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Estado moderno:

características, conceito, elementos de formação, instituições políticas, natureza jurídica, atualidades

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28/12/2013 às 07:10
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30. O ESTADO CIBERNÉTICO

o governo inteligente

Apesar do título ser estranho aos não-iniciados, este modelo ou Teoria Geral do Estado é uma das mais antigas ou clássicas. Cibernética vem do grego kibernetiké - Kybernets e se identifica como a ciência que estuda a comunicação como meio de controle. Politicamente, diz-se que o Estado é o piloto, o guia, o timoneiro, o chefe que dá direção, determina os meios para se alcançar o fim proposto.

Ainda cabe ressaltar que o modelo cibernético (muito bem delineado pelo cientista social Karl Deutsch) traz uma estrutura/relação de fundo em que devem convergir a aprendizagem do sistema, a capacidade de adaptação aos desafios e à realidade, a partir da informação social, política recebida. De forma simples, pense se o Estado brasileiro tem capacidade de gerir os dados sociais (informações culturais) a fim de se adaptar às necessidades atuais.

Com esta informação inicial, indaguemos: o Estado brasileiro é cibernético? O leitor terá suas conclusões, mas pense se o Estado brasileiro é inteligente, responde com rapidez aos graves problemas sociais buscando as soluções mais adequadas? A cultura é vista ou recebida no interior do Estado como fato gerador da transformação social? Governo e legislador são capazes de absorver a cultura na ordem das políticas públicas? O legislador leva em conta a divergência cultural e a diversidade regional ao pensar a lei nacional?

Para Deustch, a própria lei ou capacidade legislativa do Estado deve expressar a inteligência política do modelo racional trazido pela cibernética. No entanto, sua lição é preciosa porque nos comprova que não importam as tais leis severas, “pesadas”, mas sim as leis adequadas e socialmente justificáveis:

“Quando os hábitos de submissão da população declinam ou desaparecem, as leis podem tornar-se inaplicáveis. Estas tornam-se, geralmente, de difícil execução quando menos de 90% da população lhes obedece voluntariamente. Foi o que aconteceu com a proibição. Um pouco mais de 50% do eleitorado americano tentou proscrever a sede de bebidas alcoólicas de um pouco menos dos outros 50%, mas a generalizada insubmissão às leis correspondentes impossibilitou o seu cumprimento. Isto, por sua vez, encorajou ainda outras desobediências à lei [...] Usamos leis para controlar o comportamento humano porque não custa muito fazê-las aprovar e, desde que a maioria das pessoas lhes obedeça voluntariamente, também não custa muito pô-las em vigor”.

Deustch trata da famosa Lei Seca das décadas de 1920-30, nos EUA, uma “lei que não pegou” porque, como vimos, metade da população não estava de acordo e a descumpriu ostensivamente, instigando o poder público com o ato de vender, comprar e beber bebida alcóolica. Esta desobediência civil americana – não cumprir a lei – produziu um exército de mafiosos, com Al Capone na liderança.

Desse modo, vemos claramente que só nos importa a crença na lei, sem esta confiança simplesmente cada um faz da própria vontade a lei a ser seguida. A confiança na lei, no entanto, não se compra, nem se impõe a marretadas. O Estado de Direito e o cumprimento ao seu “império da lei” (princípio da legalidade) decorre da legitimidade que se verifica (ou não) no Estado Cibernético.

A confiança no Estado de Direito derruba a síndrome da impunidade, combatendo a corrupção, o desleixo político, a incapacidade sistêmica de resolver os mais graves problemas sociais, como das drogas ilícitas e o analfabetismo funcional. O povo cumpre a lei em que vê alguma lógica, que lê e compreende sua redação – aí sim deposita sentido e aprova seu conteúdo. Do contrário, a incapacidade de acreditar no sistema se revela como o celeiro de Al Capone, Beira-Mar e Cachoeiras, dentro e fora do Estado.

O mesmo modelo do Estado Cibernético nos permite ver outras questões de fundo da democracia nacional. Como forma de governo, a exemplo do mundo civilizado, no Brasil nós encontramos mecanismos para dialogar racionalmente com a meritocracia (governo dos melhores)? Primeiro que nosso modelo político não reflete os maiores dilemas sociais – históricos – ao coibir a entrada (input) de muitos dos melhores cidadãos, dos mais aptos e capazes, de maior mérito, nos sistemas funcionais da vida pública.

O Estado que é refém do governo, em que não há suficiente profissionalização da administração pública, ainda funciona na base da lógica amigo/inimigo: “aos amigos, tudo; aos inimigos a lei”. É óbvio que este sistema não pode prosperar, afinal quase nunca os melhores estão entre os amigos; os melhores, por serem melhores, ameaçam continuamente o poder estabelecido. Assim, ao invés da meritocracia estimulada pelo Estado Cibernético, temos o efeito contrário, com o governo dos piores, acomodados e cínicos, neste conhecido governo dos medíocres (oclocracia).

Em todo o mundo, criou-se, a partir de alguns dos problemas mais complexos da vida moderna, uma interdependência crescente entre as áreas do conhecimento porque a solução de muitos problemas não é mais uma questão puramente política, ou de solução simples, exigindo-se a participação determinante de especialistas, cientistas e experts.

No Brasil, no entanto, a necessidade de um governo técnico não avança no sentido de uma profissionalização, ficando a cargo do chefe do executivo sua contratação ou não. A expertocracia (aliança entre saber e poder) é uma exceção, como vemos na assessoria técnica dos ministros do Supremo Tribunal Federal. A política, grosso modo, ainda se vê tutelada, marcada pelas deturpações históricas na gestão e domínio do Estado. Enquanto muitos países conseguem gerir a representação política com a participação popular (Suíça), no Brasil empregamos o populismo de direita e de esquerda. A assistência social é importante no combate da miséria absoluta, mas não pode ser moeda de troca política.

Países conseguem organizar um sistema político “proporcional”, articulando eleição livre com indicação partidária de experts¸ sábios, intelectuais representativos da massa crítica nacional (Alemanha), ao passo que no sistema político brasileiro existe uma gerontocracia, como governo das “velhas raposas”. Em Rondônia, pratica-se a expertocracia com Mangabeira Unger.

Por fim, cabe frisar que o Estado Cibernético tem na razão – como superação ideológica – o mecanismo político mais promissor da organização e do controle social. Um Estado Cibernético tem leis mais racionais, legítimas, inteligentes, equilibradas e menos suscetíveis aos interesses privados; do mesmo modo que as leis racionais não dispendem de tanta pressão, coerção para sua fixação e cumprimento. A lei racional implica em compromisso social, até que porque esta lei reflete uma longa reflexão social.

A lei racional, proveniente do Estado Cibernético, revela que o processo legislativo envolveu muito mais sabedoria, discussão democrática e que sua determinação é consensual, articulada entre os grupos interessados. A lei racional é baseada no diálogo político e este é o maior indicativo da superioridade do Estado Cibernético. Na teoria vai bem, na prática temos o que foi diagnosticado para o caso brasileiro.

Dominação tecno-intelectual

A expressão não é uma mera renomeação da já conhecida razão instrumental. Primeiro, porque se pode até alegar que a razão sempre esteve passo a passo com a técnica: razão e instrumento (e julgamento). Depois porque se está, na verdade, afirmando que há um preconceito julgando e acolhendo as melhores ações. O julgamento preconceituoso que fora instituído, injustamente, pelos seus maiores e primeiros beneficiários: os de inteligência superior. O expert que julga a si mesmo como tal, do alto de seu Know How, e institui a regra única de que os demais são ineficazes, incapazes, ineficientes ou inaptos. Daí também a função milagrosa e corretiva que os experts atribuem a si mesmo. É de se lembrar ainda que esse privilégio (a auto-concessão de regalias baseada na pretensa superioridade) institui ao privilegiado, aos escolhidos pela natureza genética, a tábula rasa de demover os demais da ignorância: o saber é poder, mas é acima de tudo salvação. Por isso, também não se resume à crítica fundada na burocracia ou tecnocracia: a técnica se adquire, a inteligência é refinada pela ordem natural, pela combinação de gens – um dom, portanto. Em uma palavra, o novo argumento da dominação está pautado na superioridade intelectual, cognitiva, na possível genialidade e não exatamente no uso da razão ou, então, na simples demonstração ou uso efetivo de certa quantidade de conhecimento acumulado (Know How tecnocrático). Não há susto, portanto, quando o de maior aptidão intelectual age para desprestigiar e ironizar os mais criativos – veja-se, neste último caso, o desconforto que o bricolé sempre causou na academia. De outra forma, ainda se dirá que a inteligência não pode ser emotiva, visto que é imperioso ser efetiva: os sentimentos ofuscam a razão, impedindo a escolha mais acertada ou adequada. Intuição, por sua vez, é feminino demais, portanto, quase magia.

O pior, no entanto, é que, dado esse mesmo desenvolvimento racional, controlado e tecnificado, impõe-se uma modalidade de auto-esquecimento dos malefícios e transtornos que a própria lógica mecanicista acarreta. O próprio indivíduo já não consegue (talvez não queira) lembrar-se, recordar-se das partidas perdidas e, assim, delas também tirar proveito, aprendizagem (isso não equivale a dizer que se aprende com os próprios erros). Mas é preciso saber limitar, além perceber os limites, e sejam os da nossa experiência pessoal sejam os da própria tecnologia (pois, dada a infalibilidade, sempre haverá questionamento).

Aquele que faz mal ao outro, também faz mal a si! Esta talvez possa ser a máxima, a regra máxima, dessa ética tecnicista, e com ela podemos decifrar o seguinte: é bom, imediatamente transforma-se em mal! Mas será isso tão simples e pacífico? Vejamos passo a passo, iniciando pelo lado bom, pela ideia mesma da conexão ampliada ao mundo tecnológico:

Mais da metade de todas as residências sul-coreanas possui conexões de alta velocidade, comparadas com menos de 10% nos EUA, e a explosão de sites gerou movimentos que exercem efeitos da política à cultura do consumidor [...] O maior sucesso da banda larga, a única atividade que faz sombra a todas as outras, são os jogos de azar on-line, disputados por 80% dos sul-coreanos com menos de 25 anos, segundo estudo recente (French, 30 out. 2002).

Agora, vejamos o mal possível de ser feito, esse tipo de mal intrínseco, subjacente ao ser, mas que ganha potencial de dano, que se potencializa, através do meio: “Os jovens estão perdendo a capacidade de se relacionar, a não ser por meio de jogos. Pessoas que se tornam dependentes tendem a apresentar comportamento violento” (French, 30 out. 2002).

Por fim, vejamos uma aplicação real, concreta, disso que denominamos de a regra máxima da ética tecnicista (aquele que faz mal ao outro, necessariamente faz mal a si) 193:

O primeiro, que tinha 24 anos, morreu depois de passar 86 horas jogando sem parar. Identificado apenas como Kim, o jovem teria sentado em frente ao micro, em um cibercafé, na sexta-feira à noite, dia 19 deste mês, e saído na terça-feira de manhã, dia 22. Durante o período, ele não teria comido ou dormido o suficiente. Na manhã de terça, ele desmaiou em frente ao balcão do cibercafé onde jogava, mas logo recuperou a consciência. Depois foi encontrado no banheiro do local (free-lance 30 out. 2002).

A ignorância não é abominável, é salutar, mas só se nos reconhecemos como ignorantes dos muitos sentidos da vida e assim nos abrimos às possibilidades de investigá-los, dado que os ignorávamos anteriormente. Afinal, qual terá sido a mensagem de Aristóteles (na expressão consagrada do “só sei que nada sei”) se não essa?

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Outro Olhar Crítico sobre o Estado Irracional

De outra forma, retomando os aspectos globais, com a perda da legitimidade, o Estado perde sua eficiência, vigência, evidência, potência (onipresente, onipotente, onisciente). Torna-se prepotente, pois que tenta (em vão) impor-se pela força (a pré-potência).

De visionário (vim, vi e venci), o Estado passa à condição de coadjuvante, tele-expectador e nem sempre ativo ou consciente das regras exibidas – o Estado perde(u) visão e, às vezes, é o próprio alvo. Essa perda de foco, de enfoque estatal, deve-se especialmente ao fato de que o mundo e a realidade presente no ato de criação do Estado-nação não existem mais. A dinâmica, a transformação, a mudança, enfim, a incerteza e a instabilidade provocadas sucessivamente abalaram fortemente as noções clássicas, estanques, rígidas, presumíveis, controláveis e controladoras (a essência do próprio Estado confere a essas condições o status de cláusulas pétreas. E hoje as pedras se desmancham no ar). Duas heranças dessa rigidez são a segurança pública e a segurança jurídica.

Por isso, a comunicação virtual (Internet, Web), em tempo real, instantânea, sobrepondo-se às barreiras, fronteiras, entraves e obstáculos (burocráticos, legais, racionalizados e utilizados como forma de limitação, intimidação e controle) é, talvez, a mais perceptível descaracterização das estruturas e dos sistemas estatais. Com a rede, a descaracterização e o dano são apenas potencializados.

Pode até ser que o Estado venha a adquirir uma espécie de olho mágico (o dirigível auxilia na segurança pública do Rio de Janeiro), mas, em compensação, perde o encanto e a falta de encantamento 194 é incapaz de nos ludibriar novamente com seus cantos de sereia (em 1964, foi O ouro pelo Brasil!). Assim, o Estado, sem propriamente um olhar mágico que atraia a razão para si, perde a batalha da videosfera 195 (os traficantes têm câmeras nas entradas das favelas e dos morros para fiscalizar, precisar, a chegada ou a entrada da polícia). O Estado tem sua imagem abalada 196, prejudicada – há um olhar crítico 197. Além dos problemas históricos de legitimação, na atualidade, o Estado enfrenta desafios propriamente chamados de pós-modernos.


31. ESTADO PÓS-MODERNO

Temas ou COISAS boas e más

Alguns dos problemas mais graves da atualidade são o individualismo, a relativização total e o pensamento mecanicista, como coisificação. COISA é algo muito ruim, porque reflete a falta de vocabulário, a falta de educação básica que deveria nos ensinar a expressar as “coisas” como elas são. Indica ainda certo desprezo, quando se diz que a escravidão tratava e trata as pessoas como coisas. Portanto, neste caso, o sujeito é quem subjuga os outros, transformando-os em objetos ou coisas inanimadas, inominadas. O sujeito acaba oculto ou inexistente pela ação da coisificação, materialização de elementos e propriedades ruins, depreciativas a alguém. A coisificação é o inverso, por exemplo da República, como (res) “coisa pública”, porque quem é coisa não é sujeito e onde não há sujeitos de direitos não há República.

A COISIFICAÇÃO é um processo sistemático. Processos de coisificação e de esterilização ou desertificação da consciência social em torno da coisa pública (como parte do pensamento maquínico, mecânico, instrumental, imediatista). Foi assim, por exemplo, que se forjou o conceito e as práticas do chamado Estado-Ciêntificista 198 que é o Estado que se se serve das bases técnicas como forças produtivas do sistema capitalista, cujo uso e aplicação indiscriminada tornou-se crítico para a sobrevivência do Planeta. Portanto, nosso desafio deveria ser o de olhar para além do pensamento maquínico: como se o homem moderno, pós-moderno fosse movido, determinado, inquestionavelmente, irredutivelmente, por uma rotina tal que a sua reflexão é condicionada pela presença das máquinas que o cercam. Não há vida inteligente sem as máquinas, sem elas voltaríamos à Idade Média. Não pensamos, não produzimos, não há comunicação sem a máquina. Também estão na pauta o valor de uso (como negação da autonomia e do campo de ação do homem, em que somos “usados” como coisas) e o valor de troca (foco da coisificação, em que os sujeitos são “vendidos”, trocados como coisas), como valores determinantes, ilimitados no mundo do sistema econômico capitalista.

Politicamente, este mundo reificado implica em outra topologia e tipologia de Estado. Por hora, chamemos de Estado Reificado – reificado porque não deixa de ser coisificação, não se trata da máquina pública 199 e de sua serventia ao capital, mas também porque estão em desacordo com muitas das necessidades atuais 200. É uma sociedade das coisas, com pleno domínio das massas:

Aqui não se tem mais a oposição massa/indivíduo, pois os indivíduos se tornam “dividuais” (divisíveis), e as massas se tornam amostras, dados, mercados [...] a “sociedade de controle” remete a trocas flutuantes, modulações intermediadas pela tecnologia e pelas senhas [...] o controle é próprio de um capitalismo de “sobre-produção”, que já não compra mais a matéria prima, e vende produtos acabados, mas que compra produtos acabados e monta peças destacadas, um capitalismo que quer vender serviços e quer comprar ações, um capitalismo que não é mais dirigido para a produção, mas para o produto (Fonseca, 2004, p. 271).

É crescente o processo de reificação, coisificação, em que o homem tende a ser programado, formatado à imagem e semelhança das máquinas. Essa coisificação da política, nos moldes do Estado Capitalista Moderno, também pode ser entendido como processo ideológico, quando se crê que o Estado possa ser realmente coisa pública. Entretanto, há o desafio certo de reverter o processo que transformou o Outro no Mesmo, nesta mesmice atroz e que vilipendia a própria individualidade, como quer Baudrillard (1990): Lá onde existia o Outro, adveio o mesmo. Por isso ainda é tão importante retornar aos clássicos para falar do mundo do trabalho, do mundo social e não apenas do homem-político: “O povo tornou-se público [...] Em momento algum as massas são engajadas de modo consciente política ou historicamente” (Baudrillard, 1993, p. 34).

A reificação ou coisificação são processos excludentes, tendentes a transformar o sujeito em objeto, a razão e a livre expressão em instrumentos de dominação, a liberdade em bens adquiridos, comprados. Esta é a base do pensamento moderno, é chamada de razão instrumental: a qual nasce quando o sujeito do conhecimento toma a decisão de que conhecer é de dominar e controlar a Natureza e os seres humanos. Para esta forma de pensamento nossa condição humana cada vez mais depreciada, torna-se obsoleta, mero degrau rumo à inteligência artificial, mas à custa, é claro, da consciência moral, da visão de mundo. O ser humano é hoje um ser imbricado à tecnologia, que só consegue ver na razão um exponencial capaz de transformar o interesse desejável na realidade possível – sem muita consideração com os meios empregados.

Na origem deste pensamento estão as ideias do Renascimento, com a expansão de um espírito prático e quantitativo, dando origem à mecânica e, com ela (com o aperfeiçoamento do mecanismo do relógio), uma nova concepção do homem. A realidade técnica, seguindo esta análise, nem sempre mantém atuantes as fontes de formação da consciência. Atualmente, o que se chama de pensamento único ou de “pensamento maquínico” (Guattari, 1991) é uma conversão da autonomia em “mito antidemocrático”, legitimado pela “colonização industrial das consciências”.

Nessas condições, em que todo poder tende a ser absorvido pelo Estado que exerce controle global e, assim, transformado em poder repressivo/controlativo, é difícil visualizar grandes utopias ou espaços de autonomia, sem que a sociedade civil se movimente “contra” ou “para além” do Estado. Em suma, pode-se dizer que necessitamos sair da tese e da realidade da liberdade assistida, tanto quanto é preciso recuperar o fôlego para afinar as formas (modernas ou pós-modernas) de supressão da negação de toda a liberdade.

Nessas condições, de que Estado se está falando? É correto se falar de algumas matizes do Estado de Direito 201, a exemplo deste Estado Penal? Talvez estejamos falando de um Estado de Direito Prolixo, como mera forma de atualização da Razão de Estado. O que tanto a literatura quanto a teoria política nos indicam é que as metamorfoses do Estado Moderno fizeram coincidir (antigamente colidir) Estado e não-direito. Mas, também indicam saídas e uma delas é voltar à ideia da construção coletiva do mito republicano, a partir de uma educação fortemente marcada por valores próprios à coisa pública (a Paideia da modernidade).

É possível humanizar o poder?

Este conjunto de princípios e de direitos legitimaria o direito de insurreição contra o opressor ou o direito de sedição, ao revés da própria Razão de Estado (não validada ou de legitimidade questionável), como se vê no caso da Bélgica 202:

Dividida entre flamengos, que falam holandês, e valões, que falam francês, os belgas terão de decidir em breve se continuam unidos ou se seguem o caminho da Checoslováquia, que se separou em 1993 [...] A Bélgica é uma monarquia constitucional federalista que surgiu como um Estado tampão entre a Alemanha e a França, no século 19 [...] Os dois lados sempre reclamaram de discriminação [...] “Não há um sentimento de união belga. Não há uma língua belga, não há nada belga, disse esta semana Filip Dewinter, líder do partido nacionalista flamengo Vlaams Belang [...] O país já teria se dividido se os belgas soubessem de que lado Bruxelas ficaria. Historicamente flamenga, a capital afrancesou-se com o tempo e virou uma cidade valona (Bruxelas, 19/09/2007 – grifos nossos).

Este movimento liderado pela região de Flandres, entretanto, espelha um curso que pode se alastrar por toda União Europeia: como uma onda separatista que reascende. Os países que mais sofrem com isso, além da Bélgica, são País de Gales (o partido nacionalista Plaid Cymru conquistou 15 cadeiras no Parlamento e forçou o primeiro governo de coalizão), Escócia (o Partido Nacional Escocês venceu as eleições em 2007). Na Espanha, há 17 regiões que exigem cada vez mais autonomia 203, liderados pelo País Basco (com referendo separatista) e pela Catalunha (aprovando-se um Estatuto de Autonomia, em 2006). Nesta linha da sedição/retaliação, com elementos muito fortes de intolerância e xenofobia, ainda é interessante destacar a 59ª Feira do Livro de Frankfurt, maior evento literário do mundo, e que em 2007 teve a Catalunha como “país tema”. Por si só, a escolha já despertou a ira de escritores espanhóis de outras regiões e, para piorar, também desagradou profundamente catalães que escrevem em espanhol, mas que não foram convidados. Outros não aceitaram o convite porque alegam temer ser “instrumentalizados pelo nacionalismo catalão” (Damasceno, 10/10/2007).

Os “focos” ou alinhamentos xenófobos, no entanto, estão se “espraiando pela Europa”. Além da população curda, na Alemanha, também os suíços se encontram divididos quanto ao papel dos imigrantes em seu país. Em 2007, às vésperas das eleições gerais, havia cartazes espalhados por todo o país com três ovelhas brancas chutando uma ovelha negra para longe, e em que ainda se lia: “Para ter segurança”. O cartaz é produto do mais poderoso grupo político no Parlamento federal e membro da coalizão: o ultradireitista Partido do Povo Suíço (SVP).

Micheline Calmy-Rey, presidenta da Suíça no sistema de rotação, foi direta ao dizer que o cartaz “estigmatiza outros e joga com o fator medo, e neste sentido é perigoso” 204. Muitos têm ficado chocados com esta política racista e ofensiva porque, nos últimos tempos, a Suíça se tornou porto seguro para “refugiados” e “exilados políticos”, de lugares e culturas tão diferentes quanto Kosovo e Ruanda.

Para o senso comum, alimentado pelo SVP, a “ovelha negra” é o imigrante infrator: 20% da população é imigrante e compõe 70% da população carcerária, segundo autoridades federais. Como parte da campanha sórdida, o SVP espera reunir 100 mil assinaturas para forçar um plebiscito, propondo que juízes possam deportar estrangeiros depois de cumprirem penas graves, assim como toda a sua família. A oposição lembra que a iniciativa é nazista, uma prática da Sippenhaft ou “responsabilidade por parentesco”. Mas, o SVP responde alegando que isto reforçaria a famosa identidade nacional (Sciolino, 11/10/2007).

O SVP, mesmo com uma das sete cadeiras do Conselho Federal (desde 1958, um “acordo de cavalheiros” divide o Conselho entre os quatro maiores partidos), ainda teria de convencer os demais votantes e, depois, submeter suas decisões a plebiscito popular. Tudo isso é uma imensa ironia se pensarmos no arrojo que foi o lançamento de candidaturas ao Legislativo por aquele que ficou conhecido como Partido Pirata, no país de “abertura semelhante”, a Suécia 205.

Os separatistas perderam o medo do impacto da independência, porque a União Europeia os reconheceria como membros, e as regiões mais desenvolvidas economicamente também estariam “cansadas” de liderar as demais (a exemplo de Flandres, com “indústrias de ponta” e baixo desemprego). Esta é a opinião de Robin Shepherd, pesquisador do centro Chatham House, de Londres. A população dessas regiões também está muito dividida e não há apostas seguras, além do receio de que uma extrema fragmentação do poder (ou da Razão dos Estados) seja evidente. Shepherd vê a União Europeia como um grande Estado, com soberania de igual dimensão e Razão de Estado não inferior: “Para Shepherd, a atual crise na Bélgica deve servir de alerta para aqueles que acreditam em uma profunda integração europeia e querem transformá-la em um super-Estado” (Dorlhiac, 1º/10/2007).

De todo modo, é preciso ter claro que a “identidade cultural” leva à fragmentação, porque no passado o Estado-Nação foi formado à base da opressão e não da adesão e do consenso 206. Há povos, então, como os curdos, que ainda lutam por território, unidade, soberania, “direitos dos povos”, reconhecimento internacional da cultura e da precariedade de sua gente e desinteresse global. É um povo errante que luta pela sua Razão de Estado e, portanto, vale-se do direito de sediação. O Curdistão tem uma área aproximada de 500.000 km2, a maior parte na Turquia e o restante no Iraque, Irã, Síria, Armênia e Azerbeijão. Os curdos vivem há milhares de anos nas montanhas da Ásia central e são hoje a mais numerosa etnia sem Estado no mundo: sem que tenham o direito de autodeterminação dos povos reconhecido.

Quanto ao poder político, ou poder em si — poder de mando legítimo e não simplesmente legal — pode-se utilizar extensamente da etimologia, partindo do clássico potestas in populo. É este sentido de real integração do Poder Político que a fase atual do Estado Moderno parece ter perdido. Como se o poder não mais pertencesse ao povo que constrói e ratifica a espera pública:

É claro que potestas deriva de um verbo que significa “capacidade”, ser capaz de, como ainda é transparente em francês (onde pouvoir significa, como verbo, “posso”). No entanto, a etimologia da palavra poder expressa apenas parte de seu significado político, que não é capacidade de fazer, mas puissance, “capacidade de mandar fazer” (pouvoir de faire faire). Essa diferença é muito clara no alemão Macht, que significa tanto poder quanto força [...] Assim, o poder ordena; e o poder do Estado dá ordens sustentado pelo monopólio legal da força. Mas, quando o poder é concebido assim, fica imediatamente claro que não é suficiente para explicar como uma sociedade política se mantém coesa e porque seus membros cooperam [...] Os filósofos insistem há muito tempo que o cimento das sociedades políticas não é proporcionado pelas ordens, mas por uma coisa muito diferente a que chamam de “obrigação política”. Por outro lado, mas também simultaneamente, em geral dizemos que os regimes políticos são mantidos por sua “legitimidade” e solapados, quando não totalmente destruídos, por uma crise de legitimidade. Por sua vez, uma crise de legitimidade em geral é traduzida por uma crise de “autoridade” e detectada como tal (Sartori, 1994, p. 253).

Ou, em uma última forma, podemos entender como a virtus da Justiça, como diz um dos maiores poetas do Humanismo:

Os corações também são motores.

A alma é poderosa força motriz.

Somos iguais.

Camaradas dentro da massa operária.

Proletários do corpo e do espírito.

Somente unidos,

somente juntos remoçaremos o mundo,

fá-lo-emos marchar num ritmo célere.

(Maiakóvski, s/d, p. 138).

Temos a ideia clara de que se faz política com emoção e não apenas contabilizando os resultados imediatos da conquista do poder. O que ainda nos incita a pensar em como defender a política contra os achaques antipopulares.

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Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARTINEZ, Vinício Carrilho. Estado moderno:: características, conceito, elementos de formação, instituições políticas, natureza jurídica, atualidades. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 18, n. 3832, 28 dez. 2013. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26268. Acesso em: 26 abr. 2024.

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