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Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da “Ficha Limpa”): violação de princípios constitucionais

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Resumo:


  • A Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como "Lei da Ficha Limpa", desperta opiniões divergentes entre estudiosos, sendo considerada por alguns inconstitucional por violar o princípio da presunção de inocência.

  • A referida lei visa proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato, tornando inelegíveis candidatos condenados por órgão colegiado da Justiça, mesmo antes da vigência normativa da lei.

  • O Supremo Tribunal Federal decidiu pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, argumentando que não fere o princípio da presunção de inocência, pois cria uma condição de elegibilidade e não impõe uma pena.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Como levar em conta a vontade de um povo que não possui mínimos conhecimentos jurídicos, tampouco garantias e princípios constitucionais para a formulação de uma lei de tal magnitude?

Resumo: O presente estudo faz uma análise, através de pesquisa teórico-jurídica sobre os impactos causados pela Lei Complementar nº 135/2010, mais conhecida como “Lei da Ficha Limpa”, especificamente no que tange à sua criação, aplicação e aceitação no aspecto político. A Lei da Ficha Limpa desperta opiniões bastante divergentes entre os estudiosos do assunto, uma vez que acarreta uma drástica mudança na política nacional, sendo que para alguns, a referida lei é inconstitucional, pois viola o princípio da presunção de inocência, enquanto que outros a consideram um dos maiores avanços em matéria eleitoral, já ocorridos no país.

 

Palavras-chave: Lei Complementar nº 135/2010. Ação Popular. Presunção da Inocência.


INTRODUÇÃO

De acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal de 1988, os casos de inelegibilidade, bem como os prazos de cessação, além de outras providências relacionadas aos direitos políticos devem ser regulamentados mediante lei complementar.

Desse modo, a Lei Complementar nº 64/1990 foi alterada pela Lei Complementar nº 135/2010, que acrescentou hipóteses de inelegibilidade que visam proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato, independentemente do trânsito em julgado da decisão e, além disso, tornam inelegíveis os candidatos condenados por órgão colegiado da Justiça, antes mesmo da sua vigência normativa.

O significado e os amplos efeitos que afetam o processo eleitoral justificam não categorizar a LC nº 135/2010 como mais uma regra sobre inelegibilidade, mas como norma dotada de eficiência para interferir na formalização das candidaturas e impedir que a Justiça Eleitoral habilite a participação no processo político, fazendo incidir, sobre o status de cidadão, um direito político negativo. É, portanto, norma restritiva do exercício da cidadania pela criação de direitos políticos negativos, ao passo que o Direito Eleitoral consagra a plenitude dos direitos positivos e o respeito à soberania popular.

O parágrafo único do art. 1º da Constituição Federal de 1988 estabelece que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Por esse motivo defende-se, no âmbito do presente estudo, uma interpretação mais favorável ao cidadão evitando-se, dessa forma, uma relativização da vontade coletiva mediante escolhas antecipadas pelo Judiciário, pois, caso contrário, estar-se-á contribuindo para a insegurança jurídica e a vulnerabilidade do Estado Democrático de Direito.

Neste sentido, este trabalho versa sobre a criação da Lei Complementar nº. 135/2010, sua (in)constitucionalidade e os impactos causados pela mesma, no que concerne à sua aplicação e aceitação no cenário político. A discussão aqui levantada tomará como base a constitucionalidade da referida lei – sendo que nossa tomada de posição (e hipótese) será a de que a mesma é incompatível com o princípio da presunção da inocência, bem como com os direitos políticos do cidadão. O problema que move este trabalho e que moldará seu corpus está baseado na seguinte pergunta: Por que a “Lei da Ficha Limpa” é inconstitucional?

O presente trabalho justifica-se tanto por sua atualidade no cenário nacional e repercussão gerada, como pela busca de uma melhor compreensão sobre seu impacto político e social, além de contribuir para o âmbito da pesquisa acadêmica, que perpassa por uma escassez de pesquisas relacionadas ao assunto, pois, como se sabe a lei ainda é muito recente. Além disso, o objeto de estudo apresenta múltiplas facetas, evidenciando que este é apenas um dos inúmeros ângulos possíveis de ser analisados.

Por fim, este estudo também deriva de uma inquietação pessoal, não apenas porque o graduando faz parte do universo político, mas também porque como estudante de Direito, já compreendia, desde cedo, que uma lei não pode violar ou ser incompatível com outra, ainda mais se tratando de garantia constitucional. É muito simples: se “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CF, artigo 5º, LVII), a “Lei da Ficha Limpa”, claramente não respeita esta garantia, visto que o cerne da mesma está em determinar a inelegibilidade de agentes políticos com base em condenação ainda não transitada em julgado, não definitiva, passível de recurso, presumindo-se a culpa e não a inocência nestes casos.     


1. A “Lei da Ficha Limpa”

A Lei Complementar nº 135/2010, que ficou conhecida em âmbito nacional como “Lei da Ficha Limpa” foi originada de um projeto de lei de iniciativa popular que reuniu mais de 1,3 milhão de assinaturas, o que corresponde a 1% dos eleitores brasileiros.

A respeito da iniciativa popular, a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu art. 61, § 2º, contempla a seguinte regra:

Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição.

§ 2.º A iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles.

O ordenamento jurídico brasileiro contempla o exercício da soberania popular, que pode ser feita através de três formas: plebiscitos, referendos ou iniciativas populares. O plebiscito e o referendo consistem em consultas que se fazem à população para saber sobre sua apreciação a respeito de algum assunto. No plebiscito, a consulta é feita antes do ato legislativo ou administrativo; no referendo a consulta é posterior ao ato, no sentido de ratificá-lo ou conceder-lhe eficácia, segundo Nucci (2010).

A iniciativa popular, de acordo com Siqueira e Neves (2010, s/p) trata-se de uma iniciativa de lei, onde se dá o início da formulação de alguma lei. “É a faculdade que a Constituição atribuiu ao povo para apresentar projetos de lei ao Poder Legislativo”.

Dessa forma, cabendo também ao povo o instrumento constitucional, o projeto de lei foi entregue ao então Presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, em 29 de setembro de 2009, pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE)[1], e tramitou na Câmara como Projeto de Lei Complementar nº 518/09, tendo sido aprovado na Câmara dos Deputados no dia 5 de maio de 2010, com a aprovação no Senado Federal ocorrida no dia 19 de maio de 2010, por votação unânime. Em seguida, a Lei Complementar nº 135, de 4 de junho de 2010 foi sancionada pelo então Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva.

O preâmbulo da referida lei apresenta a seguinte redação:

Altera a Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, que estabelece, de acordo com o § 9º do art. 14 da Constituição Federal, casos de inelegibilidade, prazos de cessação e determina outras providências, para incluir hipóteses de inelegibilidade que visam a proteger a probidade administrativa e a moralidade no exercício do mandato.

Em síntese, a Lei Complementar nº 135/2010 visa impedir que políticos com condenação na Justiça possam concorrer a eleições. Em relação à lei complementar anterior (nº 64/1990), as modificações ocorridas na atual são mais severas, pois foram criadas outras inelegibilidades, ainda mais austeras, e aumentaram-se os prazos para que determinado cidadão com a ficha suja fique inelegível. O candidato passa a ser analisado com maior rigor. Caso exista algum indício de ato criminoso em sua vida pregressa e em seu histórico cível, este candidato não poderá estar habilitado a concorrer eleições.

Dentre as diversas disposições, a lei institui a inelegibilidade, por oito anos, de agentes políticos (Presidente da República, Governador de Estado e do Distrito Federal, Prefeito, membros do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas, da Câmara Legislativa e das Câmaras Municipais) que foram condenados por órgão colegiado pela prática de alguns crimes previstos na norma. Entre os crimes, podemos citar aqueles contra a fé pública, o patrimônio público ou privado, o sistema financeiro, o meio ambiente, a saúde pública, abuso de autoridade, lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores, tráfico de entorpecentes, entre outras drogas, além de racismo, tortura, terrorismo e hediondos. Enfim, quase todos os tipos de crimes estão incluídos na lei.

Vale ressaltar, entretanto, que o Supremo Tribunal Federal, no dia 23 de março de 2011, decidiu que a “Lei da Ficha Limpa” não poderia ser aplicada às eleições de 2010, sob o argumento de que, se assim fosse, estar-se-ia desrespeitando o art. 16 da Constituição Federal, que trata da anterioridade da lei eleitoral. A redação do referido dispositivo constitucional é a seguinte: “A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 (um) ano da data de sua vigência”.

Isso significa que, a partir da mencionada decisão, os Ministros do STF estão autorizados a decidir, individualmente, os casos sob sua relatoria. A decisão aconteceu no julgamento do Recurso Extraordinário nº 633703, que discutiu a constitucionalidade da Lei Complementar nº 135/2010 e sua aplicação nas eleições de 2010.

Diante da grande polêmica que a lei complementar gerou, principalmente no que concerne à sua constitucionalidade (e sua (in)compatibilidade com o princípio da presunção da inocência), em 2012 o STF abriu novo debate alegando a constitucionalidade da lei. Isto porque, a decisão dos ministros foi sustentada com base no artigo 14, § 9º da Constituição, que autoriza o legislador a criar hipóteses de inelegibilidade para proteger a probidade administrativa e a moralidade para o exercício do mandato. Assim, a Lei Complementar nº 135/2010 acrescentou as seguintes hipóteses de inelegibilidade absoluta para:

a) Os ocupantes de cargos eletivos que renunciarem a seus mandatos para escaparem de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, Estadual ou Lei Orgânica;

b)  Os que tenham contra a sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral;

c) Os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, por diversos crimes. Esses crimes estão transcritos na lei, pela alínea e;

d) Os que forem declarados indignos do oficialato, ou com ele incompatíveis, pelo prazo de 8 (oito) anos;

e) Os que no exercício de cargos ou funções públicas tiverem suas contas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa e, por decisão irrecorrível de órgão competente;

f) Os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político, que forem condenados em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado;

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g) Os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;

h) Os que forem condenados à suspensão dos direitos políticos;

i) Os condenados em razão de terem desfeito ou simulado desfazer vínculo conjugal ou de união estável para evitar caracterização de inelegibilidade;

j) Os demitidos do serviço público em decorrência de processo administrativo ou judicial;

k) A pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais;

l)  Os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos.

Segundo Bottini (2012), mesmo que a Constituição permita que o legislador crie situações de inelegibilidade, com o objetivo expresso de proteger a moralidade, inclusive levando em conta a vida pregressa do candidato, mesmo assim, a lei estaria ferindo o princípio da presunção da inocência. Nas palavras do autor:

O que se discute, no entanto, não é qual comportamento atrai a inelegibilidade, mas como se constata a existência desse comportamento. Não se nega que o ímprobo, o criminoso, o moralmente combalido deva ser considerado inelegível. A questão, no entanto, é qual o requisito para considerá-lo ímprobo, criminoso ou moralmente combalido. Quais os procedimentos para atestar a existência destas qualidades que atraem a inelegibilidade (BOTTINI, 2012, s/p).

Para ele, o ponto central da discussão consiste no fato de que o ímprobo ou criminoso só será ímprobo ou criminoso quando for julgado definitivamente. As reflexões iniciadas aqui serão aprofundadas no tópico a seguir.

 


2. Por que a “Lei da Ficha Limpa” é inconstitucional?

A aplicação da Lei da Ficha Limpa possui grande relevância social, pois interfere na vida e na decisão de inúmeros políticos e eleitores, respectivamente. Bastante aclamada pela população, a lei desperta divergências quanto à sua constitucionalidade.

Como se sabe, grande parte da sociedade se mobilizou no sentido de que a lei entrasse em vigor, tanto que foram recolhidas cerca de 1,3 milhão de assinaturas, o que demonstra o interesse dos cidadãos em mudar a realidade política nacional. Por outro lado, não menos verdadeira é a afirmação de que grande parte dos eleitores votou em inúmeros candidatos com “ficha suja”, sendo que alguns deles chegaram até a serem eleitos. No auge da discussão sobre a nova lei, bastante publicizada pelos meios de comunicação, no ano de 2010, foi possível identificar o quanto os eleitores ainda pareciam não estar preparados pelas mudanças que a nova lei acarretaria.

Exemplo emblemático do que acaba de ser dito é o caso do senador Jader Barbalho, na vida pública há 44 anos, acusado do desvio de mais de um bilhão de reais dos cofres públicos.

Nas eleições de 2010 o referido político recebeu 1,8 milhão de votos e conquistou, nas urnas, o mandato de senador (Veja, 2011). Isso mostra o quanto o povo brasileiro é paradoxal na busca da democracia. Mesmo que a lei não tenha entrado em vigor no ano de 2010, havia um grande debate nos meios de comunicação a respeito do assunto, e a população já tinha pleno conhecimento sobre do que se tratava a referida lei, bem como os crimes praticados pelo candidato.

Conforme já mencionado, a Lei Complementar nº 135/2010 impossibilita, a partir das eleições do ano de 2012, o registro de candidatos com processos julgados ou ainda em tramitação. Apesar de reconhecermos as transformações benéficas que esta lei poderia acarretar na política nacional brasileira, bem como na busca de uma democracia mais efetiva em nosso país, acreditamos ser a mesma inconstitucional em suas pretensões, pois fere um outro princípio constitucional, de igual relevância para o exercício da democracia e da cidadania – o princípio da presunção da inocência.

Diz o texto da Constituição Brasileira de 1988 em seu artigo 5.°, inciso LVII: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". A presunção da inocência, apesar de ser alvo de críticas, sendo encarada como símbolo de impunidade ou ineficácia, pode ser considerada como uma garantia irrefutável para o cidadão. Ela salvaguarda o direito de o acusado de ato ilícito ser tratado de forma digna, até que se solidifiquem todas as acusações, pois até que as mesmas não sejam concluídas, existe a possibilidade e probabilidade de se provar a inocência.

Como pondera Martinelli:

A presunção de inocência é uma das mais importantes garantias constitucionais, pois, através dela, o acusado deixa de ser um mero objeto do processo, passando a ser sujeito de direitos dentro da relação processual. Trata-se de uma prerrogativa conferida constitucionalmente ao acusado de não ser tido como culpado até que a sentença penal condenatória transite em julgado, evitando, assim, qualquer conseqüência que a lei prevê como sanção punitiva antes da decisão final (MARTINELLI, 2000).

Além disso, reconhece-se que é através deste princípio constitucional que outros como o direito à ampla defesa, o direito de recorrer em liberdade, o duplo grau de jurisdição, entre outros são gerados.

Assim, nada mais correto que salientar que o princípio da presunção da inocência é “o sustentáculo de um sistema seguro e estável, que evita a antecipação de efeitos — às vezes irreparáveis — de uma decisão que pode ser revista e considerada injusta posteriormente” (BOTTINI, 2012).

 Originária da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que por sua vez é resultado das conquistas da Revolução Francesa, a presunção de inocência está regida no artigo 9° desta mesma Declaração: "Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei".

Neste sentido, este princípio já encontrava-se ancorado nos ideais de democracia regidos pela Revolução Francesa. Por isso, podemos certamente considerá-lo como um avanço inquestionável em matéria de Direito.

Em comparação com o princípio da não culpabilidade, diferenças bem sutis são interpeladas. De acordo com Martinelli (2000), citando Tucci (2000), ao colocar a expressão “ser imputado”, pode-se chegar à conclusão de que o réu, neste caso é colocado numa posição neutra, ou seja, ele nem é considerado culpado, nem inocente. 

O princípio da presunção de inocência coloca o réu em situação positiva, enquanto o princípio da não culpabilidade o deixa em posição neutra dentro do processo. Convém, no entanto, salientar que, tecnicamente, ambos os princípios são iguais e, na prática, alcançam os mesmo efeitos. Como encerra Jaime Vegas Torres, "a doutrina mais recente, sem embargo, proclama que não é possível distinguir ‘presunção de não culpabilidade’ e a ‘presunção de inocência’” (MARTINELLI, 2000).

Apesar da ciência destes fatos, o Supremo Tribunal Federal ignorou este importante princípio e reconheceu a constitucionalidade da lei complementar ora analisada. O STF entendeu que a “Lei da Ficha Limpa” não afeta o princípio da presunção de inocência porque não impõe uma pena, somente cria uma condição de elegibilidade, e que, por isso, não precisaria observar tal princípio. Ora, ao restringir o direito do cidadão de se candidatar a um cargo público, não estaria a Justiça impondo uma culpa a este cidadão antes mesmo que este possa provar sua inocência? E mais, não seria esse um tipo de pena, a violação de um direito político salvaguardado na Constituição Federal?

 Como afirma Bottini, algumas regras que tornam o cidadão apto a se candidatar, como:

[...] ser brasileiro, alistado, ter domicílio na circunscrição, filiado, ter idade mínima, ou ser alfabetizado, por exemplo, são condições de elegibilidade cuja existência não se relaciona com qualquer comportamento anterior sobre o qual recaia uma reprovação. Já a inexistência de condenação colegiada tem íntima relação com o reconhecimento de culpa pela prática de um crime.

Com esta assertiva, o que nossa Justiça estaria fazendo, é tornar incompatíveis as leis estabelecidas na Constituição, pois ao considerar a vida pregressa do candidato, através de processos que ainda não foram julgados definitivamente como requisito para sua elegibilidade, reconhece-se um juízo de culpa anterior, colocando-o em posição de culpado, não em posição neutra, como seria correto se aplicar no princípio da não culpabilidade.

Mesmo que muitos estudiosos do Direito afirmem que o princípio da presunção da inocência apenas caiba à esfera do Direito Penal, é certo que há outras manifestações, inclusive do próprio ministro do STF, afirmando o caráter impermutável de tal garantia. As palavras do Ministro Celso de Mello ecoam a seguinte assertiva:

[...] a presunção de inocência, embora historicamente vinculada ao processo penal, também irradia seus efeitos, sempre em favor das pessoas, contra o abuso de poder e prepotência do Estado, projetando-os para esferas processuais não criminais, em ordem de impedir, dentre outras graves consequências, no plano jurídico (...) que se formulem, precipitadamente, contra qualquer cidadão, juízos morais fundados em situações juridicamente ainda não definidas (MELLO, apud PAGANELLI, 2012).

Com uma visão ainda mais radical sobre o assunto, Paganelli (2012) afirma que a referida lei, no que concerne à condenação por órgão colegiado, nos faz lembrar as leis da época ditatorial. Para o autor, “como lei infraconstitucional, não poderia, jamais, instituir uma condição de inelegibilidade em total afrontamento a ordenamento jurídico hierarquicamente superior”.

Neste sentido, ao invés de a “Lei da Ficha Limpa” representar um avanço para a democracia e cidadania brasileiras, quando se contrapôs aos princípios constitucionais, o que ela fez infelizmente foi representar um retrocesso. Se o texto da lei tornasse apenas inelegíveis aqueles candidatos cujo processo fora julgado definitivamente, aí sim, ela estaria de acordo com a Constituição Federal.

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Sobre o autor
Fábio Alexandre Barbosa Rocha

Secretário de Administração, Coordenação, Planejamento e Desenvolvimento Econômico da Prefeitura Municipal de Turvelândia, GO e Bacharel em Direito pelo Instituto de Ensino Superior de Rio Verde (2013).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Fábio Alexandre Barbosa. Lei Complementar nº 135/2010 (Lei da “Ficha Limpa”): violação de princípios constitucionais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3832, 28 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26244. Acesso em: 18 dez. 2024.

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