Uma conversa com uma amiga de faculdade motivou a confecção desse ensaio. Falávamos das quantias absurdamente ínfimas que o Judiciário do Estado do Rio de Janeiro aplica, e quando aplica, em suas decisões nas ações em que se busca a reparação de danos morais, notadamente nas relações de consumo.
Lembrei que há um tempo ajuizei uma ação naquele Estado, porque na conta corrente do meu cliente eram descontadas, por anos a fio, cinco contas de consumo de água, apesar de quatro autorizadas. Para “facilitar”, o extrato emitido mediante requerimento pela instituição financeira era “muito esclarecedor”: ÁGUA. Perfeito! Eram cinco campos escritos “água”.
Informei na petição que era impossível identificar, nos documentos fornecidos pelo prestador de serviços (os quais foram juntados aos autos), qual a conta intrusa; e, sendo uma relação de consumo (prestação de serviços de má qualidade, na realidade) requeri a inversão do ônus da prova. Mas, qual não foi minha surpresa ao tomar uma improcedência porque o pedido de condenação não conduzia a uma sentença líquida. Conduziria, se eu soubesse qual o valor cobrado a mais, mas isso só seria possível se concedido o direito de acesso aos números dos contratos de serviço e/ou às autorizações para tais cobranças, assinadas por meu cliente, através da inversão do ônus da prova. Não se sabia sequer qual empresa fornecedora de água era beneficiada com a cobrança irregular (Águas de Niterói ou CEDAE, p.ex.).
Ora, além do amparo conferido pelo artigo 14, §2º, da Lei nº 9.099/1995 [1], num procedimento informado pela informalidade (perdoe o falso pleonasmo), seria mais justo determinar a apresentação de documentos esclarecedores para o consumidor/ jurisdicionado se manifestar, sem que, para isso, fosse designada nova audiência. Seria flexibilizar o procedimento? Poderia ser. Mas, e daí? Não importa, se isso é necessário para decidir com justiça, especialmente nesse rito [2].
Então, a instituição financeira não juntou uma única prova, e saiu vencedora. Bela prestação de tutela jurisdicional.
Na conversa foi dito que se subentende um recado dos magistrados cariocas ao fixarem baixas quantias a título de danos morais. O objetivo seria desestimular a procura do Judiciário e, assim, desafogar suas instâncias, pois, como boa empresa que se preze, tem metas a cumprir, e a grande enxurrada de ações propostas inviabiliza essa árdua missão. Logo, possivelmente vem sendo alinhavada a aplicação de uma medida parecida com as tomadas pela ANS e ANATEL contra os planos de saúde [3] e empresas de telefonia [4]: proibir a celebração de novos contratos até serem realizadas melhorias na qualidade do serviço prestado.
Muito bom, não fosse um detalhe: vão fechar as instituições financeiras? E as grandes lojas de departamentos? O povo fica sem poder sacar dinheiro, fazer aplicações, pagar suas contas e os funcionários das lojas sem trabalhar e, consequentemente, sem receber suas comissões.
Há muito venho dizendo que a quantia ínfima aplicada na indenização apenas incentiva a continuidade nas infrações dos direitos dos consumidores. Isso é fato, mas o Judiciário permanece apático; impassível; irredutível...
Ora, é muito mais vantajoso para a instituição financeira ser condenada em R$ 2 mil após um tempo considerável de trâmite da ação, que custear a melhoria da qualidade dos produtos oferecidos ou contratar e capacitar funcionários que atuem de forma satisfatória no atendimento ao cliente. É a relação “custo x benefício”, a avaliação atuarial, o “risco calculado”...
Há, logicamente, a odiosa transferência do serviço de atendimento ao consumidor (SAC) das empresas para o Judiciário e, a reboque, o abarrotamento das instâncias do Judiciário. E não se pode esquecer a consequente má qualidade na prestação da tutela jurisdicional. A qualidade ruim de algumas – várias – decisões exaradas decorre da pouca quantidade de magistrados e da necessidade de produzir decisões a toque de caixa para engordar estatísticas e “apresentar o serviço”. A desculpa é evitar a violação de garantias constitucionais previstas na duração razoável do processo – a celeridade e a eficiência – provocada pela demora da entrega da tutela jurisdicional. Mas, e a qualidade da decisão?
É um ciclo vicioso: considerando a pouca quantidade de magistrado, e que as decisões mais elaboradas requerem mais tempo na apreciação da demanda. A partir do momento em que metas devem ser cumpridas, as decisões passam ser exaradas mais rapidamente, donde decorre o pouco empenho.
De outro lado, embora insipiente, parece haver a preocupação do CNJ, através dos cursos que vem promovendo, com outro gargalo que emperra a rápida e eficaz entrega da tutela jurisdicional: a reciclagem dos magistrados.
Mas, voltando ao que interessa, sempre critiquei os baixos valores fixados a título de reparação de danos morais. E, confesso, cheguei a me sentir tal qual Dom Quixote. Leio decisões que me eriçam os pelos, mas deixei de ser tão crítico, e vez por outra me limito a apontar a falta de respeito pelo caráter pedagógico que deve acompanhar uma sentença dessa natureza.
Porém, eis que leio com satisfação o artigo “Não existe no Brasil uma indústria das indenizações”, um estudo robusto do tema, de autoria de Donnini [5], motivado, aparentemente por uma notícia do STJ que também me chamou a atenção. Como eu, o autor achou absurda a “propaganda” sobre a reforma de uma condenação que passou de R$ 3 mil para R$ 8 mil reais [6]. Ora, havia sido negada a cobertura, pelo plano de saúde, em uma cirurgia de emergência.
Do referido artigo são copiados os dois parágrafos iniciais:
Há poucos dias, o site do Superior Tribunal de Justiça divulgou notícia que pelo título deveria ser motivo de orgulho: “STJ aumenta valor de danos morais por falta de autorização para cirurgia de emergência”. Contudo, o aumento noticiado foi de 3 para 8 mil reais e isso nos fez refletir mais uma vez sobre o tema, visto que esse “aumento” não nos parece dissuasório às atividades lesivas.
Já é uma obviedade que apenas pequena parte das pessoas lesadas no Brasil se socorrem do Judiciário. A maioria se vê desestimulada a despender recursos, esforços e tempo na busca pela reparação, sobretudo em razão da ciência de que o sucesso na demanda não significará nem de longe uma reparação justa, pois, em regra, os valores fixados são diminutos, representando verdadeiro prêmio aos infratores, que não raro fazem cálculos atuariais sofisticados e se enriquecem sem causa legítima mediante o cometimento de danos. E aqui surge a importância da prevenção de danos pela firme atuação do Judiciário, com fixação de quantias que ultrapassem a barreira das primeiras dezenas de milhar.
O autor também entende que não cabe ao Judiciário, pautado num suposto “enriquecimento indevido”, decidir que a vítima deve suportar resignada a violação de seus direitos. Aliás, nesse sentido, em artigo publicado em 2009 [7], assim deixei consignado:
“Ora, se por um lado o enriquecimento indevido do ofendido deve ser evitado, por outro lado não se pode permitir que o ofensor, em razão de valor irrisório a despender, reitere repetidas vezes sua conduta covarde e nociva, prejudicando, ao final, a coletividade. Nesse diapasão, aquele que ofende deve indenizar o dano material ou moral por ele causado. E, mais, essa indenização deve ser proporcional ao mal efetivamente perpetrado. Ainda: o infrator deve ser coagido a não repetir o mal causado, seja contra quem quer que seja”.
De outro lado, como DONNINI muito bem lembrou, os oportunistas que procuram as portas do Judiciário em busca de aventuras, e pautados em histórias inverídicas ou exageradas, devem ser apenados na forma devida:
O fato de existirem muitos pleitos indenizatórios e alguns deles absolutamente descabidos não justifica a asserção genérica de que entre nós os pleitos indenizatórios são exagerados e criados com o intuito de enriquecimento injusto. Embora existam situações dessa natureza, que devem ser coibidas mediante penalidades pesadas por litigância de má-fé ou ato atentatório à dignidade da justiça, inegavelmente a grande maioria dos pedidos atinentes a indenizações decorrem da efetiva violação de direitos patrimoniais e/ou da personalidade.
Por fim, no meu ponto de vista, o desestímulo do Judiciário à procura da solução de litígios criados pela violação do direito do consumidor viola o artigo 5º, inciso XXXII, e o artigo 170, inciso V, ambos da CRFB/1988:
Art. 5º. (omissis)
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(omissis)
V - defesa do consumidor;
Ora, se a lesão sofrida é reparada em valores irrisórios porque há o intuito de desencorajar o jurisdicionado a procurar a tutela no Judiciário, é certo que está diante de empecilhos para defender seu direito. Em contrapartida, agindo assim o Estado-juiz caminha no sentido de minimizar a defesa do consumidor, permitindo que as empresas, que são a força motriz da ordem econômica, deem um drible no princípio da defesa do consumidor e não arquem com o risco a que estão submetidas por atuarem em seu nicho de mercado.
Há que se encontrar um melhor modelo, já que esse que se apresenta é insuficiente e injusto. Talvez a destinação de verba a uma instituição de caridade, como já defendi anteriormente no artigo acima referido, mas desde que o Judiciário também não se veja pressionado a rever condenações desse jaez em razão de ausência de pedido da parte, conforme noticiado dias atrás [8]. Mude-se a lei, se for o caso.
Contudo, o modelo com o qual deve o Judiciário trabalhar para a pacificação social no que tange às cotidianas violações aos direitos das pessoas deve ser buscado; debatido; eleito; positivado... Em última instância, entre escolher o suposto enriquecimento indevido e a atuação despreocupada das empresas, que sobrecarregam o Judiciário e não se buscam alterar essa mesquinhez no trato com seus parceiros contratuais, que prevaleça o enriquecimento indevido.
E já que se fala tanto em indústria do dano moral, não se pode criar uma indústria de produção de decisões em massa com a pretensão de diminuir o acesso ao Judiciário, violando outro direito constitucional e passando por cima da Constituição Federal, que a todo o custo deve ser preservada.
A tentativa de desmotivar a busca da tutela jurisdicional acaba indo de encontro à própria razão de existir do Judiciário, e cria, infelizmente, uma aberração que deveria ser fortemente combatida: a indústria do dano moral às avessas.
Notas
[1] “Art. 14. (omissis) § 2º É lícito formular pedido genérico quando não for possível determinar, desde logo, a extensão da obrigação”;
[2] “O juiz, diante de particularidades próprias da causa, é o melhor árbitro do procedimento a ser seguido, devendo fixá-lo a fim de adaptá-lo ao direito material e à situação específica das partes litigantes. Desde que garanta aos contendores o devido processo constitucional e previsibilidade de suas ações, pode excepcionalmente manipular o procedimento. Estas são, grosso modo, as premissas da flexibilidade judicial do procedimento sustentadas neste estudo”. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental... SP: Atlas, 2008, p. 201;
[3] Disponível em <http://www.ans.gov.br/planos-de-saude-e-operadoras/contratacao-e-troca-de-plano/1629-planos-de-saude-suspensos>. Acessado em 30/ago/2013;
[4] Disponível em <http://info.abril.com.br/noticias/mercado/claro-oi-e-tim-sao-punidas-e-vivo-escapa.-por-que-19072012-28.shl >. Acessado em 30/ago/2013;
[5] Donnini, Rogério. Não existe no Brasil uma indústria das indenizações. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-ago-28/rogerio-donnini-nao-existe-brasil-industria-indenizacoes>. Acessado em 29/ago/2013;
[6] Aliás, segue a mesma linha a decisão que obrigou o plano a devolver quase R$ 24 mil a um idoso que custeou sua internação, a título de danos materiais, e fixou os danos morais em pouco mais de R$ 1,1 mil. Plano de Saúde é condenado por negar tratamento a idoso. Disponível em <http://www.jurisway.org.br/v2/noticia.asp?idnoticia=102673>. Acessado em 25/ago/2013;
[7] PEIXOTO, Fernando César Borges. A necessidade de coibir de forma eficaz a prática ou a reiteração de atos que gerem o dano moral. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2174, 14 jun. 2009. Disponível em <http://jus.com.br/artigos/12972/a-necessidade-de-coibir-de-forma-eficaz-a-pratica-ou-a-reiteracao-de-atos-que-gerem-o-dano-moral>. Publicado em 03/2009;
[8] “...o descaso das operadoras no que diz respeito à prestação de informação, alimentação e acomodação adequadas em caso de atraso de voo justifica o dano moral. Ela votou por mudança na decisão inicial, que previa pagamento solidário de R$ 5 mil a cada cliente e a doação de R$ 10 mil a um orfanato. As empresas deverão pagar R$ 5 mil a título de danos morais, além da diária do hotel e da passagem, consequência do dano material. O pagamento ao orfanato foi revisto, pois ultrapassava o pedido feito pelos clientes...” (grifei). In: Voo atrasado gera punição solidária para três empresas. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-ago-26/operadoras-turismo-sao-punidas-solidariamente-problema-voo>. Acessado em 27/ago/2013.