O projeto do Novo Código de Processo Civil, ao cuidar da ação rescisória arrola, dentre as hipóteses de cabimento dessa ação autônoma de impugnação, o caso de a sentença ou o acórdão de mérito ofender a coisa julgada.
Essa hipótese, já prevista no Código de Processo Civil de 1973, guarda em seu âmago uma significativa impropriedade, uma relevante incoerência com o sistema constitucional pátrio.
Em termos gerais, pode-se dizer que essa ofensa à coisa julgada, indicada tanto no Código de 1973 quanto no projeto do novo Código de Processo Civil, dá-se naquele caso em que uma das partes de processo anterior já definitivamente julgado por decisão de mérito deflagra uma nova demanda integrada pelos mesmos elementos (partes, causa de pedir e pedido) daquele processo já findo, intentando obter um novo pronunciamento judicial sobre a mesma causa.
Em casos como esse, poderá o réu dessa segunda demanda arguir em contestação a preliminar peremptória (e não apenas dilatória) da coisa julgada, preliminar esta passível também de conhecimento ex officio pelo juiz (art. 327, VII, §§ 1º, 2º e 4º).
Todavia, não arguida pelo réu essa preliminar e não conhecida ela de ofício pelo juiz, uma nova sentença será proferida. E é aqui que surge o ponto crítico:
- essa nova sentença é um ato jurídico existente e válido?
- ela é mesmo alcançada pela qualidade da coisa julgada?
- é possível que se forme nova coisa julgada sobre uma mesma causa já anteriormente deflagrada entre as mesmas partes e já transitada em julgado?
- qual das duas decisões prevalecerá, caso sejam de sentido diverso?
- a segunda sentença transitada em julgado apagará a primeira sentença transitada em julgado?
Ora, a coisa julgada é uma garantia fundamental assegurada pela Constituição (CR, art. 5º, XXXVI). Cláusula pétrea da Lei Maior.. Formada a coisa julgada sobre um pronunciamento judicial de mérito, não é dado ao Poder Judiciário rediscutir a causa e emitir, validamente, um novo pronunciamento.
Não se pode negar que é possível, sim, ocorrer de uma nova demanda, composta dos mesmos elementos identificadores (partes, causa de pedir e pedido), ser deflagrada e, na sequência, vir a ser decidida no mérito sem que o juiz conheça da coisa julgada já formada. Mas esse desconhecimento do juiz não torna válida essa segunda decisão sobre a mesma causa, tampouco permite que incida sobre ela a qualidade da coisa julgada, pena de nítida afronta à garantia constitucional.
Se a formação de uma segunda coisa julgada fosse admitida como válida, isso representaria um atentado à garantia constitucional, atentado esse perpetrado pelo próprio Poder Judiciário, pois, em desrespeito àquela primeira (e única) coisa julgada validamente formada, emitiria ele um novo julgamento, o qual, se não atacado a tempo, transitaria em julgado e, pior, se não rescindido oportunamente, tornar-se-ia definitivamente imutável.
A Constituição da República, ao consagrar como garantia fundamental a coisa julgada, não permite que contra ela nenhum dos Poderes da República atente. Nem mesmo o Poder Judiciário! Logo, não pode sequer ser considerada como ato existente a segunda decisão sobre um mesmo caso já decidido e alcançado pela qualidade da coisa julgada.
Ora, um ato jurídico inexistente não transita em julgado. A segunda decisão proferida em ofensa à coisa julgada é um ato inexistente, logo, sobre ela não há formar coisa julgada.
Essa compreensão do tema não se distancia do valor atribuído pelo Supremo Tribunal Federal à coisa julgada. É interessante ver que a garantia da coisa julgada, por compor o núcleo rígido da Constituição, subsiste íntegra mesmo face à ulterior declaração de inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, via controle abstrato, do preceito legislativo em que esteada a sentença tornada imutável. Noutros termos: a coisa julgada não é superada sequer pela declaração de inconstitucionalidade!
Prolatada sentença com fundamento em lei ou ato normativo posteriormente declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, a eficácia ex tunc dessa declaração não afeta a coisa julgada, ao menos não de modo pronto e direito. Assim a decisão proferida pelo Supremo no RE 594.892, rel. Min. Celso de Mello:
A decisão do Supremo Tribunal Federal que haja declarado inconstitucional determinado diploma legislativo em que se apoie o título judicial, ainda que impregnada de eficácia ex tunc, como sucede com os julgamentos proferidos em sede de fiscalização concentrada [...], detém-se ante a autoridade da coisa julgada, que traduz, nesse contexto, limite insuperável à força retroativa resultante dos pronunciamentos que emanam, in abstracto, da Suprema Corte.
Dessarte, no mínimo curiosa é a previsão da ofensa à coisa julgada como hipótese autorizadora da ação rescisória. A segunda decisão, insista-se, é um ato juridicamente inexistente e não transita em julgado. Logo, despiciendo seja ela atacável via ação rescisória, já que esta pressupõe – e isso é estreme de dúvida –, a existência de coisa julgada, cuja desconstituição é o seu objeto. Se não há coisa julgada formada, ação rescisória não cabe. Simples assim.
Por essas razões, mais acertado seria que o legislador reformador dispusesse ser a ofensa à coisa julgada não uma hipótese autorizadora da ação rescisória, mas caso de propositura da querela nullitatis insanabilis.
Não bastassem essas lógicas razões, subsiste ainda outra bastante pragmática: a ação rescisória tem um prazo máximo para propositura (art. 928), a querella nullitatis não.
Admitida essa hipótese, como quis o legislador do início da década de setenta e ainda quer o legislador hodierno, como caso de ação rescisória, a perda do prazo de sua propositura permitiria a consolidação de uma ofensa ao núcleo rígido da Constituição, tornando indiscutível a sentença ou o acórdão assim proferido, o que não pode encontrar esteio em um Estado Constitucional. Um ato inexistente – viciado gravemente por atentar à garantia fundamental – tornar-se-ia válido e eficaz se não atacado via ação rescisória no prazo de 1 (um) ano a contar de seu suposto (insista-se: suposto) trânsito em julgado.
Nessa hipótese, andou mal o legislador reformador, pois incorreu no mesmo equívoco já cometido pelo legislador de 1973. Mas ainda há tempo de evitar o erro.