Ao prefaciar o livro de Carlos Dorneles (DEUS É INOCENTE; a imprensa não), o jurista Fábio Konder Comparato afirmou que o
“... poder estatal depende das grandes empresas de comunicação para assentar sua legitimidade política junto à opinião pública, e essas empresas, por sua vez, dependem do Estado para a defesa do sistema capitalista, no qual elas se inserem como elemento-chave. A mútua dependência acaba por suscitar, naturalmente, um acordo, visando ao exercício conjunto do poder político, econômico e cultural sobre aquilo que é essencial para ambos os lados.”
As observações de Comparato ainda são aparentemente validas. Contudo, à medida que a Internet se expande e se torna popular, as grandes empresas de comunicação começaram a perder sua importância. A eleição de Dilma Rousseff é uma prova inequívoca disto, pois a imprensa apoiou seu oponente cobrindo de maneira ostensiva o julgamento do Mensalão petista antes e durante as eleições presidenciais de 2010.
Em razão de sua arquitetura aberta, a internet tende a descentralizar o poder antes concentrado nas mãos dos donos das empresas de comunicação. No Brasil o monopólio midiático é um fato. Também é fato que vários políticos são donos de jornais e de retransmissoras de rádio e televisão. O monopólio da internet, porém, não pode ser instrumentalizado em virtude de qualquer pessoa poder produzir e compartilhar propostas, idéias e programas políticos, transformando-se, assim, de consumidor a fonte de informação. Portanto, a internet pode realmente destruir o Estado tal como o mesmo se encontra estruturado desde o século XIX.
Na rede mundial de computadores qualquer um pode se transformar em produtor de conteúdos e encontrar patrocinadores. A notícia recusada por um jornal não deixa de ser compartilhada e de fomentar debate e discórdia democrática. O poder que os antigos editores dos jornais tinham de mutilar a realidade produzindo-a de maneira a atender aos interesses políticos de seus patrões deixou de existir. A censura estatal na internet é uma impossibilidade técnica e nem mesmo a onipresente NSA consegue penetrar com sucesso nos nichos criptografados onde o ativismo on line floresce anarquicamente.
A multiplicidade de fontes jornalísticas tende a reduzir o valor de cada uma delas. No passado, o custo de manutenção de um jornal ou revista tradicional era proibitivo, de maneira que só grandes empresas podiam se dedicar ao ramo da comunicação. Publicar uma revista ou de um blog na internet é tão barato que o mercado editorial mudou para sempre após seu advento. A era dos grandes jornais acabou. A Folha de São Paulo, por exemplo, não imprime e vende nos dias de hoje 10% dos jornais que imprimia e vendia na década de 1980.
O Estado terá que se reinventar ou será reinventado. A resistência política a reinvenção do Estado tem se esboçado de diversas maneiras. Nos EUA ela se transformou no pesadelo do controle total promovido pela espionagem massiva ilegal realizada com ajuda de Google, Facebook e Microsoft. Mas os dias de glória do Grande Irmão orwelliano NSA estão com os dias contados, pois a ONU já discute e tende a aprovar o Projeto de Resolução conjunta Brasil/Alemanha que jogará a NSA na ilegalidade.
Aqui no Brasil a velha censura de matiz totalitária foi retirada do armário. O Congresso Nacional aprovou uma reforma eleitoral através do qual se pretende controlar a liberdade de expressão na internet criminalizando-a http://legis.senado.leg.br/mateweb/arquivos/mate-pdf/141462.pdf . O ataque à CF/88 é evidente. Através do referido Projeto de Lei, os congressistas desejam instrumentalizar a preservação da concentração do poder político/midiático nas mãos daqueles que o detém. Se esta Lei Inconstitucional da Censura Virtual não for vetada por Dilma Rousseff o Poder Judiciário será certamente inundado por uma enxurrada de ações penais e civis inócuas que o farão ficar mais paralisado do que já está.
A liberdade constitucional garantida a todos os brasileiros é incompatível com o privilégio daqueles que pretendem deter com exclusividade o poder político/publicitário/simbólico/semiótico. À medida que a vida on line floresce o poder político tende a se desconcentrar, se reorganizar e se renovar mais rapidamente. Este fenômeno também está ocorrendo em razão do próprio Estado migrar para a internet, possibilitando ao cidadão comum exercitar e exigir direitos que poucos podiam exercitar e exigir no mundo analógico. O resultado é previsível. Os partidos políticos que não se ajustarem à nova realidade serão destruídos nas urnas sob o influxo da inexorável regra da horizontalidade imposta a todos aqueles que migram para o ciberespaço.
À medida que o Estado migrou para a internet, as informações públicas antes monopolizadas por uma casta de servidores/lobistas/políticos corruptos e mal encarados se tornaram realmente públicas. Elas podem ser acessadas, compartilhadas, discutidas e utilizadas por todos os internautas. Algumas são obtidas legalmente, outras vazam ilegalmente (como ocorreu nos escândalos protagonizados pelo Wikileaks e Edward Snowden). A internet destruiu os dois principais fundamentos dos Estados modernos: o mistério que envolvia a arte de governar; o sigilo que protegia o Estado dos seus próprios cidadãos. Doravante, coordenar milhares de reivindicações conflitantes será necessário e esconder sujeiras como se fossem segredos estatais se tornará uma impossibilidade.
Mesmo que os conflitos mais abundantes e complexos não paralisem o Estado, os sabotadores virtuais se tornarão cada vez mais politizados e ativos. A NSA que o diga. Recentemente, o Grande Irmão orwelliano tentou invadir o submundo criptografado e desencadeou uma guerra virtual. Ao final, a NSA levou uma surra no próprio campo de batalha que escolheu.
Num futuro bem próximo, a invasão não autorizada a arquivos públicos, a interferência eletrônica, a derrubada de websites oficiais e a difusão pública de informações secretas se tornarão coisas cada vez mais corriqueiras. O ativismo virtual se tornará tão perigoso que os políticos tradicionais sentirão falta das antigas manifestações nas ruas (muito embora eles também não gostem das mesmas, como ficou patente nos últimos meses). Durante quase dois séculos as agitações de rua obrigaram os governantes a tomarem conhecimento de questões sociais que eles teimavam em ignorar. Em geral a questão social podia ser e era tratada como caso de polícia. O policiamento ostensivo da internet é praticamente impossível agora que as passeatas se tornaram anacrônicas (muito embora elas possam ser organizadas pela internet, como ocorreu no caso do MPL).
Na verdade, dependendo do grau de conhecimento teórico e técnico do usuário, as manifestações individuais on line serão mais eficientes que as demonstrações de força de grupos organizados. Nesse sentido, não se pode considerar absurda a tese de que o monopólio estatal da política externa deixou de existir. Afinal, um único usuário pode causar prejuízos consideráveis a um país que julgue hostil ou inimigo. Ao declarar guerra total aos websites oficiais e privados do inimigo, o ativista pode acarretar prejuízos de bilhões ou de trilhões de dólares/euros e, em razão disto, acabar comprometendo seu próprio país. O que fará o Estado de origem do agressor virtual diante da retaliação de outro país?
Incomunicável numa prisão militar norte-americana e condenado a 25 anos de reclusão, Bradley Manning se tornou o primeiro mártir de uma nova era em razão de ter vazado documentos secretos da guerra no Iraque. Isolado e sitiado há mais de um ano na Embaixada do Equador em Londres, Julian Assange é o segundo mártir desta era dos absurdos em razão de ter publicado segredos diplomáticos e militares dos EUA. Edward Snowden ilhado num aeroporto russo foi o admirável mártir novo por revelar o ambicioso programa de controle total instituído pelo governo dos EUA. Há duas décadas estes três homens desprovidos de poder político/econômico tradicional não fariam estremecer um bairro. Nos dias de hoje, com alguns cliques, eles foram capazes de abalar as estruturas político/diplomáticas do maior império planetário. O Estado mudou, mesmo que os estadistas não tenham percebido.
Os conceitos de soberania, jurisdição e cidadania forjados no século XVIII e sedimentados até o final do século XX já sofreram rachaduras profundas. A rebelião dos Estados na ONU comandada por Brasil/Alemanha contra o Grande Irmão orwelliano NSA http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A%2FC.3%2F68%2FL.45%2FRev.1 é apenas uma conseqüência diplomática dos conflitos cibernéticos ocorridos dentro dos Estados e mal compreendidos pelos governantes. Nem controle total nem censura serão capazes de deter a reforma do Estado.
Um ataque sistemático e eficaz aos websites oficiais e privados de outro Estado pode acabar se tornando público. Foi o que ocorreu, por exemplo, quando alguns Bancos começaram a boicotar o Wikileaks e sofreram ataques massivos que partiram de milhões de computadores em diversos países. A ampla publicidade da guerra virtual potencializou-a colocando em campo mais e mais tropas virtuais com grande prejuízo para os banqueiros que tentavam estrangular financeiramente Julian Assange a pedido do governo norte-americano.
O exemplo deste tipo de agressão é em geral visto e copiado. Monkey see, monkey do. No Brasil, os computadores do Exército foram invadidos e hackeados; listas de oficiais foram espalhadas pela internet como se fossem barrigas de soldados abertas a baionetadas. Mesmo não ganhe notoriedade e apoio este tipo de ação certamente provoca danos à imagem da vítima.
Hobbes (1588/1679) concebeu o Estado como um terrível instrumento de coerção e admite que o soberano possa ser despótico porque a anarquia seria pior que o despotismo. A internet, entretanto, complicou um pouco a Teoria do Estado. Agora o ativista virtual é que pode se transformar num terrível instrumento de anarquia, deixando o Leviatã acuado.