IMPOSTORES DO ESTADO DE DIREITO
1. O que é Estado de Direito – Há uma valorização retórica do estado de direito como se fosse o patamar de reconhecimento definitivo da tutela geral dos interesses e do “dar a cada um o que é seu”. Se fosse assim, o estado de direito substituiria magicamente os sistemas socioeconômicos e todos os regimes políticos de que a História faz registro. Resultaria em um retorno à teocracia, e a lei seria aquela transcrita pelos profetas e aceita pela comunhão do culto. Na verdade, a expressão estado de direito resulta, modernamente, de um estratagema utilizado para justificar a substituição do absolutismo, das autocracias, das oligarquias, da aristocracia, das ditaduras, ou dos estados de exceção pelo estágio em que o direito do Estado não pode mais ser invocado contra o cidadão, como prioridade permanente e como razão de supremacia. Logo, o direito de Estado deixa de ser uma fórmula abrangente e passa a dizer respeito apenas a um pequeno núcleo de razões de defesa estatal. O predomínio é do estado em que os direitos são proclamados, estendidos a todos e garantidos. Todavia, por um ranço bacharelesco, surgem proclamações do estado de direito como a suprema realização em si mesma. Quando alguém não tem compromisso nenhum com nada que represente uma nova conquista, nem sabe o que defende porque não alcança algo superior ao seu próprio interesse, quando ainda não sabe o que resgatar ou, na expressão literal, o que rei+vindicar, então diz que defende o estado de direito.
Esses trocadilhos são frustrantes. A ideia liberal de defender o estado de direito “retórico” logo mostra que não é libertária e muito menos libertadora. Grande parte dos estados de direito resultam de pactos e governos de compromisso, tal qual a política do ‘café-com-leite’, como foi conhecida a aliança de São Paulo com Minas Gerais para conduzir a Primeira República, que ficou consolidada a partir do governo de Campos Salles. Havia então um estado de direito formal, entretanto elitista, que não integrava plenamente mulheres e analfabetos na vida das relações civis, além de admitir um sistema muitíssimo fraco de garantia social. A partir de 1922, com o episódio dos 18 do Forte, começou o ensaio da ruptura que culminou com a Revolução de 1930.
O que se vê agora é um estado de direito plenamente implantado, com conteúdo social significativo e liberdades civis desenvolvidas, mas que se expressa por uma base operativa viciada. O governo está montado em nova fórmula de compromisso, com o apoio obtido na cooptação de uma grande base parlamentar, cujo jogo de infidelidade tem de ser controlado ou aplacado mediante o consentimento de partilha, principalmente dos recursos públicos, a mais das vezes através de emendas orçamentárias, ou da recriação de órgãos administrativos que já haviam sido extintos por inoperantes ou corruptos. Visando também ao clientelismo político, são desenvolvidos programas sociais assistencialistas descompromissados em criar uma condição integradora de participação na sociedade ativa, pelo trabalho e pelo estudo, por exemplo. Por fim, o Estado é aparelhado para realizar o propósito de submeter o comando governamental aos objetivos corporativos e partidários, ainda que sob um simulacro ideológico de tão amplo espectro que ninguém mais é identificável. Diria George Orwell, alguns bichos se tornaram mais iguais que outros, mas não se sabe agora quem é quem.
O Judiciário foi entupido com uma derrama de ações, na busca de que defina qual é a ordem jurídica que possa ser recebida como verdadeira, que corresponda ao estado de direito vigente. Não seria de esperar que os juízes fossem tais quais aqueles do livro bíblico, e que traçassem as regras do exato e bem viver segundo o ensinamento dos profetas (os quais seriam, numa república, os “pais fundadores”, admirados em outros países. Mas nós não os temos; ou não os reconhecemos ou eles não são respeitados). No Brasil, com exceção de Ruy Barbosa, geralmente lembrado pelo seu lado pior da retórica parnasiana, destruímos os nossos paradigmas. Recentemente a memória de Monteiro Lobato foi varrida por uma onda de acusações de racismo.
Este breve apanhado serve para dizer que invocar o estado de direito, neste momento, é dirigir-se às nuvens pedindo-lhes imobilidade para que possam ser melhor observadas e compreendidas. As elites verdadeiras perderam protagonismo, as pseudoelites são medíocres demais para indicar caminhos; o movimento de massa quer novos compromissos. Os tópicos que seguem tratam das empulhações legais que são empurradas para a sociedade pelos impostores do estado de direito, aqueles que emitem um comando normativo mas, tal qual os observadores das nuvens em movimento, não vêem realidade nenhuma e só pregam uma ordem jurídica que vem a ser um ponto estável imaginário de afirmação retórica. Afirmação esta que perdeu enfim a efetividade.
2. Um Código Penal inorgânico – É tamanho o acúmulo de leis penais fora do texto do Código, ou insertas em diplomas que tratam dos mais variados assuntos, de trânsito, de tributos, da previdência, do meio ambiente ... que não há mais um sistema doutrinário apto a proceder a tipificação das figuras penais a partir de um método unificado. O Código Penal tornou-se inorgânico. Um só exemplo será dado, mas ele é bastante significativo.
Para estabelecer um regime legal mais punitivo dos crimes violentos contra a liberdade sexual, foi apresentado no Senado um projeto que agravava penas. Quando foi remetido para a Câmara dos Deputados, o projeto recebeu um substitutivo aglutinador da Deputada Federal Maria do Rosário, do PT/RS, relatora da matéria. No novo texto, os crimes de estupro e de atentado violento ao pudor foram unificados, talvez sob a remota inspiração do antigo crime de violação, que existia antes do Código Penal de 1940. Foi assim aprovada a Lei 12015/2009, resultante do Projeto de Lei 4850/2005 (Fonte: www.camara.gov.br/ Projetos de lei e outras proposições). Eis a consequência dessa aventura patrocinada pela atual Ministra da Secretaria de Direitos Humanos: a pena para o novo tipo (unificado) de estupro ... diminuiu. As condenações que antes contemplavam os crimes de estupro e atentado violento ao pudor, praticados contra as mesmas vítimas, agora estão conjuntamente contidas no enquadramento do “novo” estupro. A pena que passou a incidir é menor.
Poderia ter sido feita a reforma sob inspiração doutrinária, ou com base na jurisprudência, ou para alcançar a implantação de nova política criminal, mas não poderia haver a diminuição de pena quando o propósito inicial do projeto era o de agravar o combate aos crimes sexuais. É um contrassenso. Uma situação de idiotia no processo legislativo. Por que pessoas tão ignorantes em matéria legal, tão mal assessoradas por um custosíssimo plantel de servidores ineptos, foram meter-se no papel de reformadores da legislação penal? É um caso clamoroso de impostura.
3. O Código Civil reescrito. O Código de Processo Civil retalhado –Em 2002 foi inteiramente reescrito o Código Civil de 1916, passando a vigorar em 2003. A nova versão não consolidou todas as leis civis, nem inovou a ponto de superar a deficiência principal que já Orlando Gomes, há mais de cinquenta anos, identificava no texto editado na Primeira República: a pressuposição falsa da autonomia da vontade. Como ocorre com escritos elaborados por muitas mãos (no caso, atuou uma comissão presidida por Miguel Reale), falta uma certa unidade redacional, um estilo, e nisso o resultado é pior do que aquele obtido em 1916, mediante a revisão de Ruy Barbosa. A França mantém seu Código Civil, conhecido como Código de Napoleão, desde 1804, sendo um dos primeiros do mundo, fruto das ideias da Revolução Francesa. Para aquele país sua lei não envelheceu a ponto de precisar ser reescrita, embora tenham sido feitas emendas. Um ponto de grande repercussão social talvez seja bem exemplificativo do que aconteceu com nosso novo Código Civil, já que ele incursionou por um tema que era tratado em lei especial (Lei 4591, de 16/12/1964), abrindo um capítulo para o condomínio em edifícios (Capítulo VII, artigo 1.331 e seguintes). Eis o que fez o Código Civil de 2003: (1) não ab-rogou a lei especial, embora tenha a passado a tratar do tema em seu corpo codificado; (2) não absorveu todo o conteúdo dos artigos da lei especial; (3) estabeleceu várias regras novas que revogaram tacitamente alguns preceitos da lei especial e (4) instituiu outros artigos que convivem com aqueles remanescentes da lei especial, em situação completamente assistemática, dando vezo a muitas confusões interpretativas.
Como a vida em condomínios residenciais é partilhada por milhões de pessoas, vale registrar este exemplo simples: pode o condômino vender parte de sua unidade (garagens, por exemplo) para terceiros? Segundo o Código Civil novo, só depois de dar preferência a outro condômino ou possuidor. Mas se o possuidor for um inquilino, que logo após a aquisição se muda do prédio, não ficará ele em situação igual ao terceiro forâneo? Por que então foi criado um procedimento burocrático que dificulta a disposição de coisa própria? Além disso, outro exemplo, o Conselho Consultivo (estabelecido na lei especial) convive com o Conselho Fiscal, previsto no novo Código, ou a existência de um exclui a do outro? Um exemplo final: vários artigos codificados estabelecem regras ressalvando o que constar na convenção do condomínio, se dispuser diferentemente. Não seria o caso de estabelecer regras legais (aquelas que tivessem relevância para a ordem pública) e, nos temas não mencionados na lei, apenas reconhecer a competência decisória à assembleia, que institui a convenção? Não seria essa a técnica adequada ao sistema de competência supletiva que orienta a hierarquia das fontes formais do Direito?
Com o Código de Processo Civil ocorreu um processo diferente. Ele foi completamente retalhado por emendas, de modo que ficou irreconhecível o texto original de 1973, inspirado na doutrina de Enrico Tullio Liebman. Foi então criada uma comissão pela presidência do Senado e nova codificação se encontra presentemente em vésperas de aprovação pelo Congresso. Quando for sancionada a nova lei, com certeza outro redemoinho caótico se instalará nos próximos dez anos, por conta das novas reinterpretações sucessivas de outras interpretações já estabelecidas, total ou parcialmente discordantes, em debates excruciantes a respeito de detalhes que, ao final de tudo, têm mínima relevância ‘ontológica’, como gostam de dizer os pedantes... Isso tudo a propósito de um código que deveria ser instrumental, isto é, deveria tratar de como se formaliza o rito para que o direito seja estabelecido.
Nos dois casos se observa um desprezo acentuado pelos direitos do cidadão. Se o país não estava confiante numa reforma efetiva do Código Civil, a ponto de elaborar uma codificação nova, por que implantar uma lei que nem absorve inteiramente a legislação esparsa, nem reserva determinados temas unicamente para elas? Quanto ao processo civil, por outro lado, o que mais se salienta é o espírito de emulação, pois o rito ou procedimento é tão armado de incidentes os mais variados que o homem simples, de boa fé, pensaria que o propósito é perder-se da justiça, e não de achá-la. No entanto, os juristas continuam a cultivar seu mister com propósitos esotéricos e, para tanto, quanto mais o texto for desprendido de uma doutrina substantiva e coerente, mais o seu trabalho será valorizado. Por brevidade, veja-se o que Erasmo de Rotterdam escreveu sobre os juristas no seu “Elogio da Loucura”. Passados cinco séculos, é atualíssimo. Sem esquecer o comentário do grande Bartolo: i meri leggisti sono puri asini (os meros juristas são puros asnos).
Os homens produziram códigos não para venerar seus cânones, mas para se entenderem. Não é este, ainda, o estágio que foi conquistado no Brasil. Pela fulgurância e rarefação que se autoatribuem os integrantes da comissão que redigiu o novo CPC, tal estágio ainda não será conquistado desta vez. É por isso que o direito parece e, efetivamente, está tão distante das ruas. Não amamos os direitos que temos, nem somos um povo que respeita (e, menos ainda, que venera) o direito edificado pelos que nos antecederam. Muito menos pelos nossos contemporâneos. Mas somos um povo que deplora sem fim o direito que acintosamente nos é negado.
4. O projeto de sucumbência na Justiça do Trabalho – Tramitou na Câmara de Deputados o projeto que estabelece honorários de sucumbência na Justiça do Trabalho (Projeto de Lei nº 3392/2004). Ele foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, mas 62 deputados recorreram ao Plenário (Requerimento 7506/2013), de modo que o tema deveria ser apreciado por todos os componentes da Casa. Ocorre que a ABRAT – Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas e o Conselho Federal da OAB pressionaram os deputados subscritores do recurso e 33 deles retiraram sua assinatura, restando um número insuficiente para amparar o pedido, nos termos do Regimento (Fonte: Senado Federal – Projeto de Lei da Câmara nº 33, de 2013 ; site do TRT da 4ª Região www.trt4.jus.br/portal - Notícias de 15/04/3013; Revista eletrônica Consultor Jurídico, www.conjur.com.br, de 17/06/2013 e OAB/MG, www.oabmg.org.br, Notícias de 05/06/2013).
Várias considerações devem ser feitas, inclusive sobre a manobra constrangedora que resultou na retirada de assinaturas, o que impediu um amplo debate e votação por todos os deputados. Pois isso ocorreu quando a mobilização popular através de manifestações de rua desfraldava a bandeira da transparência. O lobby montado para dissuadir os parlamentares, sabe-se lá com que pretextos ou pressões, resultando na retirada de 33 assinaturas, revela como se dá – na prática – o processo legislativo. A matéria é relevante, pois não se trata só de honorários, mas de redirecionamento que muda a Justiça do Trabalho, suprimindo uma de suas características, que é a gratuidade. A disciplina estabelecida pela Lei 5584/70 já havia suprido os casos de reclamantes carentes, assistidos por sindicatos, pois estabelecia para tais situações os honorários de sucumbência de até 15%.
O projeto que agora já se encontra no Senado está cheio de falhas. Por exemplo, tratando apenas do elementar, contém um só artigo que – não obstante – trata de várias matérias, o que é um erro grosseiro de técnica legislativa. O artigo segundo se refere unicamente à vigência da nova lei. No § 6º, por exemplo, está dito que “nas causas em que a parte estiver assistida por sindicato de classe (...) a condenação nos honorários advocatícios não a alcançará, devendo ser pagos por meio da conta das dotações orçamentárias dos Tribunais.” O que isso quer dizer? Por acaso significa que os honorários de sucumbência coexistirão com os honorários assistenciais, sendo que os 20% dos primeiros serão pagos pela parte vencida e os 15% da assistência pelo Tesouro Nacional, ou vice-versa, cumulativamente? Outra questão que se apresenta é a exposta no § 3º: “é vedada a condenação recíproca e proporcional da sucumbência”. Isso revela a intenção capciosa. A Justiça do Trabalho têm funcionado há 70 anos no Brasil sob o princípio da gratuidade expresso em três situações muito específicas: (1) as custas não são pagas antecipadamente; (2) o depósito recursal realizado quando há condenação patrimonial na primeira instância cumpre a finalidade específica de garantir a execução; (3) a sucumbência de honorários só ocorre mediante a assistência judiciária sindical. O projeto aprovado na Câmara quebra esse sistema, logo teria de admitir obviamente a sucumbência recíproca. Há mesmo inconstitucionalidade em excluí-la, uma vez que as partes deixam de ter tratamento equitativo no processo.
Portanto, essa confusa previsão de honorários acumulados (sucumbência +assistência judiciária+honorários contratados) leva a perguntar: as ações trabalhistas são destinadas a repor direitos violados entre as partes ou se destinam precipuamente a remunerar advogados? Qual é a finalidade que a justiça busca?
Essa trama que envolve “golpes baixos”, na forma de pressão corporativa para a retirada das assinaturas dos deputados, confusão legislativa, infirmando o princípio da gratuidade, e culminando com a excrescência de atribuir o encargo de pagar honorários ao Tesouro Nacional (através da verba orçamentária dos tribunais), mostra o quanto as aspirações populares igualitárias são fraudadas, ainda quando o clamor das ruas soa alto para todos aqueles que têm ao menos mediano entendimento: esta não poderia ser uma República da partilha sorrateira de privilégios para corporações.
5. Pseudoelites reticentes e suas proclamações anódinas – Como já foi analisado em outro tópico, o estado de direito que se quer não é aquele retórico, proclamativo, que se apresenta apenas como alternativa – mas na verdade é um trocadilho - ao direito de Estado. O estado de direito desejado por muitos só pode existir se for autenticamente representativo e participativo, que assegure as garantias sociais e individuais, além do funcionamento prático e efetivo, isto é, com resultados visíveis, das instituições, dos órgãos fiscais, das agências promotoras de serviços públicos e dos programas de desenvolvimento dos projetos que impliquem em reconhecida utilidade social e conquista científica.
Ainda que isso possa ser bem apreendido e sentido pela população, persistem as “recomendações” de pseudoelites a respeito de como o povo deva se comportar, em busca de estados metafísicos de uma ordem institucional que somente serve a privilegiados. Por exemplo, a OAB/RS publicou em todos os jornais de Porto Alegre, em 24/06/2013, uma nota oficial em que “conclama a todos os manifestantes a se expressarem de modo pacífico, no respeito às liberdade individuais, ao patrimônio privado e público, resguardando-se e repelindo atos de vandalismo”. A nota prossegue com os seguintes truísmos: “A OAB/RS, na defesa intransigente da Constituição, da ordem jurídica, do Estado Democrático de Direito, dos Direitos Humanos e da justiça social, reitera que as manifestações realizadas de forma ordeira e pacífica expressam legítimo direito constitucional de liberdade de expressão. A construção de uma sociedade livre, justa e solidária, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil”.
Bom texto, diria um sátiro, para distribuir no auge das manifestações na Praça Tahrir, no Cairo, entre os que pregaram a derrubada de Hosni Mubarak. Com que consequências, não se sabe ... Por que persiste entre nós essa ideia “esclarecida” de que os caminhos do povo devem ser tutelados em nome de aspirações mal explicadas – e pior entendidas – a respeito de uma ordem jurídica “ideal”? Como se ela existisse na prática da vida cotidiana, onde o cidadão se depara com o jogo de astúcia e de trapaça no Congresso, nas invencíveis dificuldades em um processo judicial que deveria ser reparador, na falta de assistência, no colapso dos serviços públicos, num regime legal de ganância e privilégios expressos em lucros predatórios, em salários obscenos – irrisórios para quem realiza o trabalho pesado e altíssimos para a nomenklatura e todos aqueles que acham “que valem mais do que ganham”. Nessas situações todas só há estado de direito retórico.
As entidades que se propõem um papel de tutela popular, que querem comandar as massas de dentro de um gabinete, seguidamente esquecem e produzem sobre isso um silêncio sepulcral: elas próprias já atentaram contra o estado de direito que propagam. Num trabalho nada menos do que maravilhoso, que honra a tradição de pesquisa da universidade brasileira, a historiadora Denise Rollemberg examinou, uma a uma, em minúcia, todas as atas do Conselho Federal da OAB entre 1964 e 1974. Revelações: a OAB apoiou efusivamente o golpe militar, manifestando “euforia” e “orgulho” pela derrubada do presidente eleito, realizando verdadeira “celebração”. Mesmo quando começou a formar-se uma dissidência, a contar da edição do AI-2, em outubro de 1965, capitaneada por Sobral Pinto, o sólido apoio da OAB ao golpe teve ainda muitos lances de afirmação. Nehemias Gueiros, que foi dirigente e atuou no Conselho Federal, chegou a afirmar que colaborou na redação do referido AI-2. Mesmo quando Sobral Pinto, pela primeira vez, em reunião do Conselho de 24/05/65, chamou o regime de ditadura, seu isolamento não foi rompido, de tal modo que teve de transferir-se da Seccional do RJ para a do DF, a fim de manter sua representação no Conselho Federal. Só em 1974, com a mudança de orientação da Seccional de São Paulo (onde então grassava a tortura e morte dos presos políticos no DOI/CODI), o movimento foi crescendo em sentido contrário, até a eleição de Raymundo Faoro para a presidência do Conselho Federal. Na nova fase, a OAB teve um papel muito relevante na democratização, lutou aguerridamente com Sepúlveda Pertence, Eduardo Seabra Fagundes (para quem foi enviada a bomba que matou a secretária Lyda Monteiro da Silva) e muitos outros, porém já então a tônica da redemocratização tinha ganho expressão política, e não era somente uma retórica em favor da “ordem jurídica”. (Fonte: www.história.ufb.br/Memória, Opinião e Cultura Política. A Ordem dos Advogados do Brasil sob a Ditadura - 1964/1974 – Denise Rollemberg). Lições da história serão boas quando os episódios menos edificantes não ficarem escondidos em declarações propondo uma tutela da sociedade que não tem mais razão para existir.
CONCLUSÃO
Este painel sobre os acontecimentos de junho e julho de 2013 no Brasil, tratando de fatos que aconteceram durante as manifestações de rua, ou pouco antes dela, mas sempre como um motivador subjacente à revolta popular, talvez tenha preenchido a função de expor um enfoque analítico, sob o ponto de vista jurídico, do que são as aspirações presentes por mudança. Reforma, recusa, desejo de um outro país, atomismo de iniciativas renovadoras, ausência no reconhecimento de elites que poderiam ser autenticamente representativas – tudo isso tem causa, tem impacto e tem expressão. Mas não se compreende num pensamento racional-dedutivo que queira decalcar na realidade ideias explicativas que não foram desenvolvidas para esse fim, tal como as teorias da ação e reação, ou a do reflexo condicionado (do tipo, se há repressão, há rebelião, ou vice-versa). Não há fisiologia social possível para entender movimentos de ruptura e inovação quando não repetem formas de recusa e denúncia que são conhecidas, mas já não deram certo.
Houve a preocupação de mostrar aqui como se disseminou a percepção da ausência de garantias para exercer a cidadania numa “república de privilégios”, embora subsista o funcionamento formal de um estado de direito retórico. Como também se difundiu a consciência de que existem dificuldades quase intransponíveis para exercer os direitos subjetivos públicos e defender, num jogo que cada vez é mais viciado e caro, os direitos individuais. Muitos exemplos foram dados de desgoverno, corporativismo, autoridades arrogantes, impossibilidade de implantar um sistema equitativo de oportunidades, em face dos lobbies indecorosos e vantagens setoriais beneficiando a uma nomenklatura sempre à custa do Tesouro e do interesse público. Há necessidade social de decretar o fim do arcabouço jurídico caótico dos tribunais mal constituídos, da “Constituição móvel” que nada estabiliza, do cipoal de leis que regridem no tempo, retirando o sentido orgânico dos códigos, ou redefinindo situações jurídicas (inclusive crimes) de um modo mais precário do que já existia.
Muitos cartazes, tão imaginativos como aqueles da revolta de 1968 na França e na Califórnia, expuseram todas essas mazelas. De todos eles, merece ser reproduzido um que não foi fotografado pela imprensa, mas era portado por uma recém adolescente de aspecto frágil, numa das manifestações em Porto Alegre: “Vocês vão ver suas crianças fazerem comédia com as suas leis”. Belo vaticínio. Ou será que isto já está acontecendo?