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Mutação constitucional informal e a abstrativização do controle concreto de constitucionalidade

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Resumo:


  • O poder constituinte é permanente e pode ser exercido para criar uma nova Constituição ou reformar uma já existente.

  • A mutação constitucional informal é uma forma de alteração do conteúdo constitucional sem modificar formalmente o texto, geralmente por meio de interpretação hermenêutica.

  • O debate sobre a abstrativização do controle difuso, especialmente em relação ao art. 52, X, da CF/88, busca ampliar os efeitos das decisões do STF em controle concreto para abranger a todos, independentemente da resolução do Senado.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

3. TEORIA DA ABSTRATIVIZAÇÃO NO CONTROLE CONCRETO DE CONSTITUCIONALIDADE

Sabemos, à luz das lições da teoria do controle de constitucionalidade, que a declaração de inconstitucionalidade no controle concreto, por se tratar de um processo constitucional subjetivo (e não processo objetivo), com a questão de inconstitucionalidade analisada de forma incidental (não se tratando de principaliter tantum), tendo por finalidade a  proteção de um direito subjetivo (e não a supremacia constitucional), gera efeitos apenas inter partes (e não efeitos erga omnes), mesmo quando a decisão é proferida pelo STF. Nesse plano, no que se refere aos efeitos subjetivos alcançados no exercício do controle de constitucionalidade, percebemos que, enquanto o controle abstrato sempre repercute efeitos para todos (erga omnes), o controle concreto é mais restritivo, opera efeitos apenas entre as partes envolvidas no processo subjetivo (inter partes).

De fato, é natural que assim o seja, porquanto os terceiros que estão fora da relação jurídico processual não podem ser atingidos por decisão em processo subjetivo que não lhes diga respeito. Não bastasse, o princípio da congruência tão consagrado na seara processual exige que o magistrado fique adstrito à causa de pedir e, por conseguinte, aos interesses envolvidos pelas partes que impulsionaram a atividade jurisdicional do Estado. A coisa julgada material, então, na hipótese de controle concreto de constitucionalidade, envolve o direito invocado apenas quanto às partes. Logo, os efeitos subjetivos nessa espécie não se dissipam para todos, mas se limitam às partes que fazem parte da relação jurídico-processual (efeitos inter partes no controle concreto).

Contudo, em uma única hipótese poderá, excepcionalmente, uma decisão em controle concreto surtir efeitos erga omnes, possibiidade esta prevista no próprio corpo da Carta Maior. Trata-se do instituto da suspensão da execução da lei pelo Senado. Para tando, precisam ser ultrapassados três condicionantes: (i) o caso concreto deve subir até até a última instência e ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal; (ii) a decisão deve ser encaminhada pelo STF ao Senado; (iii) é preciso Resolução do Senado suspendendo, em atuação discricionária, a execução da lei. Somente nesse caso, ultrapassados tais requisitos, o processo em controle concreto de constitucionalidade deixará de produzir efeitos inter partes e passará a operar efeitos erga omnes. Não obstante isso, a jurisprudência do Supremo tem se inclinado no sentido de alargar os efeitos das decisões proferidas em sede de controle concreto para além das partes envolvidas no processo. Ou seja, o STF tem desenvolvido uma tese de que a sua decisão em controle concreto já surtiria efeitos para todos (erga omnes). Isso significa que, segundo esse entendimento, uma decisão adotada em controle concreto de constitucionalidade pelo STF, e somente por este, ao invés de produzir efeitos subjetivos restritivos inter partes, abrangeria a todos, com produção de efeitos erga omnes.

É o que se chama da Teoria da Abstrativização, ou Objetivização, ou Verticalização do Controle Concreto de Constitucionalidade, pela qual o STF não dependeria mais de Resolução do Senado para ampliar os efeitos subjetivos da declaração de inconstitucionalidade no controle concreto. A própria decisão do STF já seria suficiente para conceder efeitos erga omnes. É que, conforme manifestações da Corte Suprema, a Constituição de 1988 modificou de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade, sendo inevitáveis as reinterpretações ou releituras dos institutos vinculados ao controle incidental de inconstitucionalidade, especialmente a exigência da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Atualmente, continua válido o art. 52. X, CF/88, ou seja, é o Senado quem tem competência discricionária para alterar os efeitos da decisão inter partes para erga omnes, se assim quiser de forma facultativa, por meio de Resolução. Isso ocorre porque, ao suspender a execução da lei impugnada, obviamente todos passam a ser atingidos, dado o caráter de abstração e generalidade das espécies normativas. Nesse sentido, é o que dispõe o art. 52. X, CF/88: “Compete privativamente ao Senado Federal: X - suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal".

Na prática, o texto do art. 52, X, da Constituição Federal permanece intacto, ainda não tendo ocorrido a chamada mutação constitucional, alteração informal do seu texto. Atualmente, o tema vem sendo debatido na Rcl 4335/AC, tendo sido deferida liminar favorável à abstrativização do controle difuso pelo Min. Gilmar Mendes, relator, mas o julgamento de mérito atualmente segue em acirrado debate, ainda sem resoluçao definitiva de mérito. A discussão surgiu no HC 82959, em que o STF julgou inconstitucional, incidenter tantum, o dispositivo das leis de crimes hediondos que vedava a progressão de regime, com efeitos, obviamente, apenas inter partes, para o impetrante do writ. Ocorre que, em alguns votos, os ministros da Corte defendiam que o caso se tratava, na verdade, de controle abstrato, não se estava vendo apenas o habeas corpus, mas principalmente a inconstitucionalidade ou não do dispositivo da lei de crimes hediondos.

Com essa interpretação dúbia, parcela da doutrina e o próprio judiciário de piso estava respeitando essa decisão do STF para todos os demais casos que lhe aparecessem, embora a decisão tivesse sido tomada em controle difuso. Contudo, no Estado do Acre não foi respeitada essa tese, o judiciário local não reconheceu a inconstitucionalidade da vedação de progressão de regime naquele momento, justamente suscitando que a declaração em sede de habeas corpus é incidental e inter partes, logo, não teria efeito erga omnes de modo a vincular os demais órgãos do judiciário. Desse modo, continuou aplicando a vedaçao da lei de crimes hediondos para a progresão de regime por entender que a lei seria constitucional, já que a inconstitucionalidade reconhecida em controle difuso seria incapaz de operar efeitos erga omnes, salvo se resolução do Senado Federal extendesse os seus efeitos, nos termos do art. 52, X, CF/88. Foi daí, então, que veio a Rcl 4335/AC, e que continua em pauta de julgamento.

Na verdade, a teoria da Objetivização ou Abstrativização do Controle Concreto de Constitucionalidade, sem desconstituir o referido dispositivo constitucional, vem trazer uma tentativa da Suprema Corte de conferir às suas decisões, em controle concreto, efeitos subjetivos com eficácia erga omnes (quando se sabe que a regra no controle concreto é a produção de efeitos inter partes), e sem que isso dependesse da facultatividade do Senado. Nesse sentido, o STF propunha a chamada Mutação Constitucional Informal, que vimos atrás, em face do art. 52, X, da CF/88, para defender a possibilidade das decisões proferidas pela Corte Maior em sede de controle incidental acabarem tendo eficácia que transcenderia o âmbito da decisão somente entre as partes (inter partes), operando efeitos para todos (erga omnes), o que indica que a própria Corte vem fazendo uma releitura do texto constante do art. 52, X, da Constituição, entendendo que a necessidade de garantir o princípio da igualdade e evitar divergências jurisprudenciais, não mais parece legitimar a distinção quanto aos efeitos das decisões proferidas no controle direto e no controle incidental.

De fato, cabe ao STF, enquanto guardião da Constituição, dar a última palavra sobre como a Constituição deve ser interpretada. A rigor, sabemos que interpretações divergentes enfraquecem a força normativa da Constituição. Com base nesse raciocínio, defende a própria Corte que as suas decisões tenham sempre efeito erga omnes, mesmo em se tratando de controle concreto de constitucionalidade. Com isso, estaria-se abstrativizando (ampliando para todos) uma decisão que, a princípio, deveria ser tomada apenas em relação a um caso concreto. Por isso que se fala, então, em Teoria da Abstrativização do Controle Concreto de Constitucionalidade. Desse modo, segundo essa tese, quando o STF interpretar a Constituição, mesmo que se trate de um processo subjetivo em controle concreto, essa interpretação não deve valer apenas para as partes envolvidas, mas deveria ter efeito erga omnes, considerando a premissa de que o STF, como guardião constitucional e exercendo o papel contra-majoritário, é quem dá a última palavra no que tange à interpretação constitucional. Nesse sentido, haveria de ser reconhecida à decisão do STF, mesmo em controle concreto, também eficácia erga omnes, assim como ocorre no controle abstrato.

O fundamento da releitura do art. 52, X, da CF/88 pelo STF é de que seria possível falar-se em uma autêntica mutação constitucional, sobretudo, em razão da completa reformulação do sistema jurídico, trazido pelos institutos da ADC, ADPF, Súmula Vinculante e outros, resultando na necessidade, por conseguinte, da nova compreensão à regra do art. 52, X, da Constituição Federal. Portanto, defende parcela da Suprema Corte que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, esta decisão, mesmo se tratando de um processo constitucional concreto e subjetivo, teria efeitos gerais (abstrativização do controle concreto; objetivização do processo subjetivo), fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão e, nessa hipótese, não seria mais a decisão do Senado que conferiria eficácia geral ao julgamento do Supremo, mas a própria decisão da Corte já teria efeitos vinculantes para todos, também em controle difuso. A facultatividade e eventual não-publicação pelo Senado, nessa hipótese, não teria o condão de impedir que a decisão do Supremo assumisse sua real eficácia erga omnes.

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Entretanto, a tese encampada pela Corte ainda não vingou, sendo mera tendência que se observa no âmbito do STF. Esse entendimento recente proferido pelo STF mostra, de certa forma, a tendência de uma parcela da jurisprudência da Corte Suprema, encabeçada principalmente pelo Min. Gilmar Mendes, qual seja, a de abstração do controle difuso de constitucionalidade, por meio do alargamento dos efeitos da decisão do STF em sede de controle incidental, independentemente da resolução do Senado, tendo por fundamento o fenômeno da mutação constitucional informal. Mas esse pensamento demonstra apenas uma linha de atuação de alguns ministros do STF, tendo ganhado força nos últimos anos, mas por enquanto trata-se apenas de teoria, tendência, que na prática não foi efetivada. A doutrina, aliás, critica essa tese, sobretudo, à luz do princípio instrumental da justeza ou conformidade funcional, que impede interpretações em que se cheguem a resultados que subvertam a estrutura funcional da Constituição. Caso contrário, estaríamos conferindo uma interpretação na qual reduziríamos o Senado à diário oficial do STF, alterando consideravelmente a sua função constitucional. O modelo alinhado pelo constituinte não foi reduzir o Legilativo a dar mera publicidade à decisão da Suprema Corte. Imaginar o contrário seria violar o próprio equilíbrio do sistema tão consagrado pelo princípio da separação dos poderes.


4. CONCLUSÃO

Por todo o exposto, podemos verificar que o poder constituinte trata-se de poder permanente de organização social e política do povo, não se esgotando com a elaboração da Constituição, sendo possível a sua alteração, o que se dá por meio do chamado poder constituinte derivado reformador. O modelo constitucional brasileiro classifica-se como rígido, exigindo-se um procedimento muito mais dificultoso para eventual alteração do texto constitucional, como se retira dos limites explícitos (materiais) e implícitos (formais e circunstanciais) constantes no núcleo intangível das cláusulas pétreas. De toda forma, a alteração do texto da Constituição não é somente a única forma de modificação (mutação) constitucional. Admite-se, hoje, pela via hermeneutica, a alteração constitucional por meio do fenômeno da mutação constitucional informal.

Vimos que intenso debate, por decorrência desse fenômeno interpretativo, trava-se quanto ao art. 52, X, da CF/88. Conforme tese levantada na Corte Suprema, a Constituição de 1988 teria modificado de forma ampla o sistema de controle de constitucionalidade e seria imperiosa uma releitura do referido dispositivo constitucional, especialmente quanto à exigência da suspensão de execução da lei pelo Senado Federal. Nesse sentido, o STF propunha uma mutação constitucional em face do art. 52, X, da CF/88, para defender a possibilidade de que suas decisões proferidas em sede de controle incidental tivessem abrangência subjetiva ampliada com produção de efeitos erga omnes, independente da decisão do Senado quanto à suspensão da execução da lei impugnada.

Contudo, vale observar que após a EC 45/04, o debate sobre a abstativização do controle difuso acabou diminuindo, justamente porque surgiu um novo instituto ao STF que acaba surtindo os mesmos efeitos: a Súmula Vinculante, que parte de casos concretos e estabelece-se obrigatoriedade com eficácia erga omnes. Portanto, se por um lado, ainda não se aceita que houve a mutação constitucional informal do art. 52, X, da CF/88, por outro lado, o debate acerca da abstrativização no controle difuso ficou amortecido com a súmula viculante, que produz o mesmo efeito.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 2ª ed. Saraiva, 2010.

FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. 37ª ed. Saraiva, 2011.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 15ª ed. Saraiva, 2011.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 7ª ed. Saraiva, 2012.

MARTINS, Ives Gandra da Silva. MENDES, Gilmar Ferreira. NASCIMENTO, Carlos Valder do. Tratado de Direito Constitucional, v. 1. 2ª Ed. Saraiva, 2012.

NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. 6ª ed. Método, 2012.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 34ª ed. Malheiros, 2011.

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Sobre o autor
Francisco Gilney Bezerra de Carvalho Ferreira

Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção e MBA em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal em exercício pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Professor do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Luciano Feijão (FLF-Sobral/CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra Carvalho. Mutação constitucional informal e a abstrativização do controle concreto de constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3841, 6 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26225. Acesso em: 22 dez. 2024.

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