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A ética publicitária e a abusividade da publicidade infantil

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03/01/2014 às 12:40
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A crescente pretensão de proibição à publicidade destinada às crianças decorre da consciência da sociedade civil ao novo agir ético estabelecido ao longo da última década.

Resumo: O surgimento das técnicas publicitárias desenvolvidas com a finalidade de venda de produtos se deu em momento de forte crescimento do capitalismo, quando não era possível detectar seus impactos, em especial diante daqueles que hoje são reconhecidos como hipossuficientes, caso das crianças.

O crescimento do mercado publicitário resultou no desenvolvimento de uma ética própria, amparada no direito à livre expressão, reforçado e assegurado pela Constituição Federal de 1988. Entretanto, há um claro paradoxo nessa garantia pois a atividade publicitária não se presta exclusivamente a garantir o direito de expressão e o direito dos cidadãos receberem informações acerca dos produtos colocados no mercado, ele deve, também, atender a princípios éticos delimitados na legislação específica e assegurar que tal atividade publicitária não infrinja a capacidade de julgamento de seu destinatário.

É exatamente com base nesse princípio ético, que deve preceder qualquer interpretação legal acerca da legalidade das publicidades, que a publicidade destinada ao público infantil deverá ser entendida como inaceitável e, portanto, ilegal.

Palavras-chaves: Publicidade Infantil. Limites Éticos. Princípios. Regulamentação.


1. INTRODUÇÃO:

O debate jurídico envolvendo os limites da publicidade vem contrapondo duas teses basilares entre os seus beneficiários e os seus destinatários. Os primeiros veem sua atuação amparada pela liberdade de expressão, direito fundamental intimamente ligado ao passado ditatorial brasileiro, associada também à livre iniciativa e à livre concorrência, estes fundamentos basilares da ordem econômica consagrada constitucionalmente. Já o segundo grupo visa limitar tal atuação visando resguardar outros direitos fundamentais ligados à cidadania, à dignidade da pessoa humana e, em relação ao objeto deste estudo, à necessidade de superproteção da criança e do adolescente.

O confronto de princípios constitucionais poderia ser (como de fato é) objeto de intensos debates acerca da ponderação na aplicação de cada um deles ou mesmo equilíbrio na atuação visando resguardar todos os princípios. Entretanto, a discussão acerca dos limites da publicidade vem se restringindo a raras ações judiciais promovidas por associações representativas de certos grupos ou à atuação do Conselho de Autorregulamentação Publicitária – CONAR, que privilegiam os limites da legalidade e afastam, de certa forma, a discussão acerca dos limites éticos que a publicidade deve atender.

Não necessariamente as disputas ignoram em absoluto os limites éticos pautados pela sociedade e que se refletem em nossa Carta Magna e sistema legal, mas um dos objetivos deste artigo é justamente demonstrar que, especialmente na publicidade dirigida às crianças, os princípios, antes de se equilibrarem ou serem objeto de ponderação, devem nortear uma base ética a ser atendida por todos.

Afasta-se, com isso, a pretensão de discutir ou concluir quais são os princípios constitucionais que merecem guarida face às disputas existentes na atualidade acerca das publicidades expostas aos consumidores, e busca-se, sim, apontar os fundamentos históricos que levaram a publicidade nacional a um ponto de conforto no cenário legal brasileiro, em que a guarida aos direitos de expressão e a repulsa à censura vêm permitindo claros abusos éticos no mercado publicitário.

A proposta central do artigo, portanto, é questionar – e ao final concluir – se, na esfera desse novo cenário ético, antes mesmo de legal, a publicidade direcionada ao público infantil ultrapassa os limites esperados pela sociedade e se cumpre o dever da própria sociedade e do Estado de assegurar à criança com absoluta prioridade o direito à educação, à cultura, à dignidade, ao respeito, colocando-as a salvo de toda forma de negligência, exploração, violência, crueldade e opressão.


2) AMPARO LEGAL AO DESORDENADO CRESCIMENTO DA SOCIEDADE DE CONSUMO BRASILEIRA:

A publicidade, assim entendida a propaganda de ideias para fins comerciais, nasceu no seio da sociedade capitalista, tendo o Estado como seu maior exemplo e incentivador.

O crescimento da participação da sociedade civil no Estado Moderno e a adoção do modelo democrático fizeram dos Estados os maiores agentes propagadores de ideias e ideais do final do Século XIX e início do Século XX, com a realização de campanhas nacionalistas em especial com a finalidade de adesão às Grandes Guerras e conflitos internos separatistas. Com isso, as técnicas de propaganda e marketing passaram a ser objeto de estudo e o crescimento de capitalismo as transportou ao mundo da publicidade.

No Brasil, jamais houve, por mais de um século e meio desde a promulgação da Constituição do Império, qualquer regramento que tratasse especificamente de direitos de consumidores ou mesmo de sua proteção frente a informações trazidas por mensagens publicitárias. Tal Constituição, aliás, se limitou a prever a necessidade de criação de um Código Civil, que começou ganhar corpo um ano após através de Clóvis Bevilácqua. Ou seja, o arcabouço legal era mínimo, senão inexistente.

Em 1850, foi aprovado o Código Comercial que, como já era de se esperar, não trouxe nada relevante sobre direito do consumidor, regulando somente o tema dos contratos mercantis. Em 1890, já no final do século XIX, foi promulgado o Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, que pela primeira vez apresentou um caráter mais estruturado e tipos penais articulados, que de certa forma poderiam ser relacionados, ainda que indiretamente, ao tema do direito do consumidor.

Veja que diferentemente do Código Penal do Império do Brasil, o novo Código afastava-se da pretensão de criar balizas orientadoras do comportamento da sociedade, visando, sim, a estruturação e organização das relações existentes. Entretanto, a realidade brasileira ainda era absolutamente diversa da existente em outros países, em que o consumo já se massificara e a produção industrial já começava a gerar problemas que extrapolavam a simples regulamentação das relações civis.

Ademais, no Brasil, até 1940 a população brasileira era predominantemente rural quando atingia, até então, 70% da população nos campos, segundo dados do IBGE. Nesse ponto, vale apontar a interessante observação de ANTONIO HERMANN DE VASCONCELLOS E BENJAMIN (Código... 8ª ed. p. 343) acerca da publicidade dirigida aos hipossuficientes, quando inclui nesse grupo os rurícolas e moradores de periferia. Ou seja, para o autor está mais do que claro que a sociedade brasileira do início e meados do século XX era composta essencialmente de hipossuficientes (assim entendidos pelos parâmetros legais atuais).

Mas qual o efeito da transição dessa sociedade rural para a urbana? Segundo ERIC HOBSBAWN[1] aponta, “a mudança social mais importante e de mais longo alcance da segunda metade deste século e que nos isola para sempre do mundo passado é a morte do campesinato”. Portanto, enquanto havia predominância da sociedade rural, não havia sequer a necessidade de disciplina dos Direitos dos Consumidores, que não poderiam ser entendidos naquele momento como grupo a ser tutelado pelo sistema legal vigente.

Por outro lado, a sociedade urbana passava a se interessar pelas novidades decorrentes do novo sistema e passava a se sujeitar, cada dia mais, à manifestação publicitária existente. Assim, é exatamente nesse cenário absolutamente irregrado e sem qualquer intervenção estatal que a sociedade passou a adotar um comportamento inercial que será tratado adiante.

Nos países desenvolvidos, que já contavam com um aparato comercial extremamente sofisticado e as campanhas de publicidade das empresas tomavam contornos extremamente agressivos e sem qualquer limitação, grandes marcas surgiram e até hoje remanescem como as mais valiosas em todo o mundo, talvez ao custo de graves (e ainda desconhecidos) efeitos na sociedade.

RUSSEL MOKHIBER, no livro Crimes Corporativos, apresenta uma visão crítica às práticas comerciais dissociadas da ética e do dever de cuidado antes inerente ao agir do ser humano, demonstrando que a prática corporativa, em especial no período pós-guerra, era despida de princípios éticos, decorrência do próprio desconhecimento, pela sociedade, dos limites de atuação das pessoas jurídicas e da responsabilidade pelos atos por ela praticados.

Pois bem, nesse cenário em que a publicidade surgia como manifestação desse novo Estado, que se apoiava no regime capitalista, que por si só visava se consolidar como dominante sobre os estados socialistas, a sociedade civil passou a pautar suas aspirações e seu agir como cidadãos no próprio agir do mercado. A sociedade aspirava o consumo e o acesso a esse novo mundo, sem se dotar previamente de critérios e limites.

Nesse passo, considerando-se que no Brasil as oportunidades ainda eram escassas o desenvolvimento era o mote, o legislador preocupou-se em criar um sistema estável àqueles interessados em trazer seus produtos ao país, limitando-se, assim, à criação de mecanismos de proteção à marca e falsificação de produtos. Tal preocupação desenvolvimentista encontra claro exemplo na promulgação da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, quando a limitação às atividades industriais que causassem risco à saúde foi suprimida pela garantia do livre exercício de qualquer profissão (artigo 72, §24), o que evidencia, novamente, a necessidade de atendimento às necessidades de estruturação da sociedade em um momento em que sequer havia a preocupação na sociedade brasileira de proteção aos direitos dos consumidores.

Com a entrada em vigor do Código Civil, ocorrida em 1917 – concretizado a previsão trazida pela Constituição do Império – começou-se a tratar de problemas relacionados com a industrialização, que passou a ter constante crescimento na época. É bem verdade que os avanços na esfera civil foram consideráveis, entretanto, a relação contratual era analisada sob a ótica da igualdade entre as partes e autonomia de vontade, ou seja, “pacta sunt servanda”.

Por cerca de três décadas de vigência do novo Código Civil, ainda prevalecia a idéia de regulamentação das relações entre individuais, sendo que as contratações com empresas não possuíam caráter de massa e atingiam pequena parcela da população. Foi exatamente com o crescimento da sociedade urbana a crescente industrialização experimentada ao longo das décadas de 50 a 70 que passaram a gerar a necessidade de regulamentação.

E MARCELO GOMES SODRÉ[2] ainda afirma que “tudo isto ocorreu dentro de um sistema capitalista que tende a aumentar as desigualdades sociais com o passar dos tempos”, sendo “neste contexto que surge um movimento social com o objetivo de proteger os consumidores e o direito vai ser um dos instrumentos utilizados para este fim”.

E foi exatamente nesse momento que as constituições e demais legislação passaram a se preocupar com a figura do consumidor e necessidade de sua tutela, o que invariavelmente passaria a limitar a atuação publicitária e seus arroubos criativos, senão abusivos.

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No início da década de 60, ocorreu uma mudança no tipo de produção legislativa em defesa do consumidor: o enfoque penal perdeu força e deu lugar à legislação administrativa. Isto porque a produção industrial passou a crescer assustadoramente e exigir uma intervenção do Estado na economia. Com base nisso, criou-se um aparato legislativo maior e mais complexo, bem como a valoração das sanções administrativas. Impossível dissociar essa nova fase do momento desenvolvimentista nacional, majorado pelos governos militares.

Em outras palavras, deixou-se de lado a punição penal para olvidar esforços na fiscalização (“poder de polícia”), que é uma forma do Estado intervir no domínio econômico. Para tanto, foram criados alguns “Sistemas Nacionais” que posteriormente teriam relação com o tema do consumidor, quais sejam: Sistema Nacional de Saúde, “Sistema Nacional da Livre Concorrência” e “Sistema Nacional de Metrologia”. Esses Sistemas passariam, então, a fiscalizar a atuação e publicidade de seus integrantes, mais preocupados ainda, contudo, com a garantia de desenvolvimento de seus setores do que proteção aos efetivos tutelados.

Ao mesmo passo, a livre concorrência passou a ter especial guarida com a criação do CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, órgão responsável pelo controle da concorrência (Lei 4.137/62), o que passou a refletir diretamente no controle estatal da concorrência e no consequente interesse, pela iniciativa privada, em criar meios de autorregulação que não implicassem na intervenção do Estado.

Posteriormente a esta data e mais precisamente até o ano de 1984, o período não foi fértil no que diz respeito às leis de defesa do consumidor propriamente ditas, o que deixa evidente que, apesar dos avanços, ainda não havia a idéia de priorizar a defesa do consumidor como tema nacional. Mais do que isso, não se enxergava que o desequilíbrio crescente nas relações de consumo poderia gerar um descompasso prejudicial para o próprio mercado e aos fornecedores.

Ainda que se tratasse de um período pouco fértil, foram criados alguns órgãos públicos estaduais – dentre eles o PROCON, em 1976 – e municipais, porém, sem qualquer coordenação no âmbito nacional, atuando de forma bastante precária e sem qualquer respaldo prático governamental. Embora isso demonstrasse um avanço, ainda estava muito longe do ideal, pois faltavam instrumentos legislativos para garantir a eficácia destas entidades.

A efetiva contribuição decorrente da criação dos PROCONs foi a facilitação na reunião de pensadores do direito do consumidor e operadores do direito que já vinham se ocupando com a busca da criação de uma legislação protetiva aos consumidores em contraposição à legislação civil que refletiu na marginalização desse representativo grupo social. E foi nesse âmbito que nasceu o anteprojeto que mais tarde seria o hoje festejado Código de Defesa do Consumidor, aprovado em 1990, que traz previsões claras e precisas acerca da proteção dos consumidores, talvez pela primeira vez com o enfoque na proteção do destinatário do mercado de consumo e não de seu provedor.

O apontamento, ainda que breve, de parte do desenvolvimento da disciplina legal dos direitos dos consumidores ao longo do surgimento dos estados capitalistas cumpre a primeira preocupação deste artigo: demonstrar que o surgimento das previsões legais que tratam do tema vieram, em geral, dissociadas da realidade ética experimentada pelos consumidores e destinatários das mensagens publicitárias. Ou seja, o Estado esteve ocupado ao longo de mais de um século em garantir o crescimento e desenvolvimento do mercado, ainda que às custas da garantia de direitos individuais dos seus cidadãos.

Tal postura teve reflexo direto na forma como os consumidores enxergam e aceitam os limites publicitários existentes. A publicidade, e de forma geral a atividade econômica, não experimentaram no momento de sua implementação limitações que hoje são essenciais à preservação dos direitos individuais, e isso foi aceito pela sociedade de uma forma geral e institucionalizada.

O momento é de reflexão para que a lógica do mercado se inverta, sendo que no mercado publicitário tal inversão é possível com o estabelecimento de uma premissa ética que vise a preservação dos direitos dos indivíduos e, em especial, daqueles considerados hipossuficientes, que encontra nas crianças – objeto deste estudo – o seu maior exemplo.


3) A NECESSIDADE DE CONSTRUÇÃO DE UM NOVO PENSAR ÉTICO:

Enquanto o mercado de consumo nacional se desenvolveu visando possibilitar o crescimento econômico de forma a flexibilizar ao longo de décadas a obrigatoriedade do agir ético pelos fornecedores, os demais sistemas legais não prescindiram de uma legislação especial (como o CDC), caso dos sistemas legais germânico, francês e anglo-saxão.

Isso porque em seus desenvolvimentos houve a preocupação em privilegiar, desde o surgimento de suas legislações civis, o equilíbrio de relações e a prevalência da ordem econômica sobre os interesses individuais e até mesmo alguns coletivos. A boa-fé objetiva, trazida ao ordenamento jurídico pátrio somente na década de 90 já era a base legal, por exemplo, do BGB Alemão (1900) e do Código Italiano (1942).

Álvaro Villaça de Azevedo[3] afirma que o princípio da boa-fé “assegura o acolhimento do que é lícito e a repulsa ao ilícito”. O doutrinador reforça o entendimento de que os sistemas legais fundados na boa-fé objetiva tencionam a ação dos tutelados a agirem de acordo com a Lei, gerando maior equilíbrio e segurança jurídica nas relações. Portanto, enquanto os países desenvolvidos estruturavam suas sociedades em um sistema legal que privilegiava o equilíbrio entre os setores da economia, o Brasil caminhava para um perigoso caminho de proteção a setores de dominação econômica, o que fortaleceu a origem de colônia do país e reforçou a desigualdade social.

Tal escolha teve íntima relação, como já afirmado, com os governos militares de caráter desenvolvimentistas, que no âmbito da divulgação de informações, limitou sobremaneira a liberdade de expressão, a interferir não somente em manifestações culturais como no próprio mercado publicitário. A censura é apontada como um dos grandes fatores de desenvolvimento de técnicas publicitárias, criadas com o objetivo de transmitir mensagens indiretamente sem que houvesse imediato conhecimento da mensagem a ser passada.

Pois bem, nesse sentido, em abril de 1978, foi aprovado o Código de Autorregulamentação Publicitária, documento cuja execução foi confiada ao Conselho de Autorregulamentação Publicitária – CONAR. Nesse momento estavam suspensas as liberdades públicas e em vigor o Ato Institucional nº 5, o que colocava a opinião, a produção cultural, a notícia e o anúncio submetidos à censura estatal.

Uma década mais tarde a Constituição de 1988 aboliu a censura e restabeleceu, como já dito, as liberdades de pensamento, criação, expressão e informação e, ainda, consagrou a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor. O mercado de consumo, amparado pelo manto da livre expressão e visando manter a sua atuação dentro do limite da legalidade estrita, sem preocupar-se com os objetivos sociais de sua atuação, optou pela manutenção de um agir ético limítrofe, que sempre age no limiar máximo entre o seu direito de expressão constitucionalmente garantido e a lesão aos direitos individuais e coletivos.

A indústria da comunicação brasileira, reconhecida internacionalmente pela qualidade criativa do conteúdo e da publicidade que produz, hoje opera nesse cenário, constantemente sendo questionada pela violação a direitos individuais, em especial à obrigatoriedade da sociedade em proteger a criança e sua integridade, violadas reiteradamente diante da maciça produção publicitária voltada a elas, que sequer possuem condições de compreender a mensagem que lhes é destinada.

Ponto que desde já merece contra-argumentação é a afirmação de que a limitação da publicidade supriria, a bem da verdade, o papel dos pais em limitar o acesso de seus filhos a tal material e esclarecer, dentro de uma sociedade capitalista, quais os limites de cada indivíduo dentro desse cenário capitalista. Ora, pretende-se defender o caráter didático e educacional da publicidade na sociedade, o mínimo a se fazer é possibilitar que o debate acerca de seus limites e a sua necessária regulação sejam exercidas por toda a sociedade, o que não ocorre hoje.

Outro fator de peso a amparar a impossibilidade de limitação ou regulamentação da publicidade direcionada ao público infantil é a mancha histórica em nosso país decorrente da censura ditatorial que tem reflexos até hoje, mais de 20 (vinte) anos após a promulgação da Constituição Cidadã, em nossa sociedade, que ainda se ressente com qualquer tentativa de limitação do direito de expressão.

De qualquer forma, não se pode olvidar que o espírito legislativo da assembleia constituinte disciplinou no seu artigo 3º, I, que um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é “a construção de uma sociedade livre, justa e solidária”, o que impõem uma atuação mais efetiva e contundente do Estado de da própria sociedade para garantia dessa liberdade.

Eros Roberto Grau[4], em sua obra que enfrenta a Ordem Econômica de acordo com a Constituição, trata com brilhantismo dos propósitos apresentados pela nova Carta Magna, apontando que “sociedade livre é sociedade sob o primado da liberdade, em todas as suas manifestações e não apenas enquanto liberdade formal, mas sobretudo, como liberdade real”. E complementa reafirmando o objetivo da Carta “à transformação da sociedade, transformação que será promovida na medida em que se reconheça, no art. 3º - e isso se impõe –, fundamento à reivindicação, pela sociedade, de direito à realização de políticas públicas. Políticas públicas que, objeto de reivindicação constitucionalmente legitimada, hão de importar o fornecimento de prestações positivas à sociedade”.

O doutrinador estabelece a relação direta entre a Constituição Cidadã e a necessidade da população, carente de tutela pelos seus direitos sociais, de instrumentos que viabilizassem o reequilíbrio social já há muito tempo perdido. Portanto, é exatamente com base no princípio estabelecido no artigo 3º que se extrai a necessidade da criação de políticas públicas que devolvessem à população o equilíbrio social e a tutela de seus interesses de forma efetiva.

Por isso, a previsão constitucional de regulamentação e tutela aos direitos do consumidor seguiu a sua própria gênese, pois nasceu com a pretensão de dar azo às necessidades sociais e fornecer prestações positivas à sociedade, novamente fazendo uso das palavras de Eros Grau. Portanto, mais do que prestações positivas, fixação de premissas ou princípios constitucionais a serem seguidos, trata-se da escolha de um novo caminho, que impõe o atendimento primário às necessidades do cidadão.

Assim, somente será possível se falar em censura quando se estiver afirmando que há limitação de um direito fundamental. E não é de limitação que se trata a restrição a publicidade infantil, mas sim de garantia para a efetivação do papel garantista atribuído ao Estado.

Se a garantia à liberdade deve ser real e não mais meramente formal, o objetivo será, tal qual previsto na constituição, a preservação dos interesses dos indivíduos. Ao fornecedor se mantém incólume o direito à livre expressão e à comunicação acerca das qualidades e destinações de seus produtos e serviços, com a ressalva e proteção, contudo, de que tal não poderá ser dirigida ao público infantil, que passa, então, a receber efetivamente proteção especial.

Portanto, se antes o sistema legal se voltava à garantia meramente formal ao mesmo passo em que possibilitava a prática comercial predatória e a divulgação de publicidades agressivas e abusivas, o atual sistema não oferece guarida a tal postura, uma vez que vige a boa fé objetiva e a busca efetiva pela proteção aos indivíduos, que se constituem nos primados da nova ordem ética estabelecida.

Sob esse prisma, chega-se à segunda premissa que este trabalho objetiva: assumindo-se – por expressa previsão constitucional e legal – que as crianças receberão superproteção do Estado e da sociedade em função da sua hipossuficiência, surge o dever ético da sociedade, aí incluídos os fornecedores e todos os partícipes do mercado de consumo, em proteger este indivíduo, que não deverá ser submetido a qualquer comunicação sobre a qual não tenha o desenvolvimento necessário para criar um juízo próprio sobre seu conteúdo.

Isso significa que devem se fechar definitivamente todas as portas de acesso do mercado publicitário às crianças, que serão tratadas como intocáveis e hiperprotegidas pela sociedade? Evidentemente que não. Significa somente a alteração da premissa anteriormente vigente: deixa-se de criar todo e qualquer material publicitário com base no limite da legalidade, sempre sob o risco de violação dos direitos. A nova premissa, que evidentemente pende de regulação, passa a ser o limite do aceitável, e não mais o limite do inaceitável. Parte-se da proibição como regra para que se encontre um meio justificável da mensagem pretendida ser veiculada sem que gere danos ao destinatário, agora protegido sob um definido manto ético.

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Sobre o autor
Francisco Marchini Forjaz

Mestrando em Direitos Difusos e coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), Especialista em Direito das Relações de Consumo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), advogado do escritório Melchior, Micheletti e Amendoeira Advogados.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FORJAZ, Francisco Marchini. A ética publicitária e a abusividade da publicidade infantil. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3838, 3 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26315. Acesso em: 3 mai. 2024.

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