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A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito ambiental brasileiro

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07/01/2014 às 14:35
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3 A Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica: Comentários Introdutórios

Em uma primeira plana, a fim de sedimentar conceitos essenciais para a compreensão do instituto em destaque, revela-se imperioso compreender a acepção de pessoa jurídica, a partir das concepções estruturadas tanto pela legislação como pela doutrina. Pois bem, impende assinalar que a pessoa jurídica é descrita como uma ficção jurídica, estruturadas pela legislação com o escopo de suprir a inquietação humana. “Permite que os empresários enfrentem os desafios e a álea inerentes à prática comercial. Para abrir um comércio ou uma indústria os sócios se expõem a riscos de vários matizes, que podem redundar em dilapidação patrimonial”[17], como bem aponta a Ministra Nancy Andrighi.

Denota-se, desse modo, que os sócios da pessoa jurídica, com personalidade diversa da natural, passam a atuar no mundo dos negócios. Verifica-se que a personalidade da pessoa jurídica afigura-se como verdadeiro escudo, que oculta os protagonistas das relações jurídicas. Logo, no ordenamento jurídico pátrio, há duas espécies de pessoas: a pessoa natural do sócio e a pessoa jurídica. Segundo o festejado doutrinador Clóvis Beviláqua, “a pessoa jurídica, como sujeito de direito, do mesmo modo que no ponto de vista sociológico, é uma realidade social, uma formação orgânica investida de direitos pela ordem jurídica, a fim de realizar certos fins humanos”[18]. Em reforço com as ponderações apresentadas até o momento, oportuna a lição de Freddie Didier Júnior et all de que:

A pessoa jurídica é, portanto, um instrumento técnico-jurídico desenvolvido para facilitar a organização da atividade econômica. Se assim é, o caráter de instrumentalidade implica o condicionamento do instituto ao pressuposto do atingimento do fim jurídico a que se destina. A pessoa jurídica é técnica criada para o exercício da atividade econômica e, portanto, para o exercício do direito de propriedade. A chamada função social da  pessoa jurídica (função social da empresa) é corolário da função social da propriedade, já tão estudada e expressamente prevista na Constituição Federal. O estudo da desconsideração da personalidade jurídica, portanto,deve iniciar-se desta premissa: é indispensável a análise funcional do instituto da pessoa jurídica, a partir da análise também funcional do direito de propriedade, para que se possa compreender corretamente a desconsideração, que, em teoria geral do direito, é sanção aplicada a ato ilícito (no caso, a utilização abusiva da personalidade jurídica)[19]

     Cuida realçar que o Diploma Civilista adotou a denominação pessoa jurídica em razão de ser mais expressiva, bem como por traduzir a natureza particular deste segundo gênero de pessoas. A pessoa jurídica é encontrada na sociedade, que lhe atribui a essência que necessita para substituir e desenvolver-se, motivo pelo qual existe apenas na órbita jurídica, inexistindo, por conseguinte, a existência biológica das pessoas naturais. Nesta senda, impõe lançar mão das lições de Sílvio Rodrigues, em especial quando leciona que “pessoas jurídicas são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com personalidade diversa dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”[20].

     Ao lado disso, há que se assinalar que, em razão da distinção supra, se desfralda como flâmula orientadora o princípio da separação patrimonial entre os bens do sócio e os bens da sociedade, o qual tem como fito precípuo traçar linhas limitadoras no que concerne à responsabilidade do sócio, resguardando, por conseguinte, o patrimônio pessoal de eventuais intempéries. O corolário em testilha oferta, desta sorte, segurança ao sócio ao tempo em que estimula o investimento. Inclusive, colhe-se, à guisa de exemplificação, entendimento jurisprudencial que se coaduna, de maneira harmoniosa, com o expendido:

Ementa: agravo de instrumento. Seguros. A desconsideração da personalidade jurídica, por se tratar de medida excepcional, uma vez que pode acarretar graves e irreversíveis prejuízos ao patrimônio particular dos sócios, não deve ser deferida sem um mínimo de prova convincente do uso fraudulento do princípio da autonomia da separação patrimonial. A desconsideração da personalidade jurídica só será juridicamente admissível quando, através do conjunto probatório, for possível denotar-se a presença de elementos que levem à conclusão de terem os sócios agido com intenção dolosa, infringindo preceitos legais, ou se ficar comprovada a extinção irregular da empresa, a não integralização do capital, ou ainda nas hipóteses em que houver confusão entre a pessoa jurídica e a pessoa física dos sócios. No caso concreto, nada disso ocorreu. Recurso desprovido. (Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul – Sexta Câmara Cível/ Agravo de Instrumento Nº. 70036178911/ Relator: Desembargador Ney Wiedemann Neto/ Julgado em 26.08.2010) (destaquei)

Nesse sedimento, pode-se, ainda, gizar que a pessoa jurídica é uma realidade autônoma, detentora de direitos e obrigações, independente dos membros que a integram, com os quais não detêm nenhum vínculo, agindo por si só, inexistindo qualquer ligação com a vontade individual das pessoas naturais que a integram. “Realmente, seus componentes somente respondem por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual”[21]. Quadra avultar que a limitação de responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídico é decorrente de sua personalidade, revelando-se como uma de suas maiores vantagens, sendo, como dito algures, detentora de direitos e obrigações, independente das pessoas que a integram.

     Vale salientar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi desenvolvida pelos tribunais norte-americanos e anglo-saxões, sendo, posteriormente, importada para o ordenamento jurídico vigente. O assunto em comento teve sua gênese diante de casos concretos, em que o controlador da sociedade a desviava do fito a que destinava, objetivando impedir fraudes mediante o uso da personalidade jurídica, conferindo responsabilidade aos seus membros. Como paradigmáticos precedentes jurisprudenciais, os quais atuaram como alicerces para edificação da teoria em comento, por necessário, pode-se citar:  “1. State vs. Standard Oil Co., julgado pela Suprema Corte do Estado de Ohio, nos EE.UU, em 1892. 2. Salomon vs. Salomon & Co., julgado pela Câmara de Londres, em 1897, na Inglaterra”[22].

     Com efeito, o Código Civil de 1916, ressoando o robusto fortalecimento da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, já trazia em suas disposições tal distinção, consoante se infere da redação do artigo 20, ipso litteris, transcrito: “Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”[23]. Pela leitura do dispositivo supra, observa-se que, com clareza solar, o legislador previu, com acerto, distinção entre a pessoa jurídica e os membros que a integram. Trata-se do ponto de partida que foi aprimorado pelo Diploma de 2002, na redação do artigo 50, assim como adoção em outras ramificações do Direito Pátrio.


4 A Desconsideração da Personalidade Jurídica na Lei Nº. 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais)

A Lei de Crimes Ambientais, albergou em seu artigo 4º, a possibilidade da utilização da desconsideração da personalidade jurídica, quando sua personalidade se revelar como óbice para que haja o ressarcimento do prejuízo causado ao meio-ambiente. A adoção da teoria em testilha pela Lei Nº. 9.605, de 13 de fevereiro de 1998, revela-se como dotada de grande importância, porquanto ambiciona inibir a fraude de pessoas que empregam as regras jurídicas da sociedade para se furtar de suas responsabilidades ou mesmo atuando de modo fraudulento. “Ademais, não podemos esquecer que no caso dos crimes o bem tutelado é o meio ambiente que é considerado como bem de uso comum do povo (art. 225 da Constituição Federal), ou seja, é um bem difuso de interesse de todos, que deve ser defendido por todos”[24].

A Lei ambiental, regulamentando preceito de cunho constitucional, passou a prever, com clareza solar, a possibilidade de penalização criminal das pessoas jurídicas por danos ao meio-ambiente. Nesta senda, cuida anotar que aA responsabilização penal da pessoa jurídica pela prática de delitos ambientais advém de uma escolha política, como modo não apenas de punição das condutas lesivas ao meio-ambiente, mas como forma mesmo de prevenção geral e especial. É fato que a imputação penal às pessoas jurídicas esbarra na suposta incapacidade de perpetrarem uma ação dotada de relevância penal, assim como de serem culpáveis e, por extensão, de sofrerem as penalidades cominas nos diplomas legais. Com destaque, é possível colacionar o paradigmático aresto:

Ementa: Recurso especial. Ação civil pública. Poluição ambiental. Empresas mineradoras. Carvão mineral. Estado de Santa Catarina. Reparação. Responsabilidade do Estado por omissão. Responsabilidade solidária. Responsabilidade subsidiária. [...] 5. A desconsideração da pessoa jurídica consiste na possibilidade de se ignorar a personalidade jurídica autônoma da entidade moral para chamar à responsabilidade seus sócios ou administradores, quando utilizam-na com objetivos fraudulentos ou diversos daqueles para os quais foi constituída. Portanto, (i) na falta do elemento "abuso de direito"; (ii) não se constituindo a personalização social obstáculo ao cumprimento da obrigação de reparação ambiental; e (iii) nem comprovando-se que os sócios ou administradores têm maior poder de solvência que as sociedades, a aplicação da disregard doctrine não tem lugar e pode constituir, na última hipótese, obstáculo ao cumprimento da obrigação. 6. Segundo o que dispõe o art. 3º, IV, c/c o art. 14, § 1º, da Lei n. 6.938/81, os sócios/administradores respondem pelo cumprimento da obrigação de reparação ambiental na qualidade de responsáveis em nome próprio. A responsabilidade será solidária com os entes administrados, na modalidade subsidiária. 7. A ação de reparação/recuperação ambiental é imprescritível. 8. Recursos de Companhia Siderúrgica Nacional, Carbonífera Criciúma S/A, Carbonífera Metropolitana S/A,  Carbonífera Barro Branco S/A, Carbonífera Palermo Ltda., Ibramil - Ibracoque Mineração Ltda. não-conhecidos. Recurso da União provido em parte. Recursos de Coque Catarinense Ltda., Companhia Brasileira Carbonífera de Ararangua (massa falida), Companhia Carbonífera Catarinense, Companhia Carbonífera Urussanga providos em parte. Recurso do Ministério Público provido em parte. (Superior Tribunal de Justiça – Segunda Turma/ REsp 647.493/SC/ Relator: Ministro João Otávio de Noronha/ Julgado em 22.05.2007/ Publicado no DJ em 22.10.2007, p. 233).

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     Ao lado disso, assinale-se que se a pessoa jurídica goza de existência própria, conferida pelo ordenamento jurídico, e pratica atos no meio social, por meio da atuação de seus administradores, poderá, igualmente, praticar condutas típicas e, portanto, ser passível de responsabilização penal. A culpabilidade, no conceito moderno, é a responsabilidade social, e a culpabilidade da pessoa jurídica, neste contexto, limita-se à vontade do seu administrador ao agir em seu nome e proveito. Deste modo, a pessoa jurídica só pode ser responsabilizada quando houver intervenção de uma pessoa física, que atua em nome e em benefício do ente moral. Trata-se, com efeito, de visão alicerçada que busca materializar o ideário irradiado pelo princípio do meio ambiente ecologicamente equilibrado, refletindo a ótica que os direitos humanos de terceira dimensão, calcados na solidariedade transindividual, valorando a coletividade, não como um somatório de indivíduos, mas sim como uma unidade que reclama uma ótica pautada na materialização da fraternidade transgeracional, atentando-se tanto para as presentes quanto para as futuras gerações. Neste sentido, colhem-se os seguintes precedentes jurisprudenciais:

Ementa: Recurso Ordinário em Mandado de Segurança. Direito Processual Penal. Crime Ambiental. Responsabilização da Pessoa Jurídica. Possibilidade. Trancamento da Ação Penal. Inépcia da Denúncia. Ocorrência. 1. Admitida a responsabilização penal da pessoa jurídica, por força de sua previsão constitucional, requisita a actio poenalis, para a sua possibilidade, a imputação simultânea da pessoa moral e da pessoa física que, mediata ou imediatamente, no exercício de sua qualidade ou atribuição conferida pela estatuto social, pratique o fato-crime, atendendo-se, assim, ao princípio do nullum crimen sine actio humana. 2. Excluída a imputação aos dirigentes responsáveis pelas condutas incriminadas, o trancamento da ação penal, relativamente à pessoa jurídica, é de rigor. 3. Recurso provido. Ordem de habeas corpus concedida de ofício. (Superior Tribunal de Justiça – Sexta Turma/ RMS 16.696/PR/ Relator. Ministro Hamilton Carvalhido/ Publicado no DJ de 13.03.2006/ pág. 373) (destaquei)

Ementa: Processual Penal. Recurso Especial. Crimes contra o Meio Ambiente. Denúncia rejeitada pelo E. Tribunal a quo. Sistema ou Teoria da Dupla Imputação. Admite-se a responsabilidade penal da pessoa jurídica em crimes ambientais desde que haja a imputação simultânea do ente moral e da pessoa física que atua em seu nome ou em seu benefício, uma vez que "não se pode compreender a responsabilização do ente moral dissociada da atuação de uma pessoa física, que age com elemento subjetivo próprio" cf. Resp nº 564960/SC, 5ª Turma, Rel. Ministro Gilson Dipp, DJ de 13/06/2005 (Precedentes). Recurso especial provido. (Superior Tribunal de Justiça – Quinta Turma/ REsp 889.528/SC/ Relator Ministro Felix Fischer/ Publicado no DJ de 18.06.2007/ pág. 331) (destaquei)

É possível verificar, desta sorte, que a pessoa jurídica responderá, juntamente com a pessoa natural causadora do dano, pelos atos praticados em seu nome. De igual modo, aquele que se valer da pessoa jurídica para perpetrar atos delituosos contra a qualidade do meio ambiente, compreendendo-se em tal vocábulo natural, artificial, cultural e do trabalho, será sujeitado às sanções administrativas, civil e penal, ocasião que haverá a incidência da teoria da desconsideração da personalidade jurídica.

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Sobre o autor
Tauã Lima Verdan Rangel

Mestre (2013-2015) e Doutor (2015-2018) em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especialista Lato Sensu em Gestão Educacional e Práticas Pedagógicas pela Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) (2017-2018). Especialista Lato Sensu em Direito Administrativo pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Direito Ambiental pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Direito de Família pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI)/Instituto Alfa (2016-2018). Especialista Lato Sensu em Práticas Processuais Civil, Penal e Trabalhista pelo Centro Universitário São Camilo-ES (2014-2015).. Produziu diversos artigos, voltados principalmente para o Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Civil e Direito Ambiental.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RANGEL, Tauã Lima Verdan. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica no direito ambiental brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3842, 7 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26335. Acesso em: 22 dez. 2024.

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