Muito já se escreveu sobre o divórcio extrajudicial. Desde a publicação da Lei 11.441 de 04 de janeiro de 2007[1], a doutrina já esclareceu praticamente tudo sobre o tema. No entanto, caro leitor, ainda há espaço para se discutir sobre um ponto específico: a (im)possibilidade de haver divórcio extrajudicial mesmo se o casal possuir filhos menores ou incapazes.
Numa perfunctória leitura do artigo 1.124-A do Código de Processo civil, o intérprete dificilmente se questionará se é possível o divórcio em Cartório de pais que possuem filhos incapazes. É que o dispositivo em questão é claro e direto: "A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento" (grifos nossos). Em outras palavras: pelo texto legal, é impossível que pais com filhos menores ou incapazes se divorciem perante um Tabelião.
Mas, não é bem assim.
Se é certo que toda pessoa tem a liberdade para se atrelar afetivamente a outra, também não há dúvida de que toda pessoa tem o direito de desatrelar-se quando quiser. Por isso, a Emenda Constitucional n. 66/10 tornou o divórcio o mais simples possível. Veja-se que, pelo atual texto constitucional, "o casamento civil pode ser resolvido pelo divórcio". Não impôs o constituinte qualquer condição para a realização do divórcio, como já fez em outros tempos. Trata-se de norma constitucional de eficácia plena, de modo que o único requisito para que haja a dissolução do casamento pelo divórcio é muito simples: a vontade de uma pessoa casada em se divorciar.
O problema é que comumente são vinculados outros assuntos ao divórcio, como a partilha de bens, guarda de filhos menores, uso do nome de casado, etc. Ou seja, normalmente esses temas são tratados de uma só vez, num único ato, judicial ou extrajudicial. É raro alguém ajuizar ação de divórcio puro, sem fazer qualquer outro pedido que não seja a quebra do laço conjugal. O que normalmente se vê no âmbito judicial é a cumulação de pedidos na ação de divórcio. Aliás, diga-se de passagem, nestes casos, nada obsta que o juiz decida, de maneira interlocutória, especificamente sobre o divórcio (matéria que não comporta contestação) e prossiga com o processo, se manifestando posteriormente sobre os demais pedidos. Trata-se de resolução parcial do mérito, ou, como preferem alguns, de sentença parcial (§6º do art. 273, CPC). É decisão interlocutória idônea à formação de coisa julgada material que vincula as partes imediatamente. Inclusive, como bem nos alertam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD, "o juiz não pode deixar de julgar, imediatamente, o pedido de divórcio, que não está submetido à controvérsia, sob pena de gritante afronta ao Texto Constitucional, que propiciou a facilitação da dissolução nupcial"[2]. Esse parece ser também o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, que permite o divórcio direto sem a necessidade de prévia partilha de bens (enunciado n. 197 de sua Súmula). De toda sorte, voltemos ao divórcio extrajudicial.
Como já se disse, o art. 1.124-A do Código de Processo Civil exige que os divorciandos não possuam filhos menores ou incapazes para que possam realizar a dissolução do casamento em Cartório. Parece que, assim, a legislação infraconstitucional dificulta algo que a Carta Magna se esforça em facilitar. Não foi esse, contudo, o objetivo do legislador. Até porque se o fosse, o dispositivo estaria muito provavelmente maculado por flagrante inconstitucionalidade. É preciso ter em mente o seguinte: o objetivo da norma ora analisada é tão somente proteger interesses e direitos indisponíveis[3] (como são os interesses dos menores e incapazes), os quais, como se sabe, não podem ser tratados fora do âmbito judicial. Em outras palavras: proíbe-se o divórcio extrajudicial quando o casal possui filhos menores ou incapazes, não para impedir que os casados se desfaçam do vínculo nupcial, mas sim para que os direitos indisponíveis dos incapazes sejam preservados.
Desse modo, não pode ser outro o entendimento que não o de se permitir a realização de escritura de divórcio em Cartório, ainda que os interessados sejam pais de menores ou incapazes. Evidentemente, o Tabelião não poderá jamais tratar de qualquer assunto relacionado aos filhos. Deverá o notário lavrar a Escritura Pública de Divórcio somente constando a quebra do laço matrimonial e outros assuntos que digam respeito apenas aos divorciandos, como alimentos recíprocos e uso do nome de casado, por exemplo. As demais questões, de interesse do menor (ou incapaz), deverão ser resolvidas perante o juiz, na presença do Parquet, por meio de ações específicas, que poderão ser ajuizadas antes ou depois da escritura, em nada dependendo dela[4]. É essa a interpretação que deve prevalecer, sem dúvida. Até porque, se no âmbito judicial o juiz pode decidir de plano sobre o divórcio, separando os assuntos, por que então não poderia fazer o mesmo o Tabelião ou a autoridade consular[5]?
Infelizmente, parece que não é esse o entendimento predominante no Conselho Nacional de Justiça e nas Corregedorias de Justiça dos Tribunais brasileiros que, em nosso modesto entender, deveriam, o mais rápido possível, elaborar resoluções sobre o tema, autorizando os notários a procederem da forma acima explicitada, o que, como raramente acontece, agradaria a todos. Os Tabeliães lavrariam mais escrituras, os juízes teriam menos pedidos para apreciar, os interesses dos incapazes estariam preservados, o casal teria maior facilidade para desfazer o casamento e contrair possível novo matrimônio, e ainda haveria uma maior segurança para todos, uma vez que, permanecendo a proibição, o casal poderia simplesmente omitir do Tabelião que possui filhos menores ou incapazes[6], nada podendo fazer o notário senão acreditar na palavra dos interessados.
Notas
[1] Lei que alterou dispositivos da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, possibilitando a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. vol. 6. Salvador: JusPodivm, 2013. p. 449-450.
[3] GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. O novo divórcio. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 43.
[4] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. ob. cit. p. 465.
[5] Defende-se, de igual modo, a mesma interpretação para o atual §1º do art. 18 do Decreto-Lei n. 4.457/42, recentemente acrescentado pela Lei 12.874/13, o qual conferiu atribuição às autoridades consulares brasileiras para que realizem a separação ou o divórcio de brasileiros no exterior.
[6] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. ob. cit. p. 465.