3 .A FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES GRAVES CONTRA OS DIREITOS HUMANOS
O elevado número de emendas constitucionais propostas até o momento revelam uma ânsia em modificar e reformar a Constituição Federal, na tentativa dos partidos políticos e governos implementarem suas ideias à Constituição, ao invés de se adequarem à mesma. Insta ressaltar que cada governo possui seu próprio programa, seus ideais, buscando modificar a Constituição para atendê-los, mesmo que isso resulte em uma violação do referido diploma legal.
É exatamente nesse contexto que a Emenda Constitucional nº 45/04 fora proposta e ganhou corpo, resultando nas alterações já conhecidas hodiernamente. Buscando entender um dos dispositivos trazidos pela referida Emenda, o incidente de deslocamento de competência faz-se necessário analisar sua evolução, conforme será vislumbrado adiante.
3.1 .Histórico da Emenda Constitucional nº 45/04
A previsão de julgamento de crimes em geral pela Justiça Federal, conforme previsto em tratados internacionais, remete-se à Constituição Federal de 1967. Convém relembrar que o regime militar havia recriado a Justiça Federal através do Ato Institucional nº 2, promulgado em 1965. Nesta esteira, o referido regime ditatorial apresentou um projeto para uma nova Constituição, através de um processo constituinte contestável, que resultou na aprovação da Carta Maior de 1967, cuja característica marcante era o controle sobre os atos do governo, atrasando as decisões judiciais em que ainda seriam aplicáveis as normas da Constituição de 1946.[27]
A principal intenção das forças políticas militares era centralizar o poder nas mãos do plano federal, exercendo maior controle e opressão aos movimentos contrários ao regime. Deste modo, o artigo 119 da Constituição de 1967 previa que:
Art. 119 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar, em primeira instância:
[...]
V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional e os cometidos a bordo de navios, aeronaves, ressalvada, a competência da Justiça Militar.[28]
Era notório que o regime ditatorial buscava um controle excessivo, no frenesi desenfreado de controlar e oprimir todos aqueles que se opunham ao governo em comento.
Passado uma década, veio a Emenda Constitucional nº 7, data de 13 de abril de 1977, a qual incluía no artigo 125 o seguinte texto: “quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente”, conferindo à Justiça Federal a competência das hipóteses que posteriormente seriam previstas na Carta Magna de 1988 antes da Emenda nº 45/04.
Já no ano e 1996, fora editado o primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos, sendo então, encaminhado ao Ministro da Justiça da época, Nelson Jobim, a primeira proposta de federalização os crimes contra os direitos humanos, através do Projeto de Emenda Constitucional nº 368-A de 13 de maio do corrente ano, que assim dispunha:
Art. 1º – São acrescentados dois incisos no art. 109 da Constituição, de números XII e XIII, com a seguinte redação:
Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:
XII – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob a tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos;
XIII – as causas civis ou criminais nas quais órgão federal de proteção dos direitos humanos ou o procurador-geral da República manifeste interesse.[29]
Neste contexto, tal proposta fora apensada à Proposta e Emenda Constitucional nº 96/92 que originou a Reforma do Judiciário, anos após. Com muitas discussões acaloradas, no ano de 2000 modificou-se o texto, o qual fora aprovado, ficando com a seguinte redação acerca da federalização dos crimes contra os direitos humanos:
Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:
V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;
§ 5º - nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento e competência para a Justiça Federal.[30]
Tal texto fora enviado ao Senado Federal, sendo aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça, em março de 2002, com o seguinte acréscimo no rol de competências da Justiça Federal (inciso V-B):
Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:
V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;
V-B – os crimes praticados em detrimento de bens ou interesses sob tutela de órgão federal de proteção dos direitos humanos, nos termos da lei.
§ 5º - nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento e competência para a Justiça Federal.[31]
Neste diapasão, fora aprovada a última redação pelo Senado, em primeiro turno, na data de 7 de julho de 2004, resultando na aprovação definitiva em plenário no dia 17 de novembro de 2004, sendo promulgada a Emenda Constitucional nº 45/04 na data de 8 de dezembro de 2004 e publicada em 31 de dezembro do mesmo ano, com o seguinte texto:
Art. 109 – Aos Juízes Federais compete processar e julgar:
V – os crimes previstos em tratado ou convenção internacional, quando iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente;
V-A – as causas relativas a direitos humanos a que se refere o parágrafo quinto deste artigo;
[...]
§ 5º - nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o Procurador-Geral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, o incidente de deslocamento e competência para a Justiça Federal.[32]
Outrossim, cumpre anotar que a federalização dos crimes contra os direitos humanos não é única medida que transfere à seara federal uma competência que não lhe é originária. Sem adentrar em maiores discussões, fugindo do escopo principal deste estudo, importante apenas mencionar a Lei nº 10.446/02 que dispõe sobre as infrações penais de repercussão interestadual ou internacional, em atendimento ao artigo 144 da Carta Magna, atribuindo à Polícia Federal a competência para proceder com a investigação, independente da responsabilidade dos órgãos de segurança do Estado, nos termos seguintes:
Art. 1º - Na forma do inciso I do § 1º do art. 144 da Constituição, quando houver repercussão interestadual ou internacional eu exija repressão uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça, sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis dos estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações penais:
[...]
III – relativas à violação a direitos humanos, que a República Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados internacionais de que seja parte; [...] [33]
O incidente de deslocamento de competência representa apenas uma das medidas de transferência da competência estadual para a federal. Destarte, suas peculiaridades, conceitos e requisitos o diferenciam dos demais instrumentos, conforme será aduzido a seguir.
3.2.Conceito e finalidade
A federalização dos crimes graves contra os direitos humanos é também conhecida por “incidente de deslocamento de competência”, através da sigla IDC, consistindo na possibilidade de deslocar a competência da Justiça comum para a Federal, desde que configurado a grave violação aos direitos humanos.
Tal incidente fora introduzido no ordenamento jurídico pátrio pela Emenda Constitucional nº. 45/04, estipulando que ao Procurador-Geral da República será cabível suscitar, perante o Superior Tribunal de Justiça, em qualquer fase do inquérito ou do processo, nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o incidente de deslocamento de competência da Justiça estadual para a Justiça Federal, com a finalidade de assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil seja parte.
Em outras palavras, o Procurador-Geral da República poderá arguir perante o Superior Tribunal de Justiça, que determinado crime seja investigado, processado ou julgado pela Justiça Federal, desde que comprovado a grave violação aos direitos humanos. O polêmico conceito acerca do que seriam as “graves violações aos direitos humanos” será abordado em momento oportuno.
Este incidente de deslocamento encontra-se pautado no princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da Constituição Federal), corroborando com os princípios da prevalência dos direitos humanos, do repúdio ao terrorismo e ao racismo e da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Tais princípios encontram fundamento no artigo 4º, incisos II, VIII e IX da Constituição brasileira.
Conforme ensina Pedro Lenza (2011), os direitos da pessoa humana foram erigidos a princípios considerados sensíveis, o que enseja a intervenção federal nos estados que os estejam violando.[34] Nesta esteira, infere-se que a finalidade primordial do incidente de deslocamento de competência é garantir a preservação destes direitos considerados de suma importância.
O deslocamento de competência é fruto de uma crescente internacionalização dos direitos humanos, conforme mencionado alhures, ampliando o rol de tratados internacionais aderidos pelo Brasil, corroborando com a constante arguição de ineficácia das justiças estaduais em relação à efetiva proteção dos direitos humanos.
Nos dizeres de Vladimir Aras pode-se conceituar o incidente de deslocamento de competência como:
Um instrumento político-jurídico, de natureza processual penal objetiva, destinado a assegurar a efetividade da prestação jurisdicional em casos de crimes contra os direitos humanos; uma garantia individual, tendo aplicação imediata através do art. 5º, § 1º da Constituição da República; mecanismo de sucessão ou substituição da atividade da Justiça dos Estados ou do Distrito Federal pela Justiça da União, dentro do esquema de federalismo cooperativo, nos casos de violação a direitos humanos; um instrumento político destinado a resguardar a responsabilidade do Estado soberano perante a comunidade internacional, em função de tratados de proteção à pessoa humana firmados pela União; incidente processual que tem em mira a redução da impunidade e a concreta proteção dos direitos humanos. [35]
Ademais, outra finalidade da federalização dos crimes contra os direitos humanos é a de assegurar o cumprimento das obrigações assumidas pelo Brasil em tratados internacionais. Embora a União se comprometa externamente com a repressão às violações aos direitos humanos, internamente a responsabilidade desde a apuração até a punição dos referidos crimes é dos estados da federação. Neste diapasão, a criação do incidente de deslocamento de competência possui a finalidade de co-responsabilizar a União face à impunidade e à morosidade comumente vistas hodiernamente.
Sobre a responsabilidade da União, ensina Flávia Piovesan:
No plano internacional, a responsabilidade do Estado é una e indivisível relativamente às obrigações internacionais em matéria de direitos humanos, que, no livre e pleno exercício de sua soberania, se comprometeu a cumprir. Isto é, a responsabilidade recai exclusivamente na pessoa da União, não cabendo-lhe afastá-la sob o argumento de separação dos poderes ou da cláusula federativa.[36]
Ainda, corroborando com a importância da federalização para responsabilizar a União em face das afrontas cometidas aos direitos humanos dentro dos estados da federação, leciona Pedro Lenza:
Outrossim, nos termos do art. 21, I, a União é que se responsabiliza, em nome da República Federativa do Brasil, pelas regras e preceitos fixados nos tratados internacionais. Assim, na hipótese de descumprimento e afronta a direitos humanos no território brasileiro, a única e exclusiva responsável, no plano internacional, será a União, não podendo invocar a cláusula federativa, nem mesmo “lavar as mãos” dizendo ser problema do estado ou do município. Isso não é aceito no âmbito internacional.[37]
Nesta esteira, Flávia Piovesan novamente pontua:
A justificativa é simples: considerando que estas hipóteses estão tuteladas em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, é a União que tem a responsabilidade internacional em caso de sua violação. Vale dizer, é sob a pessoa da União que recairá a responsabilidade internacional decorrente da violação de dispositivos internacionais que se comprometeu juridicamente a cumprir.[38]
Portanto, com o processo de internacionalização dos direitos humanos, foram criados parâmetros de proteção a estes direitos, nos quais a União assumiu as obrigações por vontade própria, respeitando sua soberania. A federalização ora estudada, leva tais parâmetros internacionais a cada estado da federação, primando pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Analisado o conceito e as finalidades básicas da federalização dos crimes contra os direitos humanos, serão expostos adiante os seus requisitos, tendo em vista o art. 109 da Constituição Federal, bem como seus incisos e parágrafos relativos ao tema.
3.3 Pressupostos e requisitos para a federalização
Pelo que se extraí do artigo 109, § 5º da Constituição Federal, o Procurador-Geral da República poderá suscitar o incidente de deslocamento de competência, entrementes, não caberá ao mesmo decidir acerca do cabimento ou não da medida. Ao Procurador-Geral caberá tão somente a análise dos pressupostos constitucionais que ensejam a propositura do deslocamento de competência.
Neste diapasão, serão analisados adiante os requisitos e pressupostos constitucionais que levam à propositura do incidente de deslocamento de competência.
3.3.1 Existência de grave violação aos direitos humanos
De plano, importante mencionar que não se trata de qualquer violação aos direitos humanos, mas sim, de grave violação. Nesta seara, surge uma acalorada discussão doutrinária do que seria tal violação grave, ou ainda, qual o conteúdo exato da expressão “direitos humanos”, uma vez que o legislador transferiu a responsabilidade de conceituar tais temas para a doutrina e jurisprudência. O presente estudo não busca esgotar tal debate, procurando apenas descrever um cenário tendo em vista o conceito de direitos humanos apresentado no início deste trabalho.
Acerca da gravidade das lesões ou violações, em que pese o silêncio do legislador, é grande a contribuição da doutrina e do direito comparado para que se configure tais violações. Deste modo, o Direito Internacional Público possui o chamado “núcleo duro” de direitos que devem ser preservados pela humanidade. Como mencionado alhures, seriam standarts mínimos que constituem a definição de crimes contra a humanidade, ressaltando dentre eles, a escravidão, a execução sumária, as detenções arbitrárias, as discriminações de toda espécie, a tortura, a violência sexual ou contra a mulher e a violência contra aqueles indivíduos considerados mais frágeis, como crianças e idosos. [39]
Ademais, no ordenamento jurídico brasileiro, a Comissão de Procuradores do Estado argüiu que os crimes de tortura, homicídio por agentes funcionais ou estatais, os crimes contra as comunidades e o patrimônio indígena, os homicídios motivados por preconceito ou de natureza fundiária e a escravidão constituiriam um rol adequado de graves violações aos direitos humanos.
Ressalta-se que o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Incidente de Deslocamento de Competência IDC-1 julgou adequada a não definição de um rol taxativo do que seriam graves violações, permitindo a flexibilização da norma diante do caso concreto.
Dada a amplitude e a magnitude da expressão “direitos humanos”, é verossímil que o constituinte derivado tenha optado por não definir um rol dos crimes que passaram para a competência da Justiça Federal, sob pena de restringir os casos de incidência do dispositivo (CF, art. 109, § 5º), afastando-o de sua finalidade precípua, que é assegurar o cumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais firmados pelo Brasil sobre a matéria, examinando-se cada situação de fato, suas circunstancias e peculiaridades detidamente, motivo pelo qual não há de se falar em norma de eficácia limitada. Ademais não é próprio de texto constitucional tais definições.[40]
Pelas palavras do relator, um rol exemplificativo dos crimes considerados como graves violações poderia criar uma banalização do instituto da federalização, fugindo do princípio básico do texto constitucional. Assim, cada caso deve ser analisado sob o prisma dos princípios constitucionais da razoabilidade e da proporcionalidade.O Superior Tribunal de Justiça ao julgar o “caso Manoel Mattos” [41] (IDC-2) decidiu que é de responsabilidade do referido órgão examinar o caso concreto, observando a razoabilidade e a proporcionalidade da medida, dando efetividade ao deslocamento de competência, superando a subjetividade legislativa do mesmo.[42]
Importante observar que a concepção de direitos humanos ultrapassa a institucionalização da política estatal, impondo certa dimensão jusnaturalista, uma vez que são direitos inerentes à personalidade humana independente de reconhecimento do Estado para que sejam validados.
Nesta toada, para o Ministério da Justiça, a federalização seria um incremento no papel da União diante das graves violações aos direitos humanos, garantindo-lhe formas de resguardar sua imagem e evitar condenações nas instâncias internacionais. Tal posição pode ser encontrada na Exposição de Motivos MJ 204, datada de 15 de dezembro de 2004, que coloca a Emenda Constitucional nº 45/04 como um “pacto de Estado” em favor de um judiciário mais célere e republicano:
Fruto da plena integração do Brasil nos Sistemas Internacionais de Proteção aos Direitos Humanos, avolumam-se denúncias contra o nosso País em foros competentes para a supervisão dos compromissos contraídos. Merece destaque, a este propósito, as representações oferecidas no âmbito da Organização dos Estados Americanos. Como decorrência deste Pacto, a primeira tarefa que será implementada é a identificação de todos esses casos em um único banco de dados. Seguir-se-á a estruturação, no âmbito do Poder Judiciário, de sistema de acompanhamento dos inquéritos e ações judiciais relacionados com os casos enfocados, com vistas ao recebimento das informações necessárias à manifestação do Brasil perante as instancias Internacionais. O objetivo de todas essas iniciativas é resolver rapidamente as controvérsias, inclusive com a busca de soluções amistosas, quando for o caso.[43]
Nesta seara se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do primeiro incidente de deslocamento proposto:
É imprescindível, todavia, verificar o real significado da expressão “grave violação de direitos humanos”, tendo em vista que todo homicídio doloso, independente da condição pessoal da vítima e/ou repercussão do fato no cenário nacional ou internacional, representa grave violação ao maior e mais importante de todos os direitos do ser humano, que é o direito à vida.[44]
Assim, o conceito de “grave violação” guarda enorme intimidade com o caso concreto, o qual será analisado sob a égide da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de impedir a banalização do incidente de deslocamento de competência e o esvaziamento da Justiça comum, estadual. Pode-se arguir que a definição de graves violações aos direitos humanos será uma tarefa imperativa, mas não subjetiva, diante dos inúmeros parâmetros e normas que possuem ligações com o sistema internacional de proteção destes direitos. Há de ser um crime que viole um bem de proteção jurídica elevada no sistema nacional e internacional, em circunstâncias excepcionais ou que representem práticas sistemáticas de violações a grupos vulneráveis. [45]
Para o doutrinador Eugênio Pacelli de Oliveira (2005), a medição de gravidade da violação aos direitos humanos não está na violência do ato em si, mas “ao grau de repercussão a conduta, em relação à efetiva possibilidade de intervenção da Administração e das autoridades federais para a repressão e prevenção de tais delitos”.[46]
Ao definir as graves violações aos direitos humanos, deve-se buscar um elemento diferencial dos outros crimes, das outras violações a bens jurídicos tutelados. Deve haver um ponto de inflexão que demande a excepcional necessidade de alteração de competência, motivo pelo qual, o texto constitucional requer que a grave violação possua características adicionais capazes de atrair o interesse federal para o caso. [47]
Não obstante, Mário Luiz Bonsaglia também consagra uma interpretação mais ampla do conceito de direitos humanos, afirmando que:
[...] quando se fala em “crimes contra os direitos humanos” naturalmente está a se considerar aquelas infrações mais graves, que atentam contra direitos humanos não apenas garantidos na Constituição e leis federais, mas também, por sua especial relevância, consagrados em instrumentos internacionais, como convenções e tratados, a cuja observância o Brasil encontra-se vinculado. [48]
Chega-se a um ponto de convergência entre este primeiro requisito e um segundo, o qual será analisado adiante: a garantia de que o Brasil cumpra as obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos, dos quais seja signatário. Conclui-se que a expressão “grave violação” deve ser analisada em cada caso concreto importando ainda, a responsabilidade do Estado brasileiro diante de tratados internacionais assumidos.
3.3.2 Assegurar o cumprimento de obrigações internacionais de direitos humanos.
A repercussão internacional da já comentada “grave violação” poderá gerar uma responsabilização internacional do Brasil pelo descumprimento de obrigações derivadas de tratados internacionais. Ressalta-se que para a concretização do deslocamento, os requisitos aqui mencionados devem coexistir. Ou seja, é pacífico o entendimento de que será hipótese de federalização apenas os descumprimentos de obrigações internacionais que ensejarem a responsabilização do Brasil nas instancias jurisdicionais internacionais de proteção aos direitos humanos.
A Emenda Constitucional nº 45/04 também trouxe ao ordenamento jurídico a “constitucionalização dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, desde que aprovados pelo quorum qualificado das emendas constitucionais” [49] conforme o artigo 5º, § 3º da Constituição Federal e ainda, a submissão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional, consoante o artigo 5º, § 4º da Carta Maior.
Ademais, o Brasil é signatário de uma série de tratados e convenções internacionais nos quais se compromete a apurar e punir os delitos considerados graves contra os direitos humanos, responsabilizando-se perante cortes e organismos internacionais.
Flávia Piovesan ensina que há vários casos contra o Brasil pendentes de apreciação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, onde alguns apontam, inclusive, para a responsabilidade direta da União em face da violação dos direitos humanos.[50]
A violação mencionada deve estar arrolada entre as quais a União tem o dever de reprimir em conseqüência da assinatura de algum tratado internacional. A partir do momento em que o Brasil passa a se submeter ao Tribunal Penal Internacional e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, cria-se um rol de possibilidades de responsabilização. Nesta esteira, o segundo requisito para o deslocamento de competência reside justamente nesta possibilidade de responsabilização internacional do Brasil perante os tratados internacionais dos quais seja signatário. O Procurador-Geral da República assim se manifestou durante o julgamento do IDC nº 2:
No que diz com a possibilidade de responsabilização internacional decorrente do descumprimento de obrigações assumidas em tratados internacionais, é de se ressaltar que a República brasileira, signatária dos principais atos internacionais de proteção de direitos humanos, responsabiliza-se pelo efetivo cumprimento de tais obrigações, submetendo-se tanto ao sistema global, quanto ao sistema interamericano de direitos humanos, especialmente diante do reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos.[51]
Novamente, partindo da análise do caso concreto, é necessário avaliar se os fatos narrados configuram o descumprimento de obrigação internacional, indicando aquela que fora desrespeitada.
Ressalta-se, por derradeiro, que não se trata de mera presunção de risco da responsabilidade internacional, mas sim de descumprimento explícito de obrigação anteriormente assumida pelo Estado brasileiro.[52]
Por oportuno, faz-se necessário mencionar o primeiro caso de condenação do Brasil perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, através do caso “Ximenes Lopes”. Damião Ximenes Lopes faleceu no ano de 1999, com 30 anos de idade. Damião, que possuía problemas mentais diagnosticados, foi sujeito à contenção física, amarrado com as mãos para trás e a necrópsia revelou que seu corpo sofreu diversos golpes, apresentando escoriações localizadas na região nasal, ombro direito, parte anterior dos joelhos e do pé esquerdo, equimoses localizadas na região do olho esquerdo, ombro homolateral e punho. No dia de sua morte, o médico da Casa de Repouso, sem fazer exames físicos em Damião, receitou-lhe alguns remédios e, em seguida, se retirou do hospital, que ficou sem nenhum médico. Duas horas depois, Damião morreu.[53]
Assim, presentes os dois primeiros requisitos contidos na letra da lei, mesmo que de caráter subjetivo, faz-se necessário a existência de um terceiro pressuposto, a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas à grave violação ocorrida.
3.3.3 Inércia ou incapacidade das autoridades responsáveis de responder ao caso específico
A omissão ou demora injustificada na resolução do crime, na sua apuração ou no seu julgamento, é um requisito implícito ao parágrafo 5º do artigo 109 da Constituição Federal, tendo em vista que não haveria justificativa em deslocar a competência caso o órgão estadual responsável cumprisse adequadamente com seu dever de persecução penal e consequente julgamento. Tal requisito elucida o caráter subsidiário do deslocamento, no qual, a federalização não pode ser entendida como “prima ratio”, ou seja, como primeira medida a ser tomada no caso de grave violação a direitos humanos.
O deslocamento de competência é medida excepcional, de caráter subsidiário tal como as demais medidas constitucionais que dispõem sobre conflitos federativos, pois se não as fosse, o legislador teria atribuído a competência diretamente à Justiça Federal. Sendo assim, a competência do Estado federado resta reafirmada, transferindo para o âmbito federal apenas os casos em que o poder estadual não possuir meios efetivos para reprimir e punir a grave violação aos direitos humanos.[54]
Outrossim, analisando o bojo constitucional voltado à autonomia dos entes federados, a transferência dessa autonomia pela federalização só estará justificada de forma excepcional para preservar um bem maior, nos estritos limites da legalidade.
Importante mencionar que a necessidade de esgotamento dos recursos internos é uma regra geral para que se chegue às cortes internacionais, e desse modo, não poderia ser diferente com o deslocamento de competência ora estudado.
Vladimir Aras leciona sobre este requisito:
A omissão ou demora injustificada na elucidação do crime é pressuposto implícito à norma em comento, porquanto não haveria razão para o deslocamento se os órgãos estaduais estivessem cumprindo adequadamente seu dever na persecução penal. [55]
O posicionamento acima encontra-se pacificado pelo Superior Tribunal de Justiça, através dos dois julgamentos de incidentes de deslocamento de competência propostos até o presente momento. Faz-se necessário, portanto, a inércia das autoridades responsáveis ou a incapacidade das mesmas diante do caso concreto. É o que fora apresentado pelo relator do IDC-1, caso Dorothy Stang [56]:
Na espécie, as autoridades estaduais encontram-se empenhadas na apuração dos fatos que resultaram na morte da missionária norte-americana Dorothy Stang, com o objetivo de punir os responsáveis, refletindo a intenção de o Estado do Pará dar resposta eficiente à violação do maior e mais importante dos direitos humanos, o que afasta a necessidade de deslocamento da competência originária para a Justiça Federal, de forma subsidiária, sob pena, inclusive, de dificultar o andamento do processo criminal e atrasar o seu desfecho, utilizando-se o instrumento criado pela aludida norma em desfavor de seu fim, que é combater a impunidade dos crimes praticados com grave violação de direitos humanos.[57]
Na mesma toada, no julgamento do IDC-2 fora reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça o apelo feito pelas autoridades locais no sentido de serem incapazes de promover a eficiente apuração dos fatos tendo em vista a magnitude da infiltração do crime organizado nas instâncias oficiais.
É notória a incapacidade das instâncias e autoridades locais em oferecer respostas efetivas, reconhecida a limitação e precariedade dos meios por elas próprias. Há quase um pronunciamento uníssono em favor do deslocamento da competência para a Justiça Federal, dentre eles, com especial relevo: o Ministro da Justiça; o Governador do Estado da Paraíba; o Governador de Pernambuco; a Secretaria Executiva de Justiça de Direitos Humanos; a Ordem dos Advogados do Brasil; a Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado da Paraíba. As circunstâncias apontam para a necessidade de ações estatais firmes e eficientes, as quais, por muito tempo, as autoridades locais não foram capazes de adotar, até porque a zona limítrofe potencializa as dificuldades de coordenação entre os órgãos dos dois Estados. Mostra-se, portanto, oportuno e conveniente a imediata entrega das investigações e do processamento da ação penal em tela aos órgãos federais.[58]
Assim, a proteção dos direitos básicos não se esgota e nem poderia se esgotar apenas com a atuação dos estados-membros. A intervenção federal no âmbito estadual afigura-se como um reflexo, uma manifestação ou particularização da própria noção de soberania, tendo em mente que o Estado também é expressão de poder interno, possuindo supremacia no âmbito internacional. Por estes motivos, faz-se necessário que a intervenção em comento seja utilizada apenas em última análise, quando não restarem mais alternativas ao estado-membro, ou o mesmo se mostrar ineficaz na persecução que se fizer necessária.
Fica caracterizado, por derradeiro, que o incidente de deslocamento de competência é medida excepcional de caráter subsidiário, após a comprovação da incapacidade das autoridades locais em combater a grave violência aos direitos humanos.