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O “coronelismo” e a democracia brasileira.

Um breve ensaio reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento das campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal

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Serão abordados o julgamento do STF sobre a validade jurídica da Lei da “Ficha Limpa” e o processo acerca do financiamento das campanhas eleitorais, à luz da obra do Ministro Victor Nunes Leal.

Não podemos negar que o “coronelismo” corresponde a uma quadra da evolução política do nosso povo, que deixa muito a desejar. Tivéssemos maior dose de espírito público e as coisas certamente se passariam de outra forma. Por isso, todas as medidas de moralização da vida pública nacional são indiscutivelmente úteis e merecem o aplaudo de quantos anseiam pela elevação do nível político do Brasil. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em conseqüência, o seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres.

(VICTOR NUNES LEAL, Coronelismo, enxada e voto – o município e o regime representativo no Brasil).[1]


Resumo: Neste texto será feita uma abordagem do processo e julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal acerca da validade jurídica da Lei da “Ficha Limpa”, e acerca do processo que tramita perante esse Tribunal acerca do financiamento das campanhas eleitorais. Para iluminar e viabilizar uma adequada compreensão dos temas examinados será utilizada a clássica, porém atual, obra “Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil”, de autoria de Victor Nunes Leal, que demonstrou que as principais causas dos males políticos nacionais decorrem, basicamente, da estrutura econômica e social que priva o indivíduo/cidadão de autonomia econômica e moral e de uma estrutura política e de políticos que se beneficiam desse estado de coisas, de modo que a despeito de boas leis, cheias de intenções moralizadoras, as circunstâncias fáticas de miséria do eleitor (e de vilania de alguns políticos) é o fundamento da sobrevivência das más práticas políticas e eleitorais na realidade brasileira.

Palavras-chave: Direito Constitucional. Democracia. Lei da “Ficha Limpa”. Financiamento de Campanha Eleitoral. “Coronelismo”. Victor Nunes Leal.

Sumário: 1 Introdução. 2 O “coronelismo” político. 3 A Lei da “Ficha Limpa”. 4 O financiamento das campanhas eleitorais. 5 Considerações finais. 6 Referências.


1 INTRODUÇÃO

O presente texto (ensaio reflexivo) tem com objeto o processo e o julgamento, perante o Supremo Tribunal Federal - STF, acerca da validade jurídica da Lei da “Ficha Limpa” (Lei Complementar n. 135, 4.6.2010), que acrescentou preceitos normativos à Lei Complementar n. 64., de 18.5.1990, que estabeleceu condições mais rígidas para que o indivíduo possa participar, como candidato, do processo eleitoral. Também é objeto desta reflexão o processo que tramita no STF, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.650, que analisa a validade constitucional do financiamento, pelas empresas privadas, das campanhas eleitorais.

A finalidade do texto consiste em refletir sobre a crença brasileira no poder mágico das leis e das decisões judiciais, especialmente em matéria constitucional eleitoral, segundo a qual modificações normativas seriam suficientes e bastantes para mudar a realidade, sem embargo da teimosia dos fatos.  A justificativa desta reflexão descansa no aspecto simbólico tanto da legislação questionada quanto dos julgamentos do STF, reveladores da tensão entre os princípios da soberania popular, da democracia, da liberdade, da república e da moralidade, pois a depender das concepções adotadas haverá o sacrifício de interesses, tanto individuais quanto coletivos.

As hipóteses levantadas são basicamente duas. A Lei da “Ficha Limpa” não foi uma vitória da sociedade, mas a demonstração de que o povo-eleitor brasileiro não é da confiança do Estado (legislador, administrador, julgador e demais órgãos e instituições estatais) nem de setores organizados da sociedade civil (Igrejas, sindicatos, partidos políticos, entidades e corporações de classe, grande imprensa etc.).

A outra hipótese, no tocante ao financiamento privado de campanhas eleitorais, consiste na ideia de que excluir as empresas do processo político eleitoral é medida antidemocrática e que vai na “contramão” de uma democracia que deixou de ser atomizada no indivíduo isolado e se tornou uma complexa realidade que a todos interessa, tanto a indivíduos como às corporações, sejam públicas ou privadas.

Na construção deste ensaio, além da leitura dos textos normativos e das decisões judiciais, bem como das peças jurídicas contidas nos autos dos processos que serão examinados, também se utilizará das categorias lançadas por Victor Nunes Leal no citado livro “Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil”, que demonstrou que na experiência política nacional, a partir das eleições municipais, a causa dos males políticos reside basicamente na miséria econômica do indivíduo eleitor e na imoralidade de políticos que se beneficiam dessa situação social, aproveitando-se dessa estrutura nociva aos interesses do Brasil, apesar de todas as leis moralizadoras das práticas eleitorais.

“Coronelismo...” será o farol a iluminar nesse percurso, pois essa obra, que já nasceu clássica (perene e atual), segundo o autorizado magistério de José Murilo de Carvalho[2], Alberto Venâncio Filho[3] e Barbosa Lima Sobrinho[4], foi publicada em 1949, fruto de sua Tese para a cátedra de ciência política na Faculdade Nacional de Filosofia, obtida em 1948, que é tido como o primeiro trabalho moderno de ciência política produzido no Brasil.

Segundo Victor Nunes Leal, a compreensão dos fenômenos políticos nacionais necessitava de uma análise além dos textos normativos e das promessas jurídicas neles estampadas, pois nem sempre as leis conseguem domesticar a rebeldia dos fatos. Victor Nunes Leal fez um trabalho de realismo político e jurídico.

Com efeito, o conjunto de preceitos normativos e de práticas sociais e estatais que regulam o acesso, o funcionamento, a estrutura e a dinâmica do Poder é o que se denomina de direito político. [5] No Brasil, em matéria eleitoral, têm-se os preceitos normativos contidos no texto da Constituição, nos textos das leis (ordinárias e complementares), nas resoluções e provimentos emanados dos tribunais eleitorais e nas decisões judiciais em matéria constitucional eleitoral, especialmente as produzidas pelos Tribunais Regionais Eleitorais – TREs, Tribunal Superior Eleitoral - TSE e Supremo Tribunal Federal - STF. Portanto, textos normativos eleitorais brotam às mancheias.

O modelo brasileiro, em sede de justiça eleitoral, é constituído pelo STF, TSE, TREs, juízes e juntas eleitorais. No Brasil, como é curial, a pletora normativa é gigantesca, e o direito, que deveria ser um instrumento (tecnologia) normativo redutor de complexidades, se torna um elemento amplificador das complexidades (complexidade entendida como várias e múltiplas alternativas, na perspectiva luhmanniana).

A vida é difícil e complexa. O direito deveria ser fácil e simples. No momento em que o sistema jurídico normativo se torna difícil e complexo, ele nega a sua essência e perde o seu sentido social. Em face dessa abundância normativa (textos legais, decisões judiciais, práticas sociais etc.) e perspectivando que a realidade político-eleitoral é demasiadamente complicada, é necessário discernir o que deve ser levado em consideração.

Portanto, não é minguado o “ordenamento jurídico normativo eleitoral”. Não faltam leis para resolver os problemas políticos eleitorais brasileiros. A rigor, há um número excessivo e abundante de preceitos normativos regulando o fenômeno político eleitoral, de modo que os partícipes do processo político eleitoral necessitam gastar muito tempo e esforços com o sistema normativo, em vez de canalizarem energia com o processo político eleitoral em si. Situação tipicamente brasileira.[6]

É facilmente perceptível o caráter ingênuo desse conjunto normativo e legislativo. Essa ingenuidade (quase infantilidade) decorre de uma crença na força “mágica” ou “mística” das normas jurídicas. Com efeito, no Brasil é forte no imaginário social e coletivo que a positivação de desejos e interesses nos textos normativos será suficiente para lhes tornar realidade. Em vez de se atacar e enfrentar as raízes sociais, econômicas, culturais ou científicas dos problemas, criam-se leis e estatutos normativos. O direito seria a solução mágica para todos os dramas da vida, segundo essa visão ingênua e infantil.[7]

Essa visão fantasiosa dos poderes metafísicos do direito leva à frustração de expectativas, pois a realidade fática, supercomplexa e difícil, não se rende facilmente aos encantos das “leis de papel”, como sucede com a realidade política brasileira e a sua difícil relação com as leis eleitorais.

É sobre esse tema que passaremos a refletir.


2 O “CORONELISMO” POLÍTICO

No último parágrafo de sua obra-prima, Victor Nunes Leal, modestamente, revelou que não teve o propósito de apresentar soluções para o problema do “coronelismo”, esforçando-se, apenas, para compreender uma pequena parte dos males que afligem o Brasil e os brasileiros. Segundo ele, outros, mais capacitados, deveriam empreender a tarefa de indicar o remédio. Na posologia política nacional, vários remédios foram prescritos, quase sempre por pessoas bem menos capacitadas que Victor Nunes Leal, para curar as enfermidades políticas e eleitorais.

Mas o que era (é) o “coronelismo” para Victor Nunes Leal? A resposta do citado autor merece ser transcrita integralmente, nada obstante seja longa:

Como indicação introdutória, devemos notar, desde logo, que concebemos o ‘coronelismo’ como resultado da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, cuja hipertrofia constituiu fenômeno típico de nossa história colonial. É antes uma forma peculiar de manifestação do poder privado, ou seja, uma adaptação em virtude da qual os resíduos do nosso antigo e exorbitante poder privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base representativa.

Por isso mesmo, o ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.

Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder público, e isso se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir do eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável.

Desse compromisso fundamental resultam as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos serviços públicos locais. (2012, pp. 43-44).

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Uma das facetas do “coronelismo” consiste no voto de “cabresto”, decorrência da extrema pobreza das massas rurais dominada pela opulência econômica do chefe político, que faz daquele dependente desse (2012, p. 56). Logo, podemos inferir que a miséria econômica é a causa das misérias políticas.

Outro aspecto que ensejou o “coronelismo” foi o aumento das despesas eleitorais, com a ampliação substantiva do corpo eleitoral, constituído, em sua esmagadora maioria por eleitores necessitados (2012, p. 57). O “coronel” encarna e personifica as melhorias públicas, as prestações dos serviços e a feitura de obras, pois, não raras vezes, graças ao seu empenho e prestígio, é que essas melhorias alcançam a comunidade (2012, p. 58).

Mas essa atuação do “coronel” tem uma fatura. Vários preços são pagos: o “paternalismo”, o “filhotismo” e o “mandonismo”. Aos amigos e parentes, as benesses do poder e das leis. Aos adversários (inimigos) os rigores da lei e as perseguições abusivas do poder (2012, p. 60).

Essa relação de reciprocidade (aos aliados os favores, aos adversários os rigores) do chefe político municipal se repete nas relações com os chefes políticos estaduais e federais, pois o apoio do Estado, com o “cofre das graças e o poder da desgraça”, faz com que o “coronel” consiga manter a sua predominância política. Cuide-se que os compromissos têm uma ética especial, porquanto não são forjados na base de princípios políticos, mas em torno de coisas concretas, e prevalecem para uma ou para poucas eleições (2012, pp. 61-63).

Essa dependência em relação ao poder do Estado decorre da fraqueza financeira dos municípios. O município não tem autonomia alguma. O “coronel” é governista, é situacionista. Ele não se sente à vontade “nem tem o direito de impor aos amigos o sacrifício da oposição”. O “coronel” deve ter à sua disposição a caneta para beneficiar os aliados e o porrete para fustigar os inimigos. Daí porque o maior mal que pode acontecer a um chefe político municipal é ter o governo do Estado como adversário (2012, pp. 64-67). 

Daí a denúncia de Victor Nunes Leal (2012, p. 68):

A essência, portanto, do compromisso ‘coronelista’ – salvo situações especiais que não constituem a regra – consiste no seguinte: da parte dos chefes locais, incondicional apoio aos candidatos do oficialismo nas eleições estaduais e federais; da parte da situação estadual, carta branca ao chefe local governista (de preferência o líder da facção local majoritária) em todos os assuntos relativos ao município, inclusive na nomeação de funcionários estaduais do lugar.

Victor Nunes Leal (2012, pp. 70-71) faz contundente ataque à “autêntica mistificação do regime representativo”, que segundo ele não representa a verdade social e política da Nação. Para ele, a “vista grossa” que os governos estaduais sempre fizeram sobre a administração municipal, especialmente em relação à corrupção, deixando de empregar sua influência política para moralizá-la, fazia parte do sistema de compromisso do “coronelismo”.

Essa omissão (ou incentivo) ao descalabro governamental, por parte das autoridades estaduais e federais, servia para livrar os pleitos municipais dos riscos de uma derrota e predispunha o eleitorado em favor dos candidatos governistas, graças ao poder de coesão do governo, especialmente junto ao eleitorado dos municípios rurais. (2012, p. 73).

Segundo Victor Nunes Leal (2012, p. 74) o “coronelismo” se assenta na fraqueza econômica do dono da terra, que se ilude com o prestígio do poder, obtido à custa da submissão política, e na fraqueza econômica dos eleitores rurais, que se encontram em situação quase sub-humana.

Certeira essa crítica de Victor Nunes Leal. Com efeito, se observarmos a realidade brasileira atual, mesmo com a diminuição da população rural e aumento dos centros urbanos, perceberemos que dois aspectos são relevantes para uma manutenção dessa dependência municipal em face dos governos federal e estadual: a quantidade absurda de municípios e o sistema eleitoral proporcional.[8]

Sem receios, podemos dizer que quase 90% dos municípios brasileiros sobrevivem graças às transferências de verbas federais e estaduais, sem qualquer autonomia econômica e financeira. Quanto ao modelo eleitoral, pode-se dizer que os candidatos, salvo honrosas exceções, à deputância estadual e federal não necessitam de sólidas bases político-eleitorais, bastando ter dinheiro suficiente para suas eleições.[9]

Mas, como dizia Victor Nunes Leal há quase 70 anos (2012, pp. 137-139), o município é a peça básica das campanhas eleitorais no Brasil, pois uma vez convocado o povo para as urnas, em uma estrutura agrária como a brasileira, o “coronelismo” ressurgirá das próprias cinzas.

Victor Nunes Leal (2012, pp. 189-204) denuncia o papel da Polícia, do Ministério Público e do Judiciário na consolidação e fortalecimento do “coronelismo”, especialmente com as nomeações discricionárias e com as promoções por merecimento que empolgam os carreiristas dessas instituições, “pois as garantias legais nem sempre podem suplantar as fraquezas humanas”.

Victor Nunes Leal (2012, pp. 213-229), após apresentar as várias modificações eleitorais que visavam corrigir e melhorar o modelo representativo brasileiro, revela que muitas delas foram baldas, pois não se atacou a raiz do problema: a corrupção eleitoral e as misérias sociais e econômicas dos eleitores. O papel das leis não era forte o suficiente para enfrentar as realidades e necessidades materiais da vida. Segundo o citado autor, apesar dos esforços dos bem intencionados, não se conseguiu erradicar a manipulação dos votos pelos chefes políticos locais, especialmente do eleitor miserável das “grotas”, das zonas rurais.  

O autor faz uma crítica aos partidos políticos, que, segundo ele, não passam de  legendas ou rótulos destinados a atender às exigências técnico-jurídicas do processo eleitoral, à vista das múltiplas alianças para as eleições estaduais e municipais, reveladoras da ausência de programas e princípios ideológicos e políticos, garantidoras de um perene “caciquismo” político, fundado na ignorância e no desamparo do trabalhador dependente dos favores dos poderosos (2012, p. 226).

Nas suas considerações finais (2012, pp. 230-240), o autor assenta que o “coronelismo” é um sistema que se alimenta na miséria social e econômica do eleitor, na necessidade de poder político do chefe local, também ele fraco economicamente, e no acordo entre os chefes políticos estaduais e federais com os “coronéis” na garantia dos votos de cabresto.

A solução apontada por Victor Nunes Leal consiste na independência econômica, social, cultural e moral do eleitor. Para isso, seria necessária a mudança da estrutura social e econômica do Brasil, especialmente com a urbanização e industrialização.

Com absoluta razão Victor Nunes Leal. Indivíduos independentes e autônomos, com uma sociedade maior e mais forte que o Estado, inibiriam os políticos “coronelistas”. Logo, a melhor maneira de acabar com a pobreza dos eleitores consiste no aumento e na produção de riquezas para que todos possam se beneficiar. A pobreza econômica e a miséria moral são as principais causas dos problemas sociais e políticos brasileiros.


3 A LEI DA “FICHA LIMPA”

O STF enfrentou o tema da validade normativa da Lei da “Ficha Limpa” basicamente em quatro julgamentos. No Recurso Extraordinário n. 630.147[10] (caso Joaquim Roriz), no Recurso Extraordinário n. 631.102[11] (caso Jader Barbalho), no Recurso Extraordinário n. 633.703[12] (caso Leonídio Bouças) e no julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade ns. 29[13] e 30[14] e da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.578[15].   Nos referidos recursos extraordinários a Corte enfrentou a questão da aplicabilidade da Lei da “Ficha Limpa” para as eleições ocorridas no ano de 2010, ano de edição da referida Lei. No julgamento das ações concentradas de constitucionalidade (ADCs ns. 29 e 30, e ADI 4.578), o Tribunal enfrentou a questão da validade integral da citada Lei da Ficha Limpa.

Na primeira ocasião, no julgamento do citado RE 630.147[16], o Tribunal não chegou a um consenso, pois 5 ministros (Ayres Britto, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Ricardo Lewandowski e Ellen Gracie) votaram no sentido da aplicabilidade imediata da Lei, enquanto outros 5 ministros (Dias Toffoli, Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Celso de Mello e Cezar Peluso) votaram no sentido de que a Lei não poderia ser aplicada no mesmo ano, em face do disposto no art. 16, CF, que preceitua que a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência.

No segundo julgamento, RE 631.102[17] (caso Jáder), ainda com sua composição incompleta, a Corte, em face da repetição do empate, resolvendo questão de ordem, decidiu aplicar analogicamente o seu Regimento Interno (art. 205, parágrafo único, II), e decidiu pela manutenção do ato normativo impugnado, no caso, a decisão recorrida emanada do Tribunal Superior Eleitoral que determinou a aplicação da Lei da “Ficha Limpa” em relação ao candidato Jader Barbalho, de modo que ele não poderia se candidatar e, uma vez candidato, não poderia tomar posse, pois os votos que lhe foram dirigidos deveriam ser anulados. 

Na terceira oportunidade, nos autos do RE 633.703[18] (caso Leonídio Bouças), o Tribunal, com sua composição plena, por 6 votos a 5, tendo em vista o voto de desempate do Ministro Luiz Fux, decidiu que a Lei da “Ficha Limpa” não se aplicaria nas eleições ocorridas no mesmo ano de sua edição (2010), em face do citado artigo 16, CF.

A corrente vencida, composta dos referidos 5 ministros, defendia o afastamento do referido artigo 16, CF, sob o argumento de que a lei não alterava o processo eleitoral, pois cuidava apenas de condições de elegibilidade e o fazia com apoio no § 9º, art. 14, CF, que preceitua que Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidades e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.

Ante esse quadro de instabilidade normativa e jurisprudencial, o Tribunal foi instado a se manifestar, definitivamente, acerca desse aludido diploma legislativo nos autos das citadas ações constitucionais concentradas e abstratas (ADI n. 4.578 e ADCs ns. 29 e 30) [19].

A Corte, por maioria, chancelou integralmente a validade da citada Lei da “Ficha Limpa”, excetuando-se, apenas, em sua aplicabilidade para as eleições de 2010, conforme o referido precedente do RE 633.703.

Todos esses julgamentos foram marcados por grande expectativa, pois a citada Lei da Ficha Limpa, conquanto tenha nascido formalmente de um projeto de lei de autoria do Dep. Tal, foi materialmente provocado por força de uma intensa campanha de mobilização popular, capitaneada pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral – MCCE, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, pela Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e várias outras entidades da sociedade civil organizada, que obtiveram a subscrição de quase 1.600.000 (um milhão e seiscentos mil) eleitores, como projeto de iniciativa popular. [20]

Para muitos, inclusive para vários Ministros do STF, a quantidade de assinaturas é um elemento relevante. Mas esse número de assinaturas não é tão impressionante assim, pois no Brasil há quase 130 milhões de eleitores, de modo que apenas 1,23% dos eleitores brasileiros manifestaram, por escrito, sua adesão e preocupação com a “limpeza” do processo eleitoral. Assim, os grandes entusiastas desse “projeto de lei” eram as entidades organizadoras e a grande imprensa, pois a esmagadora maioria dos brasileiros (98,77%) não estavam interessados nesse pleito político-legislativo.

Nada obstante, essa mobilização popular impressionou a vários ministros da Corte, pois em alguns deles, em suas manifestações, mencionaram esse fato de que 1 milhão e 600 mil eleitores subscreveram iniciativa popular. Mas vejamos a curiosidade dos números.

O candidato ao senado Jader Barbalho, que foi inicialmente alcançado pela Lei da “Ficha Limpa”, obteve, segundo informações do TSE[21], 1.799.762 votos, quase 200 mil “chancelas” superiores à citada Lei da “Ficha Limpa”. Evidentemente que os votos não anulam as leis, mas se o número de apoiadores de uma lei é relevante no julgamento, como sucedeu com a “Ficha Limpa”, o número de votos obtidos pelos alvos da citada Lei também deveria ser levado em consideração.

Fenômeno similar ocorreu com a candidatura de Joaquim Roriz para governador do Distrito Federal. O eleitor do Distrito Federal foi privado do direito de votar (ou de não votar) no candidato Joaquim Roriz. O povo/eleitor candango não pode, ele mesmo, escolher se queria Roriz ou outro candidato. A Justiça Eleitoral decidiu pelo povo. Nas democracias, ninguém tem o direito de decidir pelo povo/eleitor.

Cuide-se que a Ordem dos Advogados do Brasil, Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública, Poder Judiciário, imprensa, igreja, não são representantes do povo/eleitor. Não obstante sejam importantes instituições sociais e estatais, essas instituições não são as porta-vozes da Nação. O povo-eleitor fala pelo voto ou pelas ruas.

Em que pese esse caráter antidemocrático da Lei da “Ficha Limpa” e das decisões judiciais que excluem candidatos do processo eleitoral, há indubitável aspecto republicano nessas medidas. É que a República é o “filtro” da Democracia. A República, por meio das leis e decisões judiciais, condiciona o poder soberano do povo, de modo a torná-lo racional, refreando-se as paixões das massas.

Essas preocupações estiveram presentes nas ideias inspiradoras dos “Federalistas” (James Madison, Alexander Hamilton e John Jay) [22] quando defenderam que as leis republicanas deveriam servir de proteção em face das paixões irracionais do povo, próprio das democracias. Era preciso encontrar um ponto ótimo de equilíbrio entre a “emoção” democrática e a “razão” republicana. Eis perene advertência dos “Federalistas” (Artigo 51):

A grande garantia contra uma concentração gradual dos vários poderes no mesmo braço, porém, consiste em dar aos que administram cada poder os meios constitucionais necessários e os motivos pessoais para resistir aos abusos dos outros. As medidas de defesa devem, neste caso como em todos os outros, ser proporcionais ao perigo de ataque. A ambição deve poder contra-atacar a ambição. O interesse do homem deve estar vinculado aos direitos constitucionais do cargo. Talvez não seja lisonjeiro para a natureza humana considera que tais estratagemas poderiam ser necessários para o controle dos abusos do governo. Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. Se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos. Ao moldar um governo que deve ser exercido por homens sobre homens, a grande dificuldade reside nisto: é preciso primeiro capacitar o governo a controlar os governados; e em seguida obrigá-lo a se controlar a si próprio. A dependência para com o povo é, sem dúvida, o controle primordial sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade que precauções auxiliares são necessárias. (1993, p. 350).

Tenha-se que o STF, no julgamento da Ficha Limpa, afastou jurisprudência confirmada no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 144[23].  Nesse julgamento, a Corte entendeu que somente decisão transitada em julgado teria força para impedir o direito de pessoa condenada, mas sem o trânsito em julgado, tivesse o direito de postular cargo eletivo.

Com efeito, à luz das leis e das decisões judiciais, pode-se inferir que o Estado não confia no eleitor (povo). O Estado, via suas instituições, órgãos e agentes, e parcela da sociedade civil organizada (OAB, partidos políticos, igrejas, sindicatos, imprensa, organizações não-governamentais etc.) também não confia no discernimento do eleitor. O eleitor, para essas instituições e pessoas, não sabe votar. Vota mal. Escolhe os piores candidatos. É preciso vigiar o povo/eleitor. Ele não é de confiança. É preciso escolher antes em quem o eleitor pode votar ou deixar de votar. Essas instituições se apresentam como “superego freudiano” da sociedade.

Todavia, democracia é uma experiência de tentativas, erros e acertos. A experiência de se substituir ao povo já foi exercida várias vezes, e nunca funcionou bem para o povo. Daí porque atribuir-se a Winston Churchill o dito segundo o qual a “democracia é pior forma de governo imaginável, à exceção de todas as outras que foram experimentadas”.

Nessa perspectiva, a Lei da Ficha Limpa, chancelada pelo STF, e celebrada por muitos como uma vitória da sociedade e da democracia, pode ser vista, na verdade, como remédio de uma sintomática doença do eleitor que não sabe votar. Ela revela a desconfiança do Estado em relação ao discernimento do eleitor. Ao invés de uma vitória, foi uma derrota do povo, pois um eleitorado que necessita de uma lei para dizer que não deve votar em candidatos “sujos” é um eleitorado incapaz.

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Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

Piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional, Centro Universitário do Distrito Federal - UDF; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA e do Centro Universitário de Brasília - CEUB. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; "Lições de Direito Constitucional - Lição 1 A Constituição da República Federativa do Brasil" e "Lições de Direito Constitucional - Lição 2 os princípios fundamentais e os direitos fundamentais" .

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. O “coronelismo” e a democracia brasileira.: Um breve ensaio reflexivo sobre a Lei da “Ficha Limpa” e sobre o financiamento das campanhas eleitorais, sob as luzes do magistério doutrinário de Victor Nunes Leal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3815, 11 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26114. Acesso em: 18 abr. 2024.

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