1 – Introdução
Quando a Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, deu nova redação ao art. 114 da Constituição, ampliou-se significativamente a esfera de competência dos órgãos judiciários trabalhistas. Até então, o texto vigente dispunha que, à Justiça do Trabalho, competia "conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas."
Percebe-se, assim, que a redação original do art. 114 da CF/88 era demasiado restritiva. Reportava-se apenas a "dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores." Com isso, a competência em razão da matéria (ratione materiae) da Justiça do Trabalho limitava-se, de maneira geral, tão somente à apreciação daquelas relações jurídicas que envolvessem vínculo de emprego. É claro que o legislador tinha a possibilidade de ampliar essa competência material, a fazer com que a Justiça Especializada Trabalhista avançasse no julgamento de outras demandas oriundas de relações de labor. Um exemplo clássico encontra-se no art. 643 da própria CLT, que versa sobre a competência para dirimir os conflitos sindicais:
Art. 643 - Os dissídios, oriundos das relações entre empregados e empregadores bem como de trabalhadores avulsos e seus tomadores de serviços, em atividades reguladas na legislação social, serão dirimidos pela Justiça do Trabalho, de acordo com o presente Título e na forma estabelecida pelo processo judiciário do trabalho.
§ 1º - As questões concernentes à Previdência Social serão decididas pelos órgãos e autoridades previstos no Capítulo V deste Título e na legislação sobre seguro social.
§ 2º - As questões referentes a acidentes do trabalho continuam sujeitas a justiça ordinária, na forma do Decreto n. 24.637, de 10 de julho de 1934, e legislação subseqüente.
§ 3º A Justiça do Trabalho é competente, ainda, para processar e julgar as ações entre trabalhadores portuários e os operadores portuários ou o Órgão Gestor de Mão-de-Obra - OGMO decorrentes da relação de trabalho.
No entanto, sem norma expressa autorizando, a competência da Justiça do Trabalho ficava restrita às demandas caracterizadas pelo vínculo empregatício (por isso, à época, muitos juristas chamavam-na, jocosamente, de "Justiça do Emprego").
Motivado pela necessidade de conferir maior prestígio à Justiça Especializada, o legislador constituinte incorporou entre as diretrizes norteadoras da Reforma do Poder Judiciário a ampliação da competência dos órgãos jurisdicionais trabalhistas. Operou-se, então, por meio da EC 45/04, uma expressiva alteração redacional do art. 114, que passou a figurar no texto constitucional desta forma:
Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar:
I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios;
II as ações que envolvam exercício do direito de greve;
III as ações sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores;
IV os mandados de segurança, habeas corpus e habeas data , quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;
V os conflitos de competência entre órgãos com jurisdição trabalhista, ressalvado o disposto no art. 102, I, o;
VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho;
VII as ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;
VIII a execução, de ofício, das contribuições sociais previstas no art. 195, I, a , e II, e seus acréscimos legais, decorrentes das sentenças que proferir;
IX outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei.
§ 1º - Frustrada a negociação coletiva, as partes poderão eleger árbitros.
§ 2º Recusando-se qualquer das partes à negociação coletiva ou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente.
§ 3º Em caso de greve em atividade essencial, com possibilidade de lesão do interesse público, o Ministério Público do Trabalho poderá ajuizar dissídio coletivo, competindo à Justiça do Trabalho decidir o conflito.
Sendo assim, conforme a nova redação do art. 114 do texto constitucional, a Justiça do Trabalho teve sua competência em razão da matéria ampliada iniludivelmente. Por consequência, a doutrina inclinou-se a considerar que, após a EC 45/04, a competência dos órgãos jurisdicionais trabalhistas abrangia o julgamento de todos os litígios ligados a relações de trabalho genericamente consideradas, independentemente de autorização legal.
2 - Problemas na interpretação do art. 114, I, da CF/88: o caso dos servidores públicos
Porém, a ampliação competencial a que aludo também trouxe alguns problemas de interpretação. O mais famoso deles, e ao estudo do qual dedico este artigo, extrai-se já do inc. I do art. 114, onde se nota que a expressão "ações oriundas da relação de trabalho" é demasiado genérica; portanto, passível de abarcar demandas de cunho laboral indistintamente. Apoiados nesse raciocínio - perfeitamente legítimo à luz do texto constitucional reformado, ressalto -, parte da doutrina passou a defender a tese segundo a qual as relações de trabalho entre o Poder Público e seus agentes estariam igualmente abrangidas pela expansão da competência da Justiça do Trabalho promovida pela EC 45/04. Por outras palavras: a teor do art. 114, I, da Constituição, poder-se-ia admitir que órgãos judiciários trabalhistas viessem a conhecer e julgar demandas que envolvessem a Administração Pública e servidores a ela vinculados por relação estatutária, tradicionalmente considerada jurídico-administrativa.
Essa tese ganhou força na jurisprudência rapidamente após a promulgação de EC nº 45/04. Em pouco tempo, muitos juízes e tribunais do trabalho puseram-se a decidir litígios entre o Poder Público e seus servidores estatutários que envolviam o pleito de direitos previstos ora em estatuto, ora na própria CLT. Logo, era previsível que a controvérsia chegaria à instância máxima do Poder Judiciário brasileiro.
A oportunidade surgiu com a propositura, em 2005, da ADI 3395/DF pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) em conjunto com a Associação Nacional dos Magistrados Estaduais (ANAMAGES). À época, o Min. Nelson Jobim concedeu liminar em medida cautelar para obstar qualquer interpretação que autorizasse a Justiça do Trabalho a resolver lides entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Posteriormente, já sob a relatoria do Min. Cézar Peluso, a liminar foi submetida ao referendo do Plenário, que prontamente assentiu com o entendimento in limine.
Vejamos como ficou ementado esse precedente tão importante:
EMENTA: INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Competência. Justiça do Trabalho. Incompetência reconhecida. Causas entre o Poder Público e seus servidores estatutários. Ações que não se reputam oriundas de relação de trabalho. Conceito estrito desta relação. Feitos da competência da Justiça Comum. Interpretação do art. 114, inc. I, da CF, introduzido pela EC 45/2004. Precedentes. Liminar deferida para excluir outra interpretação. O disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária.
(STF, Tribunal Pleno, ADI 3395 MC/DF, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 05/04/2006, p. DJ 10/11/2006).
Em que pese o Pleno do STF ainda não ter julgado a ADI 3395/DF no seu mérito, trata-se do posicionamento atual e prevalente nessa matéria. E, segundo o que ficou decidido na cautelar, temos que o Supremo Tribunal Federal afastou toda e qualquer interpretação do art. 114, I, da Constituição que venha a inserir, na competência da Justiça do Trabalho, a apreciação de causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.
3 - Casuística
Não obstante o precedente firmado na medida cautelar da ADI 3395, a realidade que une servidores à Administração Pública tem-se revelado demasiado complexa. São muitas as situações que exibem peculiaridades nas relações do Poder Público com seus agentes. Soma-se a isso a insurgência de muitos órgãos da Justiça do Trabalho (monocráticos ou colegiados) contra a posição adotada pela Suprema Corte. Com efeito, a insatisfação decorre do discrime quanto à interpretação do art. 114, I, da CF/88. Aí se percebe que o STF optou, de maneira inequívoca, pelos interesses estatais. Fê-lo com base num suposto conceito estrito de relação de trabalho, a excluir o vínculo estatutário. Eis um argumento formalista, que, no entanto, não tem o condão de afastar o caráter laboral dos pleitos de direitos dos servidores. No fundo, o que se quis evitar foi que o Juízo Especializado do Trabalho viesse a conhecer dessas demandas e julgasse desfavoravelmente às Fazendas Municipal, Estadual e Federal. Por outro lado, esse risco não se apresenta tão intenso quando se desloca tal competência para a Justiça Comum (Federal ou Estadual). É que as causas entre servidores e Administração, na Justiça Comum, passam a ser julgadas por juízes que foram educados não pela lógica preconizada pelo princípio protetor do Direito do Trabalho, onde o obreiro é reconhecido parte vulnerável da relação, mas sim pela premissa administrativista da supremacia do interesse público, o que é uma posição notadamente fazendária.
Diante dessas circunstâncias, o STF vem enfrentando casos concretos por meio dos quais se põe a esclarecer detalhes que enriquecem a ratio decidendiassentada na ADI 3395. Separei dois desses casos, que envolvem reclamações trabalhistas propostas contra a Fazenda Pública por ex-empregados contratados por necessidades temporárias. Meu objetivo é exemplificar a tendência jurisprudencial que se vem consolidando na Corte a respeito dessa matéria. Ressalto, ainda, que ambas as reclamações constitucionais foram decididas monocraticamente pelo Min. Teori Zavascki.
3.1 - Rcl 16100/AM
No Estado do Amazonas, um ex-empregado ajuizou reclamação trabalhista contra a Fazenda Pública Estadual. Ele havia sido contratado por necessidades temporárias e pleiteava direitos previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). O juízo da 13º Vara do Trabalho de Manaus, então, declinou da competência para julgar o processo, mas o Tribunal Regional do Trabalho da 11º Região reformou a decisão, sob a alegação de que houve burla ao regime especial previsto em lei estadual amazonense que dispõe acerca de necessidades temporárias de excepcional interesse público. Para o TRT11, as funções do contrato refletiriam atividade permanente e regular de segurança pública, consistente na prestação de auxílio à Polícia Militar.
O Estado do Amazonas ajuizou, então, a Rcl 16100/AM, com pedido de liminar, no STF. A argumentação do reclamante sustentou-se no suposto desrespeito à autoridade da decisão proferida pela Corte no julgamento da ADI 3395 MC/DF.
No STF, o relator da reclamação, Min. Teori Zavascki, enfatizou que o cabimento da ação deve ser aferido nos estritos limites das normas de regência, que só a concebem para o fim de preservar a competência do Tribunal e para a garantia da autoridade de suas decisões (CF, art. 102, I, l), bem como para cassar atos que contrariem ou que indevidamente apliquem enunciado de súmula vinculante (CF, art. 103-A, § 3º).
Assim, o relator entendeu que houve ofensa à autoridade da decisão tomada na ADI 3395, porquanto nesse precedente o Plenário do STF referendou a decisão liminar segundo a qual, na interpretação do inc. I do art. 114 da Constituição de 1988, conforme a redação da EC 45/04, ficava afastado todo e qualquer entendimento jurisprudencial que incluísse na competência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.
O ponto mais importante da decisão do ministro foi rechaçar o fundamento adotado pela decisão reclamada. Segundo entendeu o relator, à luz do decidido na ADI 3395 MC/DF, não cabe afastar a competência da Justiça Comum em demanda que envolva empregado, sob o argumento do desvirtuamento do regime especial, em razão da permanente prestação de serviços à Administração Pública. É como ficou assentado no seguinte precedente (grifo meu):
RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL. AUTORIDADE DE DECISÃO PROFERIDA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: ARTIGO 102, INCISO I, ALÍNEA L, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE N. 3.395. CONTRATAÇÃO DE SERVIDOR SEM CONCURSO PÚBLICO: COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM. CAUSA DE PEDIR RELACIONADA A UMA RELAÇÃO JURÍDICO-ADMINISTRATIVA. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO E RECLAMAÇÃO PROCEDENTE.
1. O Supremo Tribunal Federal decidiu no julgamento da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 3.395 que "o disposto no art. 114, I, da Constituição da República, não abrange as causas instauradas entre o Poder Público e servidor que lhe seja vinculado por relação jurídico-estatutária".
2. Apesar de ser da competência da Justiça do Trabalho reconhecer a existência de vínculo empregatício regido pela legislação trabalhista, não sendo lícito à Justiça Comum fazê-lo, é da competência exclusiva desta o exame de questões relativas a vínculo jurídico-administrativo.
3. Antes de se tratar de um problema de direito trabalhista a questão deve ser resolvida no âmbito do direito administrativo, pois para o reconhecimento da relação trabalhista terá o juiz que decidir se teria havido vício na relação administrativa a descaracterizá-la.
4. No caso, não há qualquer direito disciplinado pela legislação trabalhista a justificar a sua permanência na Justiça do Trabalho.
5. Precedentes: Reclamação 4.904, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, Plenário, DJe 17.10.2008 e Reclamações 4.489-AgR, 4.054 e 4.012, Plenário, DJe 21.11.2008, todos Redatora para o acórdão a Ministra Cármen Lúcia.
6. Agravo regimental a que se dá provimento e reclamação julgada procedente.
(STF, Tribunal Pleno, Rcl 8110 AgR/PI, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Carmen Lúcia, j. 21/10/2009, p. DJe 12/02/2010).
Em outro julgado, o STF reiterou esse mesmo entendimento, a fixar que a eventual irregularidade na contratação de servidores ou empregados é fator que gera nulidade, porém, sem descaracterizar a natureza do vínculo jurídico-administrativo. Nesse prisma, vejamos a ementa dos seguintes julgados (grifos meus):
AGRAVO REGIMENTAL. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL. CARGO EM COMISSÃO. REGIME JURÍDICO-ADMINISTRATIVO. AUSÊNCIA DE ARGUMENTOS SUSCEPTÍVEIS DE MODIFICAR A DECISÃO AGRAVADA. AGRAVO REGIMENTAL NÃO PROVIDO.
1. É competente a Justiça comum para processar e julgar ações relativas a conflitos relativos a vínculo jurídico-administrativo entre o Poder Público e seu agente.
2. Irregularidade na contratação de servidores pode dar ensejo à nulidade do contrato, com todas as consequências daí decorrentes, mas não altera a natureza jurídica de cunho administrativo que se estabelece originalmente.
3. Agravo regimental não provido.
(STF, Tribunal Pleno, Rcl 8197 Ag/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 17/02/2010, p. DJe 16/04/2010).
AGRAVO REGIMENTAL – RECLAMAÇÃO – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – DISSÍDIO ENTRE SERVIDOR E PODER PÚBLICO – ADI Nº 3.395/DF-MC
1. Compete à Justiça comum pronunciar-se sobre a existência, a validade e a eficácia das relações entre servidores e o poder público, fundadas em vínculo jurídico-administrativo. É irrelevante a argumentação de que o contrato é temporário ou precário, ainda que extrapolado seu prazo inicial, bem assim se o liame decorre de ocupação de cargo comissionado ou função gratificada.
2. Não descaracteriza a competência da Justiça comum, em tais dissídios, o fato de se requerer verbas rescisórias, FGTS e outros encargos de natureza símile, dada a prevalência da questão de fundo, que diz respeito à própria natureza da relação jurídico-administrativa, visto que desvirtuada ou submetida a vícios de origem, como fraude, simulação ou ausência de concurso público. Nesse último caso, ultrapassa o limite da competência do STF a investigação sobre o conteúdo dessa causa de pedir específica.
3. O perfil constitucional da reclamação (art. 102, inciso I, alínea “l”, CF/1988) é o que confere a ela a função de preservar a competência e garantir a autoridade das decisões deste Tribunal. Em torno desses dois conceitos, a jurisprudência da Corte estabeleceu parâmetros para a utilização dessa figura jurídica, dentre os quais se destaca a aderência estrita do objeto do ato reclamado ao conteúdo das decisões paradigmáticas do STF.
4. A reclamação constitucional não é a via processual adequada para discutir a validade de cláusula de eleição de foro em contrato temporário de excepcional interesse público, a qual deve ser decidida nas instâncias ordinárias.
5. Agravo regimental não provido.
(STF, Tribunal Pleno, Rcl 4626 Ag/ES, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 24/02/2011, p. DJe 01/06/2011).
Como a jurisprudência do STF manifesta entendimento contrário ao que ficou decidido pelo TRT11, o ministro relator julgou procedente a reclamação e, assim, restabeleceu a autoridade do decidido na ADI 3395 MC/DF.
3.1 - Rcl 15759/PI
Na Rcl 15759/PI, o Município de Campo Maior insurgiu-se contra decisão do juízo da 1º Vara do Trabalho de Teresina/PI, que, ao julgar parcialmente procedente uma reclamação trabalhista, determinou o bloqueio, via Bacenjud, de valores da Administração municipal para o seu cumprimento. Na sentença, o juiz reconheceu que houve nulidade contratual no vínculo mantido pelo município reclamante com o ex-empregado contratado para necessidades temporárias da Administração Pública. Por isso, condenou o Município a pagar ao trabalhador parcelas decorrentes de direitos previstos na CLT.
Manifestando seu inconformismo com a decisão do juízo monocrático, o Município de Campo Maior ajuizou a reclamação constitucional com base na decisão do STF tomada na ADI 3395. Aqui, mais uma vez, logrou ser bem sucedido.
Com efeito, o ministro relator entendeu que a sentença proferida pelo juízo da 1º Vara do Trabalho de Teresina/PI afrontou a autoridade da tese jurídica fixada no referendo à liminar da ADI 3395 MC/DF. Segundo consignou em sua decisão, o Município reclamante instituiu, por meio da Lei 731/68, o estatuto dos servidores públicos locais. Nesse diploma, consta, em seu art. 2º, ser "de natureza estatutária o regime jurídico dos funcionários em face da administração". Pois o juízo do trabalho entendeu que, não obstante o disposto na lei local, o fato de terem sido requeridas verbas constantes do regime celetista afastaria a competência da Justiça Comum para o julgamento da causa, deslocando-a, ato contínuo, para a Justiça Especializada. Todavia, ao assim decidir, o juiz fê-lo em desacordo com a jurisprudência do STF.
A esse respeito, colaciono o acórdão paradigma na matéria, firmado quando do julgamento da Rcl 6959 AgR/PA (grifo meu):
EMENTA AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO – ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – DISSÍDIO ENTRE SERVIDOR E O PODER PÚBLICO – ADI Nº 3.395/DF-MC – Cabimento da reclamação – Incompetência da Justiça do Trabalho.
1. A reclamação é meio hábil para conservar a autoridade do Supremo Tribunal Federal e a eficácia de suas decisões. Não se reveste de caráter primário ou se transforma em sucedâneo recursal quando é utilizada para confrontar decisões de juízos e tribunais que afrontam o conteúdo do acórdão do STF na ADI nº 3.395/DF-MC.
2. Compete à Justiça comum pronunciar-se sobre a existência, a validade e a eficácia das relações entre servidores e o poder público fundadas em vínculo jurídico-administrativo. O problema da publicação da lei local que institui o regime jurídico único dos servidores públicos ultrapassa os limites objetivos da espécie sob exame.
3. Não descaracteriza a competência da Justiça comum, em tais dissídios, o fato de se requerer verbas rescisórias, FGTS e outros encargos de natureza símile, dada a prevalência da questão de fundo, que diz respeito à própria natureza da relação jurídico-administrativa, posto que desvirtuada ou submetida a vícios de origem, como fraude, simulação ou ausência de concurso público. Nesse último caso, ultrapassa o limite da competência do STF a investigação sobre o conteúdo dessa causa de pedir específica.
4. A circunstância de se tratar de relação jurídica nascida de lei local, anterior ou posterior à Constituição de 1988, não tem efeito sobre a cognição da causa pela Justiça comum.
5. Alegação de vício na publicidade da lei local não é matéria de exame na via da reclamação e, ainda que assim o fosse, caberia à Justiça comum dizer sobre a ocorrência de defeito no título jurídico que fez originar a relação administrativa entre o servidor e o poder público.
6. Agravo regimental provido para declarar a competência da Justiça comum.
(STF, Tribunal Pleno, Rcl 6959 AgR/PA, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Dias Toffoli, j. 18/11/2010, p. DJe 30/08/2011).
Esse precedente tem sido iterativamente aplicado na Suprema Corte brasileira. Colaciono um exemplo de decisão recente nesse sentido:
AGRAVO REGIMENTAL NA RECLAMAÇÃO. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DISSÍDIO ENTRE SERVIDOR E O PODER PÚBLICO. ADI Nº 3.395/DF-MC. CABIMENTO DA RECLAMAÇÃO. INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA DO TRABALHO.
1. Por atribuição constitucional, presta-se a reclamação para preservar a competência do STF e garantir a autoridade das decisões deste Tribunal (art. 102, inciso I, alínea l, CF/88), bem como para resguardar a correta aplicação das súmulas vinculantes (art. 103-A, § 3º, CF/88). Não se reveste de caráter primário ou se transforma em sucedâneo recursal quando é utilizada para confrontar decisões de juízos e tribunais que afrontam o conteúdo do acórdão do STF na ADI nº 3.395/DF-MC.
2. Compete à Justiça comum pronunciar-se sobre a existência, a validade e a eficácia das relações entre servidores e o poder público fundadas em vínculo jurídico-administrativo. O problema relativo à publicação da lei local que institui o regime jurídico único dos servidores públicos ultrapassa os limites objetivos da espécie sob exame.
3. Não descaracteriza a competência da Justiça comum, em tais dissídios, o fato de se requererem verbas rescisórias, FGTS e outros encargos de natureza símile, dada a prevalência da questão de fundo, que diz respeito à própria natureza da relação jurídico-administrativa, ainda que desvirtuada ou submetida a vícios de origem.
4. Agravo regimental não provido.
(STF, Tribunal Pleno, Rcl 7857 AgR/CE, Rel. Min. Dias Toffoli, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/02/2013, p. DJe 01/03/2013).
Desse modo, acorde com a jurisprudência predominante do STF, acima reproduzida, o relator julgou procedente a reclamação ajuizada pelo ente municipal, para fixar a competência da Justiça Comum para o julgamento da causa e, assim, restabelecer a autoridade da decisão tomada na ADI 3395 MC/DF.
4 – Conclusão
Ao longo deste artigo, procurei analisar o debate em torno da fixação do juízo competente em causas que envolvam o Poder Público e seus servidores estatutários. Apontei, assim, que a discussão foi impulsionada pelo advento da Emenda Constitucional nº 45/04, que, após dar nova redação ao inc. I do art. 114 da Constituição, ampliou decisivamente a competência da Justiça do Trabalho.
Nesse contexto, considerando que à Justiça Especializada Trabalhista passou competir o processo e julgamento das "ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios", sustentou-se na doutrina a possibilidade de o juízo do trabalho vir a conhecer das causas instauradas entre a Administração e seus servidores. Tal pensamento ganhou rápida acolhida na jurisprudência, motivo pelo qual foi ajuizada a ADI 3395 na Suprema Corte brasileira, a fim de solver a controvérsia crescente.
Pois bem. No referendo à liminar concedida por ocasião do julgamento da medida cautelar da ADI 3395/DF, o Plenário do Supremo Tribunal Federal afastou toda e qualquer interpretação do art. 114, I, da CF/88, na redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, que venha a inserir na competência da Justiça do Trabalho a apreciação de causas instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo.
Fundado nesse precedente é que foram ajuizadas na Corte as reclamações constitucionais 16100/AM e 15759/PI. Em ambas, a relação de fundo envolvia o pleito de direitos previstos na CLT a ex-empregados contratados sob o pretexto de atendimento a necessidades temporárias da Administração Pública.
Ao conhecer das reclamações, o ministro relator, Teori Zavascki, julgou-as procedentes. Argumentou que as contratações temporárias para suprir serviços públicos situam-se no âmbito da relação jurídico-administrativa. Logo, à luz do precedente assentado na ADI 3395 MC/DF, a competência para julgar as duas ações trabalhistas não é da Justiça do Trabalho, e sim da Justiça Comum, ainda que no pedido os obreiros tenham requerido verbas constantes do regime celetista.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3395 MC/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 05/04/2006, p. DJ 10/11/2006. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 8110 AgR/PI, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Carmen Lúcia, j. 21/10/2009, p. DJe 12/02/2010. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 4626 Ag/ES, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 24/02/2011, p. DJe 01/06/2011. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 6959 AgR/PA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Dias Toffoli, j. 18/11/2010, p. DJe 30/08/2011. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 7857 AgR/CE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 06/02/2013, p. DJe 01/03/2013. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 16100/AM, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 02/08/2013, p. DJe 09/08/2013. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 15759/PI, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 02/08/2013, p. DJe 09/08/2013. Disponível em: www.stf.jus.br. Acesso em: 28 de nov. 2013.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em: 28 de ago. 2013.