Na medida em que atual realidade social possibilita uma melhor qualidade de vida, certamente através do emprego dos avanços tecnológicos, suscita também novos tipos delituosos organizados, os quais apostam na impunidade para aniquilar a ordem e a segurança pública, maculando o Estado Democrático de Direito.
A sociedade brasileira vem enfrentando uma grande batalha contra a violência e a falta de segurança que assola todo o país. Os índices altíssimos de criminalidade e a pouca eficácia no seu combate fizeram com que o Direito Penal utilizasse muitos artifícios no combate à violência. Inspirado na ordem jurídica de outros países, como forma de fazer frente ao crime organizado, o Brasil passou a fazer uso do instituto da delação premiada, como política de auxílio à investigação e combate à criminalidade que apresenta conotações organizadas.
O termo delação advém do latim delatione e significa "denunciar, revelar crime; acusar como autor de crime ou delito". Premiar, por seu turno, é "recompensar; remunerar". Nesse instituto, o acusado é incitado pelo Estado a contribuir com as investigações, confessando a sua autoria e delatando seus comparsas com o fim de obter, ao final do processo, algumas vantagens na aplicação de sua pena ou até mesmo a extinção da punibilidade, beneficiando-se da sua própria perfídia, o que nitidamente remonta aos sistemas inquisitórios e, ainda, evidencia certo distanciamento dos princípios preconizados pelo atual Estado Democrático de Direito.
Note-se que a delação premiada está presente no ordenamento jurídico brasileiro desde as Ordenações Filipinas e vigorou até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830, tendo retornado com a edição de leis esparsas, sob o emolumento de ser parte integrante da atual política criminal ministrada pelo Estado na busca de um sistema penal eficaz frente à delinquência organizada, visto que seu escopo principal é o de trocar o direito de punir do Estado pela proteção um bem jurídico mais importante, colocado em risco pela própria ineficiência do Estado na execução de suas atividades essenciais e políticas públicas.
Conforme dito anteriormente, inspirado por ordenamentos jurídicos de outros países e, visando combater o crime organizado, nosso país reintroduziu o uso do instituto da delação premiada[1], como importante mecanismo de investigação e combate à criminalidade que apresenta conotações organizadas. Observa-se que referido instituto encontra previsão normativa na Lei dos Crimes Hediondos (Lei n. 8.072/90, art. 8º, parágrafo único), Lei de Crimes Contra a Ordem Tributária, Econômica e Contra as Relações de Consumo (Lei nº 8.137/90, art.16, parágrafo único), Lei do Crime Organizado (Lei n. 9.034/95, art. 6º), Crime de extorsão mediante seqüestro (artigo 159, §4º, do CP), Lei de Lavagem de Capitais (Lei n. 9.613/98, art. 1º e 5º), Lei Antitóxicos (Lei n. 11.343/2006, art. 41), em que a delação é premiada com redução da pena de um a dois terços, bem como pela Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas (Lei n. 9.807/99, art. 13 e 14), que premia os delatores com o perdão judicial e a redução de pena de um a dois terços. Além da atenuante genérica já inserta no artigo 65, inciso II, alínea b, do CP e da Lei nº 10.149/00, curiosamente intitulada de acordo de leniência. Diante dessas informações podemos concluir que não existe um regramento único e coerente sobre a questão, que facilite sua aplicação e compreensão pelos operadores, mas que é evidente que a delação premiada vem se infiltrando cada vez mais em nossa legislação.
A inserção do presente instituto nas legislações supracitadas demonstra a preocupação do legislador em punir todos aqueles que camuflam suas condutas por meio de seus subordinados, valendo-se de sua condição financeira, de seu status social e político, e que na maioria das vezes permeiam o caminho da impunidade.
A delação premiada pode ser traduzida na instigação estatal ao acusado a colaborar com as investigações criminais em andamento, confessando a sua autoria e delatando seus comparsas com o objetivo de obter, ao final do processo, certas benesses no momento da aplicação de sua pena ou até mesmo a extinção da punibilidade.
Nesse ínterim, ressalte-se a definição cunhada pelo professor Damásio de Jesus:
“A delação é a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito, investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato). ‘Delação premiada’ configura aquela incentivada pelo legislador, que premia o delator, concedendo-lhe benefícios (redução de pena, perdão judicial, aplicação de regime penitenciário brando etc.) [2]”.
É certo que a aplicação do direito criminal do instituto em discussão vem sendo severamente criticada do ponto de vista moral. Historicamente, traidores são sempre abominados pela sociedade, pois quando a lealdade é rompida por um ato de delação, essa atitude é radicalmente rechaçada pela sociedade, e tal rejeição alcança tanta magnitude que coloca o delator em uma posição de estranho a qualquer grupamento humano. A importância da confiança transcende a esfera das relações privadas e atinge todo o corpo social, inserindo-se no âmbito do interesse público, ao passo que o estímulo a traição é tido como comportamento intolerante para os padrões morais modernos, seja para homens de bem como para vis criminosos. Resta, por óbvio que o estímulo a traição pode ser útil, mas é intolerável nos parâmetros atuais.
Sob o aspecto jurídico, punir de forma diversa pessoas que praticaram o mesmo fato e com mesmo grau de culpabilidade infringe o princípio da proporcionalidade da pena. Como senão bastasse, sua aplicabilidade também é questionável na medida em que dificilmente um criminoso em sã consciência trairia seus companheiros, ciente da "justiça" que impera no submundo. Ademais, a eficácia do instituto fica atrelada a vantagem oferecida ao delator e a importância de sua colaboração nas investigações.
Saliente-se, ainda, a opinião de Zaffaroni de que “o Estado está se valendo da cooperação de um delinqüente, comprada ao preço de sua impunidade para “fazer justiça”, o que o direito penal liberal repugna desde os tempos de Beccaria[3]”.
Sob a justificativa de facilitar a persecução penal, não é admissível que o Estado renuncie ao seu direito-dever de punir em favor de um criminoso, o que seria equivalente a admitir a falência de seu próprio sistema penal. Isto porque, em primeiro lugar, é inquestionável que a delação se constitui em primazia, de uma forma ou de outra, em traição de pares, ou seja, um ato antiético. Mesmo que se trate dos mais vis criminosos, o incentivo de prática amoral para colheita probatória jamais poderia concretizar-se oficialmente pelo Estado, que deve, ao contrário, redobrar seus esforços para combater a criminalidade, e não, a todo o tempo, negociar com qualquer pessoa que esteja disposta a se “salvar” da sanção penal firmando com a Justiça um verdadeiro “pacto sombrio”.
Afinal, “o Estado, visando privilegiar um direito penal mínimo e garantista, preservando as garantias individuais postas na Constituição Federal, não pode incentivar, premiar condutas que ofendam a ética, ainda que ao final a sociedade se beneficie dessa violação. Em outras palavras, num Estado que proclame pelos ideais da democracia, os fins jamais poderão justificar os meios, mas justamente são estes que emprestam legitimidade àqueles [4]”.
Da mesma, Rômulo de Andrade Moreira afirma que, “[...] é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais que isso incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de se obter um prêmio ou um favor jurídico. [...] Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último reduto de seu povo, [...] é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento à transgressões de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.” Continua, ainda, afirmando que “a traição demonstra fraqueza de caráter, como denota fraqueza o legislador que dela abre mão para proteger seus cidadãos [5]”.
De outra banda, em que pese o instituto da delação premiada ser imensamente repelido por parte da doutrina, é fato que sua regulada, correta e legítima aplicação traz inúmeras vantagens à sociedade por ser traduzir em uma forma eficiente de combate à criminalidade organizada. Na realidade, o Estado deve utilizar a suposta ética do mundo do crime para coibir a desastrosa criminalidade.
Com efeito, apesar de se estarmos inseridos em um Estado Democrático de Direito, que supervaloriza direitos e garantias individuais, é consabido que tal Estado se revela como um verdadeiro Estado Social, cuja principal função primordial é promover o bem comum. Pois bem, o Estado, ao adotar a delação, acaba por optar pelo bem estar social, justificando o direito premial como obrigação do sujeito, pois ao delatar a ação criminosa e levar à punição dos criminosos, estará colaborando para o bem comum, minimizando a ignominiosa impunidade das organizações criminosas e atingindo criminosos que provavelmente escapariam à punição, geralmente por serem detentores de elevado poder aquisitivo. Insta-se que a delação fortifica o jus puniendi do Estado, diante da lesão ou ameaça de lesão dos bens jurídicos mais importantes. Se por um lado, o Estado concede um prêmio ao delator, por outro alcança provas que seguramente não seriam obtidas por outros meios de investigação, minando a arquitetura associativa dos grupos criminosos e, ainda, punindoe todos os transgressores, cominando-lhe as penas devidas.
Ao que tudo indica, e disso não há como fugir, a delação premiada está intrinsecamente atrelada à política criminal brasileira, mas, repita-se, em primazia, não deve ser aplicada de forma pura e concreta, mas sim adequada à realidade da criminalidade brasileira, com base nas experiências bem-sucedidas de países como Estados Unidos e Itália, ante os extraordinários benefícios que podem dela advir, perfazendo-se numa ferramenta promocional de segurança, eficiência e justiça.
De qualquer maneira, deve-se reconhecer que, para que possa ser plenamente utilizada, é fundamental, ainda, que se garanta a própria segurança do delator, já que, pela sua estrutura, em regra, as organizações criminosas conseguem, sem maiores obstáculos, eliminar os eventuais "traidores", na medida em que dificilmente um criminoso trairia seus companheiros, ciente da “justiça” que impera nas organizações criminosas.
O professor Luiz Flávio Gomes assevera que a justiça eficientista da pós-modernidade está direcionada ao norte da eficácia prática, do que aos padrões éticos, e esboça sua opinião sobre o futuro da deleção premiada em nosso ordenamento jurídico, aduzindo que:
“Aliás, esse futuro torna-se mais promissor na medida em que se agrava a falência da máquina investigativa do Estado… De qualquer maneira, não sendo possível eliminar radicalmente a delação, há uma série de cuidados e providências que devem cercá-la. [...]
É chegado o momento de se cuidar desse tema com atenção, pondo em pauta questões relevantes como: prêmios proporcionais, veracidade nas informações prestadas, exigência de checagem minuciosa dessa veracidade, eficácia prática da delação, segurança e proteção para o delator e, eventualmente, sua família, possibilidade da delação inclusive após a sentença de primeiro grau, aliás, até mesmo após o trânsito em julgado, envolvimento do Ministério Público e da Magistratura no acordo, transformação do instituto da delação em espécie de pleabargaining etc [6]".
Convém salientar que a delação premiada é instituto estimulante para desvendar crimes quando aplicada com a lucidez necessária, de forma a viabilizar a eficiência do Direito Penal, constituindo-se como ponto de partida e de chegada dos descaminhos da corrupção. Na realidade, o Estado deve melhor cercar-se de outros mecanismos a fim de cada vez menos valer-se da delação, mas enquanto esse panorama não é alcançado, o foco deve ser dirigido a um detalhamento do instituto, visando evitar o seu uso deturpado e banal para todo e qualquer tipo de situação para o simples conforto das investigações, mormente antes do esgotamento de outras possibilidades. Ao contrário, deve ser utilizada em casos excepcionais em que o delito provoque malefícios para a conjuntura social, haja vista que a falta de limites e parâmetros para aplicá-la dá margem para diversos tipos de interpretação, o que traz insegurança a todos os envolvidos no processo.
Dessa forma, tendo em vista o teor eticamente reprovável da delação premiada e a necessidade de se legitimar a consecução dos fins individuais e preservar a dignidade do potencial delator, resta que a aplicação do instituto deve ser relativizada e restringida apenas aos crimes mais graves, havendo certa ponderação acerca de sua utilização, para que não seja banalizada e rechaçada no âmbito jurídico brasileiro.
A guisa de conclusão, diante das particularidades apresentadas pelas organizações criminosas atuais, mister se faz uma reestruturação da dogmática penal com a criação de estratégias diferenciadas para a obtenção da prova, entre elas, a delação premiada, na busca da eficiência penal, a qual não deve ser utilizada para todo e qualquer tipo de crime, mas somente aqueles que atinjam bens jurídicos supraindividuais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAPTISTA, Bruno de Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/14848/a-inconstitucionalidade-da-delacao-premiada-no-brasil/4>. Acesso em: 14.02.2010.
CERQUEIRA, T. T. P. de P.. Delação Premiada. Revista Jurídica Consulex. 15 de setembro de 2005, Ano IX, nº 208, p. 25.
GIMENEZ, M. de F. Delação Premiada. Jus Navigandi, Teresina, ano 7, nº 61, jan/2003. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/3620>. Acesso em: 24.02 2010.
GOMES, Luiz Flávio. Corrupção Política e Delação Premiada. Disponível em: <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20050830151404903>. Acesso em 10.03.2011.
JESUS, D. E. de. Estágio Atual da "Delação Premiada" no Direito Penal Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 854, 04.11.2005. Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=716>. Acesso em: 27.02.2010.
KOBREN, J. C. P.. Apontamentos e Críticas à Delação Premiada no Direito Brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, nº 987, 15.03.2006. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8105/apontamentos-e-criticas-a-delacao-premiada-no-direito-brasileiro/4>. Acesso em: 27.02.2010.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Podivm.
RANGEL, P. Direito Processual Penal. 10ª ed. RJ: Lúmen Juris, 2005;
SANTOS, H. S. A Delação Premiada e sua (In) Compatibilidade com o Ordenamento Jurídico Pátrio. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, nº 1495, 05.08.2007. Disponível em: . Acesso em: 24.02.2010.
Notas
[1] A origem da “delação premiada” no Direito brasileiro remonta ao Livro V das Ordenações Filipinas, tendo vigorado de janeiro de 1603 até a entrada em vigor do Código Criminal de 1830, onde acabou por ser abandona por nosso ordenamento jurídico e, reaparecendo na atualidade.
[2] JESUS, Damásio de. Estágio atual da “delação premiada” no Direito Penal Brasileiro. Disponível em: <http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=716>. Acesso em 10.03.2011.
[3] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Crime Organizado: Uma categorização frustrada. In: Discursos Sediciosos; Crime, Direito e Sociedade. RJ: Relume-Dumará, 1999, p. 05.
[4] BAPTISTA, Bruno de Souza Martins. A inconstitucionalidade da delação premiada no Brasil. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/14848/a-inconstitucionalidade-da-delacao-premiada-no-brasil/4. Acesso em 14 de fevereiro de 2011.
[5] MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Podivm. p. 440/446.
[6] GOMES, Luiz Flávio. Corrupção Política e Delação Premiada. Disponível em: <http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20050830151404903>. Acesso em 10.03.2011.