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A extrafiscalidade na jurisprudência dos Tribunais

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23/01/2014 às 16:07
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Imposto sobre a Renda - IR

De um modo geral, o imposto de renda não é tratado entre os juristas brasileiros como meio de extrafiscalidade, salvo pelos variados benefícios fiscais que tomam o tributo como base.

Contudo, na teoria econômica e na literatura jurídica estrangeira e, em algumas obras jurídicas nacionais, discute-se sobre os efeitos econômicos do imposto sobre a renda, bem como sua utilização como instrumento de política fiscal ou de intervencionismo fiscal[16].

Os temas debatidos se referem à tributação da poupança ou, no caso brasileiro, à isenção da poupança, como estímulo à formação de capital; à depreciação acelerada de bens com vistas à renovação do parque industrial; o efeito de redistribuição de renda promovido pela progressividade das alíquotas; a tributação favorecida de investimentos desejáveis de acordo com a política econômica governamental, como a tributação regressiva no tempo dos planos de previdência complementar, entre outros.

Em outra oportunidade, sustentamos:

A tributação da renda permite efeitos extrafiscais. Segundo a doutrina econômica, a tributação sobre a renda é menos danosa à economia, gerando, conforme a terminologia keynesiana, menor efeito multiplicador negativo se comparada à tributação indireta. Proporciona, também, efeitos sobre a elasticidade–renda dos bens ofertados no mercado. Sua potencialidade de promover redução das desigualdades de renda é notória. Pode constituir meio de tratamento favorecido à renda da família, como assevera Misabel Derzi.

[...]

O IR, pela sua natureza, é o tributo mais afeito ao princípio da capacidade contributiva, analisada do ponto de vista objetivo, porque incide sobre acréscimos patrimoniais e, do ponto de vista subjetivo, porque permite a consideração de diferenças individuais em razão de cada contribuinte. De uma maneira geral, então, pode o imposto incidir de forma progressiva, onerando mais quem aufere mais renda o que lhe confere, conforme ensinam a economia e a ciência das finanças, maior capacidade contributiva. Daí, então, os efeitos extrafiscais da progressividade do IR, tanto pessoa física quanto pessoa jurídica. Alíquotas mais elevadas para os mais ricos proporcionam redistribuição de renda, permitem ao mais pobre permanecer com a pouca renda auferida para suprir suas necessidades mais básicas, fazem com que o contribuinte mais abastado suporte mais que proporcionalmente as despesas públicas e tende a igualar estes àqueles[17].

Afastando-se destes temas, contudo, a jurisprudência do STJ tem acolhido a extrafiscalidade como razão de decidir num caso peculiar, relativo aos percentuais aplicáveis na apuração do lucro presumido.

Para melhor exposição da matéria, precisamos estudar, ainda que de passagem, o conceito de renda e as modalidades de incidência do imposto.

No Brasil, o art. 43, do CTN, define renda de maneira ampla, mas consentânea com a Constituição, e é este o conceito de renda válido no país:

Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica:

I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos;

II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.

Conforme o Código, será renda a remuneração do trabalho, como o salário, do capital, como os juros e os alugueis, ou da combinação de ambos, como o lucro.

Misabel Derzi apresenta uma síntese das correntes que investigam o conceito de renda, separando-as conforme se ajustem a tributação da pessoa jurídica ou da pessoa física. Vejamos:

Do ponto de vista econômico-fiscal, classicamente, também são duas as principais correntes que buscam apreender o conceito de renda:

1. como excedente, ou acréscimo de riqueza, considerando o fluxo de satisfações e serviços consumidos (Irving Fisher) ou meramente disponíveis (Hewett), representados por seu valor monetário, fluxo que engloba as entradas e saídas em um período determinado de tempo. É conceito que melhor se ajusta àquele empregado pelo legislador na apuração da renda da pessoa física[18].

2. como acréscimo de valor ou de poder econômico, apurada a renda pela comparação dos balanços de abertura e encerramento de determinado período. É conceito utilizado na apuração da renda da pessoa jurídica, especialmente sociedades comerciais[19].

Explica K. Tipke (Steuerrecht. Ein systematicher Grundriss. 9. Köln, p. 213) que o dualismo tem longa tradição, pois, ainda no século XIX, a lei cedeu às exigências dos empresários do comércio e da indústria, que insistiram em identificar o lucro com o resultado da contabilidade comercial. A diferença de tratamento legal dispensado à pessoa física e à pessoa jurídica, ainda hoje, está assentada nos seguintes argumentos:

1. do risco do empreendimento, sendo a atividade empresarial muito mais sensível às oscilações da economia;

2. da necessidade de afetação de um patrimônio às atividades empresariais[20].

Para a pessoa física, pois, renda será o acréscimo patrimonial, enquanto para a pessoa jurídica será o resultado líquido da atividade no período, apurado mediante o somatório das receitas e a subtração das despesas. Como a atividade é contínua, a apuração do imposto também deverá ser, permitindo-se a compensação de prejuízos nos anos posteriores.

Já se poderia, a partir da distinção do conceito de renda da pessoa física e da pessoa jurídica perquirir sobre os efeitos fiscais e extrafiscais do imposto. Mas nosso objeto de estudo ainda não é este.

Para chegarmos a este objetivo, precisamos lembrar o art. 44, do CTN, que especifica a possível base de cálculo do imposto. Vejamos:

Art. 44. A base de cálculo do imposto é o montante, real, arbitrado ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis.

A base do IRPJ poderá, nestes termos, ser a renda real, arbitrada ou presumida.

O ponto que nos interessa para discutir a jurisprudência é a do lucro presumido, relativo às discussões sobre o percentual aplicável a hospitais e a outras empresas do ramo da saúde.

A base de cálculo dos tributos, como adverte a literatura, é a dimensão econômica do fato gerador e, assim como este, está adstrito ao princípio da capacidade contributiva. Como leciona Misabel Derzi, a capacidade econômica objetiva determina que o legislador defina fatos geradores representativos de riqueza e a capacidade contributiva subjetiva, aliada ao princípio da pessoalidade, perfeitamente aplicável ao imposto de renda, impõe que a incidência tributária ocorra sobre a efetiva riqueza do contribuinte[21]. Tal fim, inarredavelmente, necessita dos ajustes na base de cálculo do sujeito passivo.

A questão torna-se simples no que toca ao lucro real, cabendo ao legislador permitir as despesas necessárias às diferentes atividades e aos diferentes contribuintes, para atingir a capacidade econômica subjetiva.

No lucro arbitrado surge o problema: o legislador não está autorizado a definir base de cálculo de maneira a descaracterizar o fato gerador renda (lucro da pessoa jurídica), sendo-lhe vedado tributar toda a receita ou dispensar a tributação, mas também não pode levar em conta as peculiaridades do contribuinte.

Assim, a base de cálculo presumida atende ao princípio da capacidade contributiva objetiva, desde que esta base corresponda, com maior ou menor precisão, ao conceito de renda. De outro lado, afasta-se da capacidade contributiva subjetiva e da personalização do imposto, em prestígio à praticidade dessa forma de apuração da base de cálculo do imposto em comparação com o lucro real.

Sob o ponto de vista jurídico econômico, o lucro presumido, vale dizer, o percentual da receita que corresponde ao lucro, deve ser uma aproximação, do tipo geral ou médio, da renda de cada atividade prevista pelo legislador, para que a capacidade econômica objetiva seja alcançada.

A definição do percentual de presunção de lucro, pois, não corresponde a benefício fiscal nem se deixa levar por razões extrafiscais.

O STJ, contudo, entendeu de forma diferente ao apreciar o art. 15, § 1º, da Lei 9.249/95, que, em sua redação original, determinou a aplicação do percentual de presunção de 8% para serviços hospitalares e 32% outros serviços, inclusive clínicas, laboratórios médicos.

Os contribuintes alegavam que não havia diferença entre o serviço médico, clínico ou laboratorial prestado em hospital ou em clínica médica e postulavam o percentual de 8% para a definição do lucro presumido, tese inicialmente rejeitada, como exemplifica o julgado no REsp 832.906/SC.

A Corte começou a mudar seu entendimento ao acolher a tese de que se tratava de benefício fiscal que não se pautava pela estrutura da pessoa jurídica, sendo irrelevante a possibilidade de internação, mas pela natureza do serviço. Assim, irrelevante que o prestador do serviço fosse hospital, clínica ou laboratório. Vejamos:

PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. LUCRO PRESUMIDO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL SOBRE O LUCRO. BASE DE CÁLCULO. ARTS. 15, § 1º, III, "A", E 20 DA LEI Nº 9.249/95. SERVIÇO HOSPITALAR. INTERNAÇÃO. NÃO-OBRIGATORIEDADE. INTERPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DA NORMA. FINALIDADE EXTRAFISCAL DA TRIBUTAÇÃO. POSICIONAMENTO JUDICIAL E ADMINISTRATIVO DA UNIÃO. CONTRADIÇÃO. NÃO-PROVIMENTO.

1. O art. 15, § 1º, III, "a", da Lei nº 9.249/95 explicitamente concede o benefício fiscal de forma objetiva, com foco nos serviços que são prestados, e não no contribuinte que os executa. Observação de que o Acórdão recorrido é anterior ao advento da Lei nº 11.727/2008.

2. Independentemente da forma de interpretação aplicada, ao intérprete não é dado alterar a mens legis. Assim, a pretexto de adotar uma interpretação restritiva do dispositivo legal, não se pode alterar sua natureza para transmudar o incentivo fiscal de objetivo para subjetivo.

3. A redução do tributo, nos termos da lei, não teve em conta os custos arcados pelo contribuinte, mas, sim, a natureza do serviço, essencial à população por estar ligado à garantia do direito fundamental à saúde, nos termos do art. 6º da Constituição Federal.

4. Qualquer imposto, direto ou indireto, pode, em maior ou menor grau, ser utilizado para atingir fim que não se resuma à arrecadação de recursos para o cofre do Estado. Ainda que o Imposto de Renda se caracterize como um tributo direto, com objetivo preponderantemente fiscal, pode o legislador dele se utilizar para a obtenção de uma finalidade extrafiscal.

5. Deve-se entender como "serviços hospitalares" aqueles que se vinculam às atividades desenvolvidas pelos hospitais, voltados diretamente à promoção da saúde. Em regra, mas não necessariamente, são prestados no interior do estabelecimento hospitalar, excluindo-se as simples consultas médicas, atividade que não se identifica com as prestadas no âmbito hospitalar, mas nos consultórios médicos.

6. Duas situações convergem para a concessão do benefício: a prestação de serviços hospitalares e que esta seja realizada por instituição que, no desenvolvimento de sua atividade, possua custos diferenciados do simples atendimento médico, sem, contudo, decorrerem estes necessariamente da internação de pacientes.

[...]

(STJ; S1; REsp 951.251/PR; Min. Castro Meira; DJe de 03/06/2009)

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Nestes exatos termos se pacificou a jurisprudência, no julgamento do REsp 1.116.399/BA. O STJ consolidou o entendimento de que o percentual de 8% para a definição da base de cálculo constitui benefício fiscal objetivo, voltado à atividade de saúde, que não pode ser restringido a estabelecimentos destinados ao atendimento global ao paciente, mediante internação e assistência médica integral.

Com a Lei 11.727/08, diversos serviços médicos passaram a ter o lucro presumido em 8% sobre a receita bruta.

Em nosso entendimento, sem perquirir pelo melhor percentual de presunção a ser aplicados para empresas prestadoras de serviços médicos, como clínicas e laboratórios, não havia espaço para discutir benefícios fiscais ou extrafiscalidade nas demandas.

Contudo, a jurisprudência demonstra a força que o argumento extrafiscal tem ganhado nos tribunais.


Conclusões

A título de conclusão, podemos afirmar que a extrafiscalidade tem recebido maior destaque, tanto nas discussões acadêmicas quanto nos foros judiciais.

Percebe-se que, a um tempo, a extrafiscalidade tem sido invocada como razão de decidir, especialmente nos casos levados às cortes superiores, bem como o regime jurídico da extrafiscalidade tem sido definido pelos tribunais, o que leva a positivação de matéria antes reservada ao campo do extrajurídico.

É certo que inclusão da extrafiscalidade no direito positivo é incipiente, havendo muito o que se desenvolver. As decisões recentes do STF e do STJ, contudo, convocam a comunidade jurídica à discussão do tema, abrindo espaço para a argumentação extrafiscal nos casos concretos e estimulando a produção científica do tema ainda em desenvolvimento.


Bibliografia

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BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Ed. atualizada por Misabel Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003

BALEEIRO, Aliomar. Limitações ao poder de tributar. Ed. atualizada por Misabel Derzi. Rio de Janeiro: Forense, 2003

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Sobre o autor
Marcus de Freitas Gouvêa

procurador da Fazenda Nacional, mestre em Direito Tributário pela UFMG

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVÊA, Marcus Freitas. A extrafiscalidade na jurisprudência dos Tribunais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3858, 23 jan. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26493. Acesso em: 4 mai. 2024.

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