce (1996) e gli altri documenti stabiliti dal contratto o, in mancanza, dagli usi.
[iii] MARTINEZ, Pedro Romano. Direito das Obrigações, parte especial: contratos – compra e venda, locação, empreitada. 2ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2001, p. 97.
[iv] LEITÃO, Luis Manuel Teles de Menezes. Direito das Obrigações: Volume III – Contratos em especial. 7ª Ed. Coimbra: Editora Almedina, 2010, p. 91.
[v] NIEMEYER, Sérgio. Da venda sobre documentos no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 489, 8 nov.
[vi] Referimo-nos ao direito romano clássico e justinianeu.
[vii] NIEMEYER, Sérgio. Da venda sobre documentos no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 489, 8 nov.
[viii] § 4, da Seção II - Da venda de coisa móvel, do Capítulo I - Da venda, do Título III - Dos contratos singulares, do Livro Quarto - Das obrigações, arts. 1.527 a 1.530.
[ix] NIEMEYER, Sérgio. Da venda sobre documentos no novo Código Civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 489, 8 nov.
[x] O artigo 938 leciona que o vendedor não informa o dano ao bem de maneira dolosa.
Referências:
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