6 – A VENDA CASADA NAS LICITAÇÕES PÚBLICAS: A LICITAÇÃO CASADA
Ribas (2011, p.55) define a venda casada como sendo uma prática restritiva em que um agente econômico subordina a venda de determinado produto ou serviço à aquisição de outro bem ou serviço, por ele ou por terceiros produzido ou ofertado, ou à aceitação de que o produto ou serviço ofertado por terceiros não será adquirido.
O Tribunal de Contas do Distrito Federal e Territórios, no Processo nº 782/2003, foi expresso ao vedar o procedimento de venda casada nas licitações, nos seguintes termos:
“Sobre a matéria, o Tribunal fixou o entendimento de que é inadmissível a locação de equipamentos com fornecimento de material, por caracterizar licitação casada, conforme se depreende dos termos da Decisão nº 8967/1997, inciso III, vedando, de conformidade com os princípios fundamentais da Igualdade e Competitividade, bem assim com as disposições contidas nos arts. 3º, §1º, I, e 23, § 1º, da Lei nº 8.666/93, que os serviços de locação de máquinas copiadoras e o fornecimento de insumos básicos (cilindro, toner, revelador, papel de impressão, etc...) sejam licitados separadamente, ressalvados os casos em que houver motivos de natureza técnica ou econômica, devidamente comprovados, que justifiquem a não adoção de tal procedimento”. (grifos nossos).
De fato, havendo possibilidade de competição entre diversas empresas produtoras ou fornecedoras de determinado produto ou serviço, faz-se necessária a abertura de regular processo licitatório, aumentando as possibilidades de se alcançar a proposta mais vantajosa para a Administração Pública.
Esta mesma Corte de Contas Distrital, na Decisão nº 6550/2005, manteve a vedação às licitações casadas, considerando irregular a inclusão de serviço de impressão industrial no objeto do certame, consistente em prestação de serviços contínuos de processamento de dados de recepção e transmissão de arquivos eletrônicos para impressão, o que permitia tipificar a existência de licitação casada e de contrariedade aos arts. 3º, § 1º, inciso I, e 23, § 1º, da Lei nº 8.666/1993.
Nestas hipóteses, o que há é a vinculação entre produtos que poderiam ser licitados em lotes diversos, ampliando a competitividade do certame, mas são agrupados em um mesmo lote devido a práticas anticoncorrenciais, resultando no que podemos chamar de licitação casada administrativa, posto ter sido ocasionada por parte da própria Administração Pública.
Importante ressaltar, entretanto, a existência de outra forma comum de venda casada nas compras públicas, e que ocorre, no geral, nas aquisições de produtos em que a empresa detém exclusividade em sua comercialização, vinculando o fornecimento posterior de manutenção dos equipamentos ou a aquisição de peças. Seria a hipótese de licitação casada diferida ou postergada.
Esta situação é bastante comum nas hipóteses de aquisição de equipamentos que, por sua natureza, necessitam de constantes manutenções e trocas de peças, como elevadores e equipamentos eletroeletrônicos.
Após vencer determinada licitação para o fornecimento e a instalação de determinado equipamento, e passado o prazo de garantia do produto, a Administração Pública necessita de efetuar manutenções regulares nestes objetos.
Nesse ponto, algumas empresas tentam evitar a concorrência, argumentando serem produtoras exclusivas daqueles produtos, e que a manutenção destes somente pode ser realizada por elas, restringindo a competição.
Da mesma forma, quando ainda assim a licitação ocorre, e outra empresa vence o certame, encontram enormes dificuldades em encontrar as peças de reposição necessárias para efetuarem a correta manutenção dos equipamentos.
Nestas situações, o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, na Decisão nº 136424, considerou prática de concorrência desleal e contrária ao consumidor a negativa de empresa, ainda que detentora de exclusividade, em disponibilizar componentes e peças de reposição de produtos de sua propriedade para empresas concorrentes, em evidente atitude predatória à concorrência, como estabelecido nas leis nº 8078/90 e 8884/94, que dispõem, respectivamente, que:
“Art. 32. Os fabricantes e importadores deverão assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto.
Parágrafo único. Cessadas a produção ou importação, a oferta deverá ser mantida por período razoável de tempo, na forma da lei”. (grifos nossos).
“Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados:
I - limitar, falsear ou de qualquer forma prejudicar a livre concorrência ou a livre iniciativa;
II - dominar mercado relevante de bens ou serviços;
III - aumentar arbitrariamente os lucros;
IV - exercer de forma abusiva posição dominante”. (grifos nossos).
Nesse sentido também decidiu o Tribunal de Contas da União, na Decisão nº 583/1994:
“A Segunda Câmara, diante das razões expostas pelo relator, DECIDE:
Reconhecer a obrigatoriedade de prévio certame licitatório para a contratação de prestação de serviços de manutenção e assistência técnica em elevadores e equipamentos, onde existe a viabilidade de competição entre os concorrentes (cf. Decisões nºs 325/93; 392/92-2ª e 583/94-P);
1 – determinar, em conseqüência, à Unidade Administrativa da Justiça Federal de 1ª Instância, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul que, quando da realização de serviços de manutenção e assistência técnica em elevadores e equipamentos, realize as licitações previstas na legislação em vigor (Lei nº 8.666, de 21.06.93, alterada pela Lei nº 8.883, de 08.06.94). Relatório do Ministro Relator
(...) Embora as Indústrias Villares S.A. detenha a exclusividade na fabricação de peças originais da marca Atlas, inúmeras empresas estão habilitadas a prestar serviços de manutenção e conservação dos referidos Elevadores, conforme pode ser constatado através de rápida pesquisa entre as empresas do gênero e que atuam em Porto Alegre, tais como Elecon Assist. Téc. Em Elevadores Ltda., Assist. Técnica de Elevadores Citsul Ltda., todas elas, inclusive, fornecedoras de peças similares.
(...) 5. O Processo adotado pela Administração da Justiça Federal – 1ª Instância do RS, sob a premissa de que “os componentes de fabricação produzidos pela empresa, destinam-se apenas ao atendimento dos elevadores que estão sob responsabilidade técnica da contratada, não estando disponíveis para comercialização com terceiros”, sinaliza s.m.j., certa acomodação dos agentes públicos. Isto porque a Indústria Villares não poderia negar-se como unidade de revenda de seus próprios produtos, a comercializar os seus componentes às empresas que atuam na área de manutenção de elevadores, face ao disposto na Lei 8.002[1], de 14.03.90, artigo 1º, e na condição de fabricante, não deveria deixar de assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto perdurar a fabricação dos seus elevadores, conforme determinação contida na Lei 8.078, de 11.09.90, artigos 32 e 33.
5.1 Assim, mesmo sob a hipótese de inexistirem peças similares na praça de Porto Alegre, o fato de a fornecedora de peças originais estar nela estabelecida e de existirem empresas prestadoras de assistência técnica em elevadores seria suficiente para a realização do procedimento licitatório”. (Tribunal de Contas da União, Decisão nº 583/1994, rel. Min. Fernando Gonçalves, Plenário, p. 28/09/1994).
Na Decisão nº 78/2002 a Unidade Técnica de Controle Externo assim se manifestou:
“(...) não parece razoável que, com base na declaração de exclusividade apresentada, dispense-se a licitação, pois há diversas empresas de manutenção de elevadores no mercado nacional. Além disso, conforme assinalado na referida deliberação, o fabricante dos elevadores não pode se negar a, como unidade de revenda de seus próprios produtos, comercializar componentes necessários às empresas que atuam na área de manutenção de elevadores, em face do que dispõe a Lei nº 8.002/90, art. 1º. Ademais, a mencionada Decisão também salienta que, conforme determinação contida no art. 32 da Lei nº 8.078/90, o fabricante deve assegurar a oferta de componentes e peças de reposição enquanto não cessar a fabricação ou importação do produto. Assim, a unidade técnica, ratificando posição da equipe de auditoria, entende que as justificativas não são satisfatórias “dado que não consta dos autos declaração da Junta Comercial pertinente que ateste a inviabilidade de competição em âmbito local, e dada a notória viabilidade de competição no plano nacional”. (Tribunal de Contas da União, Decisão nº 78/2002, Plenário, rel. Min. Ubiratan Aguiar, p.19/03/2002).
Importante trazer à baila, ainda, relevante decisão exarada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, CADE, no Processo Administrativo nº 08012.000172/98-42, em que se deparou com caso similar, em que a empresa Matel Tecnologia de Informática S.A. se negou a fornecer peças de manutenção e reposição à empresa Power-Tech Teleinformática Ltda., com base no fato de ser a representante exclusiva da empresa Ericsson no Brasil.
Assim se manifestou o Conselheiro-Relator Celso Fernandes Campilongo:
“Tratam os autos de Processo Administrativo em que figuram, como Representante, a empresa Power-Tech Teleinformática Ltda. e, como Representada, a Matel Tecnologia de Informática S.A. A Representada é acusada de assumir postura anticoncorrencial por se negar a vender, à Representante, peças de manutenção da central telefônica modelo MD 110, de fabricação da empresa Ericsson, da qual é representante no Brasil. A Power-Tech sustenta que, devido a essa recusa, foi impossibilitada de adimplir suas obrigações contratuais de assistência técnica com várias empresas, bem como de celebrar novos contratos. (...) Fato relevante – diga-se: incontroverso, visto que admitido pela Representada – é a existência de algumas partes e peças dos equipamentos MD 110 que são produzidas e comercializadas exclusivamente pela Ericsson. E mais: parte desses insumos, indispensáveis para a realização dos serviços de manutenção, é insubstituível por peças de outras marcas. A questão reside, portanto, não no acertamento dos fatos, que são públicos e notórios, mas na interpretação conferida à situação empírica, à luz da legislação e da teoria antitruste. A Matec, representante da Ericsson no Brasil, detém o monopólio da fabricação e da comercialização de algumas partes daquelas grandes centrais telefônicas. Sem essas peças, impossível realizar a manutenção, isto é, ingressar ou permanecer no mercado de prestação de serviços para proprietários de marca Ericsson. (...) A recusa de venda das peças, no caso concreto, fortalece o monopólio também na prestação dos serviços de manutenção. O consumidor fica prisioneiro da assistência autorizada pelo fabricante e privado das alternativas e vantagens que, potencialmente, o mercado poderia oferecer-lhe. São esses os fatos, ou, pelo menos, é essa a teleologia que o direito antitruste deve observar para interpretá-los. A definição do mercado geográfico, como se disse, foi consensual: o Distrito Federal. Porém, é justamente dessa delimitação que surgem novos argumentos para reforçar a tese de que equipamentos, peças e serviços de manutenção são mercados distintos. Brasília concentra um significativo número de órgãos públicos. Os clientes dos serviços de manutenção das centrais MD 110, como se nota pelos vários contratos acostados aos autos, são as instituições governamentais. As licitações, por sua vez, devem versar sobre objetos específicos: compra e instalações de equipamentos, de um lado; manutenção e ampliação dos equipamentos, de outro. Trata-se de mais um argumento, por si só, de reforço à tese dos mercados distintos. Tudo vem robustecido pelo fato de que, até pela complexidade e dinamismo do mercado, a assimetria de informações não permite ao consumidor, nessas licitações, ter um quadro nítido de suas futuras necessidades de peças e serviços. O período de garantia também posterga essa preocupação e torna incertos os dados disponíveis para a análise. Por fim, a modalidade ‘melhor preço’, nas licitações para aquisição dos equipamentos, pode esconder preços baixos nesse mercado e compensações, dada a baixa elasticidade da demanda, no mercado secundário. (...) Bastante discutível que os ‘softwares’ utilizados nas centrais, quando essenciais para a realização da manutenção, não possam estar disponíveis no mercado (item 3.33 do Memorial). Também não parece ser o caso de exploração da marca Ericsson ou de transferência de tecnologia ou segredos industriais. Ninguém está discutindo, neste âmbito circunscrito à análise antitruste, o direito de credenciamento ou não de representantes, o direito de propriedades de patentes ou o direito ao recebimento de ‘royalties’. Tudo isto foge ao âmbito deste Processo Administrativo. Também não se discute, aqui, se as autorizações ou ‘franquias’ de manutenção conferidas pelo titular da marca, contém restrições e abusos. Ninguém está sendo acusado de recusar autorizações ou formular exigências descabidas para o credenciamento. O tema é outro: recusa de fornecimento de peças. Nada mais. Também não está, de forma alguma, comprovado que a existência de empresas declaradamente independentes e não credenciadas – e, novamente, o que se discute é apenas a recusa de venda e seus consectários e não o uso de qualquer marca – possa prejudicar a imagem da Representada. Portanto, essa não é uma justificativa convincente nem objetiva para quem detém poder de mercado monopolista sobre o conjunto das peças e se recusa a vendê-las. (...) O compromisso com a marca, mesmo que relevante para quem fabrica o equipamento, não parece algo fundamental nem para aqueles que desejarem ingressar de forma independente no mercado de manutenção e, muito menos, para os consumidores, que perderão a oportunidade e a liberdade de escolher, por sua conta e risco, com quais empresas e a que preços desejam fazer a manutenção. Por que ‘tutelar’ o consumidor de modo a restringir suas decisões? O consumidor de grandes centrais telefônicas – como as MD 110 Ericsson – não é presa tão ingênua e irracional, do prisma econômico, a ponto de ser incapaz de diferenciar a qualidade dos serviços pós-venda. Portanto, entendo desarrazoada e prejudicial à livre concorrência, por afronta ao disposto no artigo 21, incisos IV, V e VI, combinado com o artigo 20, incisos I e IV, da Lei no 8.884/94, a conduta da Representada. Imponho à Representada, na forma do artigo 23 da Lei Antitruste e do artigo 11 da Lei nº 9.021/95, a multa mínima de 1% do faturamento da empresa no exercício anterior ao da instauração do processo administrativo, corrigido esse valor na forma da lei ”.
Ressaltamos que essa licitação casada diferida ou postergada ocorre, normalmente, na forma de dois procedimentos licitatórios distintos, sendo que o primeiro dos certames respeitando o rito comum das licitações e privilegiando a competitividade.
Definida a empresa vencedora e iniciada a prestação do serviço ou o fornecimento do bem, a empresa busca exercer sua posição dominante no mercado quanto à manutenção dos produtos ou o fornecimento de peças para manutenção, em licitação posterior.
Assim, e diferentemente da licitação original, exige que a seguinte seja realizada por contratação direta, com base no art. 25, caput, ou mesmo no inciso I do referido artigo, que dispõem ser inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo.
Essa atitude, portanto, não só configura prática anticoncorrencial, como é clara burla ao regular procedimento licitatório.
Ademais, cumpre salientar que o art. 90 da Lei nº 8666/93 considera crime frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.
Explicando esta hipótese, Justen Filho (2010, p.908) esclarece que o tipo envolve qualquer conduta praticada por algum sujeito privado que disponha de poderes jurídicos ou de condições materiais para impedir a competição inerente à licitação.