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Do exercicio do controle de constitucionalidade pelas cortes de contas

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4. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE PELO TRIBUNAL DE CONTAS

4.1. Do Exercício do Controle Externo pelos Tribunais de Contas

A origem dos orçamentos públicos está relacionada ao desenvolvimento da democracia, opondo-se ao Estado antigo, em que o monarca considerava-se soberano e detentor do patrimônio originário da coletividade. A natureza orçamentária, pois, consiste em uma autorização do povo para que seus representantes eleitos possam, em seu nome, despender os recursos públicos, eis que os cidadãos são os verdadeiros proprietários do dinheiro público. Mas não basta tão somente autorizar os gastos, é necessário o acompanhamento desses dispêndios para fins de aferir se a aplicação dos recursos está condizente com o que foi autorizado, bem como se está em consonância com a moralidade administrativa, tudo para se alcançar uma gestão eficiente dos recursos públicos. Para tanto, faz-se necessário que exista uma instituição independente, com a atribuição de fiscalizar a atividade financeira do Estado, aferindo como os recursos da coletividade estão sendo aplicados. Chegamos, então, ao que chamamos de controle externo, que é a fiscalização da gestão do dinheiro público por um ente externo àquele que realiza o dispêndio. É sobre o manejo e aplicação dos recursos e, em ultima instância, sobre a eficiência na gestão publica, que temos o objeto do controle externo, função que no Brasil é de titularidade do Legislativo, exercida com o auxílio do Tribunal de Contas, nos termos do art. 71 da Constituição Federal.

A doutrina costuma identificar dois sistemas principais de controle externo, embora cada país apresente peculiaridades resultantes de sua história, tradições e características políticas. São, basicamente, dois modelos existentes: (a) Tribunais de Contas (Corte de Contas); (b) Auditorias-Gerais (Controladorias). Ambos, tanto os Tribunais de Contas como as Controladorias, são órgãos integrados ao aparelho do Estado, em geral com previsão constitucional, tratando-se de estruturas com elevado grau de independência, possuindo a função precípua do exercício do controle externo. A dierença é que, enquanto os Tribunais são órgãos colegiados de julgamento, com atribuições sancionarórias, e sua gênese se relacione à legalidade da gestão publica, as Controladorias, ao contrário, são órgãos unipessoais, tendo uma função mais ligada ao assessoramento, orientando e corrigindo erros, buscando a eficiência nos resultados, sem competência para julgamento das contas e nem para aplicação de sanções.

No Brasil, adotou-se o sistema dos Tribunais de Contas. Suas características marcantes são o caráter colegiado de suas decisões e o seu poder coercitivo de impor sanções aos administradores com contas julgadas irregulares. Ao revestir-se de caráter jurisdicional (julgamento das contas), o controle exercido pelos Tribunais sempre atribui maior ênfase ao processo, tendo procedimentos de fiscalização mais acentuadamente formais e legalistas. Contudo, vale ressaltar que o modelo dos Tribunais de Contas, cuja origem é marcada pelo controle da legalidade estrita, evoluiu para abranger também novos conceitos de controle, cuja base se assenta no sistema de Controladorias. No início, o controle exercido pelos Tribunais de Contas era, de fato, meramente formalístico, enfatizando apenas aspectos atinentes à legalidade dos atos públicos, e o sistema de Controladorias, por sua vez, enfatizava aspectos atinentes ao desempenho e resultados da gestão. Mas, atualmente, é praticamente inconcebível a fiscalização de um ato administrativo ater-se apenas no julgamento de legalidade. Os Tribunais de Contas procuram, agora, incorporar as novas técnicas de Auditoria que permitam a apreciação das contas de forma mais abrangente, incluindo também aspectos atinentes à eficiência da gestão, superando a mera análise formal. Esse caminho vem sendo adotado pelo Brasil.

De fato, o controle não representa um fim em si mesmo, mas uma parcela imprescindível de um mecanismo regular que deve assinalar oportunamente os desvios e irregularidades na aplicação dos recursos públicos. Como corolário do Estado Democratico de Direito, é o controle externo um instrumento que impede o abuso do poder, fazendo com que as autoridades e os agente administrativos pautem a sua atuação em defesa do interesse coletivo, por meio de uma fiscalização orientadora, corretiva e até punitiva. O sistema de Tribunais de Contas modernamente fiscaliza o gasto público não só pelo aspecto da legalidade, mas também adentra na legitimidade, economicidade e eficiência, evoluindo para assumir um papel também pedagógico diante do gestor. É o que acontece hoje no Brasil a partir da Carta Costitucional de 1988, que confere ao Tribunal de Contas um grau de relevância e amplitude de competências sem paralelo, combinando atribuições repressivas, típico das Cortes judicantes, bem como instrumentos preventivos e pedagógicos, típicos das Auditorias-Gerais, caracterizando-se como um modelo híbrido. Dentro desse rol de atribuições das Cortes de Contas, discute-se atualmente sobre a possibilidade ou não do exercício de controle de constitucionalidade. Para tanto, necessário entender o contexto em que se inserem as Cortes de Contas no modelo constitucional brasileiro para, então, bem podermos concluir sobre o tema.

4.2. Natureza Jurídica das Decisões dos Tribunais de Contas

Não é de hoje o fervoroso debate acerca da natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas. Possuem natureza judicante ou administrativa? Esclareça-se, de início, que uma decisão judicante não necessariamente é aquela originária do Poder Judiciário, mas sim, é aquela que possui a capacidade de dizer definitivamente o direito, fazer coisa julgada. Nesse ponto, relembremos, das lições de direito administrativo, que existem dois sistemas de controle dos atos da Administração: (a) Sistema do Contencioso Administrativo: preconiza que, praticado um ato administrativo, o controle do referido ato poderá ser feito pela própria Administração, podendo um órgão administrativo ter competência para resolver em definitivo uma determinada questão sem que as partes necessitem recorrer ao Judiciário; (b) Sistema da Jurisdição Única: preconiza que em qualquer situação sempre caberá ao Poder Judiciário a possibilidade de dar a palavra final e fazer coisa julgada, sendo as decisões da Administração revisíveis pelo Judiciário, o que significa que apesar da convivência harmoniosa com colegiados administrativos, estes não têm a última palavra em termos decisórios, cabendo sempre ao Judiciário fazê-lo.

Observe-se que em todos dois sistemas existe a possibilidade tanto de um órgão administrativo como um órgão do judiciário exercerem a função de julgamento, a diferença é que no Sistema de Jurisdição Única apenas o Poder Judiciário tem a função de dizer o direito definitivamente (decisão com efeito judicante), enquanto no Sistema de Contencioso Administrativo é possível o julgamento pela Administração também cumprir a mesma função e fazer coisa julgada. O Brasil adota o Sistema de Jurisdição Única. Somente ao Poder Judiciário, pelo princípio da inafastabilidade da justiça (CF/88, art 5°, XXXV: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”), caberá dizer definitivamente sobre o direito, sendo as decisões aministrativas sempre passíveis de revisão judicial. Ou seja, os órgãos administrativos só produzem julgamentos com natureza administrativa, nunca decisões com efeito judicante, sendo estas privativas do Poder Judiciário (Sistema de Jurisdição Única).

Isso responde a pergunta inicial: qual a natureza jurídica das decisões dos Tribunais de Contas: administrativa ou judicante? Nos termos do ordenamento jurídico brasileiro e da ordem constitucional em vigor, que adota o sistema de jurísdição única, temos que as decisões dos Tribunais de Contas possuem natureza administrativa. Mas o tema não é pacífico. Existe parcela minoritária da doutrina que defende a força judicante da deliberação dos Tribunais de Contas. Primeiro, porque o art. 71, II, CF/88, estabelece que cabe à Corte de Contas julgar as contas dos administradores e responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos. Segundo, porque o art. 73, §3º, CF/88, dispõe que os Ministros TCU terão as mesmas prerrogativas e impedimentos dos Ministros do STJ, isto é, o texto constitucional assegura à Corte de Contas os mesmos privilégios de independência do Poder Judiciário, exercendo, no que couber, as atribuições do art. 96 da CF/88, que estatui normas atitentes à organização do Poder Judiciário. Terceiro, porque o próprio caput do art. 73 fala em jurisdição quando se reporta ao Tribunal de Contas da União, dispondo que a Corte terá quadro próprio de pessoal e jurisdição em todo o território nacional.

Não obstante, o sistema jurídico brasileiro é claro, nada excluirá da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF/88). A doutrina majoritária e a jurisprudência uníssona conferem aos julgamentos dos Tribunais de Contas natureza administrativa. O Brasil adotou o sistema de jurisdição única, também chamado de monopólio da tutela jurisdicional pelo Poder Judiciário, de sorte que as decisões administrativas das Cortes de Contas, enquanto atos administrativos, sujeitam-se necessariamente ao controle jurisdicional pelo Poder Judiciário, a quem compete, com exclusividade, resolver definitivamente os conflitos e fazer coisa julgada material. Assim, pelo princípio da inafastabilidade do judiciário, o entendimento dominante é o de que inexiste no Brasil o chamado sistema do contencioso administrativo. As decisões das Cortes de Contas, portanto, possuem natureza administrativa.

4.3. Revisão dos Atos dos Tribunais de Contas pelo Poder Judiciário

Já sabemos que o Tribunal de Contas é um órgão cujas decisões não possuem natureza judicante. Por força do sistema de jurisdição única adotado no Brasil apenas o Judiciário pode fazer coisa julgada, dizer definitivamente o direito. E, de fato, a Corte de Contas, no modelo brasileiro, não integra o Poder Judiciário. Se ainda existe discussão quanto ao seu ingresso ou não na estrutura do Legislativo (prevalecendo o entendimento nesse sentido), quanto à sua não inclusão no Poder Judiciário não há dúvidas. Embora a Corte de Contas tenha o nome de "Tribunal" (porque se trata de órgão colegiado), fale-se em jurisdição (porque julga as contas dos administradores), e seus membros equiparem-se aos do judiciário (Ministros do TCU possuem as mesmas prerrogativas dos Ministros do STJ; auditores possuem as mesmas prerrogativas dos juizes do TRF; aplicando-se o princípio da simetria na esfera estadual), trata-se de instancia cujas decisões revestem-se de natureza administrativa. Por isso, seus atos são passíveis de controle na via judicial. Temos, então, a revisão dos atos do Tribunal de Contas feita pelo Judiciário, sempre que demandado para tanto.

Mas de que forma se dá esse controle? Sabemos que o controle feito pelo Judiciário nos atos da Administração possui reservas quanto as mérito do administrador (conveniência e oportunidade), inserindo-se precipuamente no âmbito da legalidade. Contudo, sabe-se, também, que hoje encontra-se superado o debate acerca da possibilidade ou não do controle judicial atingir o mérito. De fato, o princípio da legalidade deixou de ser visto no seu aspecto puramente formal para ser encarado também no plano material, sendo possível ao judiciário, com ponderações, adentrar no mérito, sobretudo a partir dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Mas atenção: além do mérito administrativo, que se liga à conveniência e oportunidade do gestor, há também o mérito da decisão administrativa. Qualquer decisão, judicial ou administrativa, tem dois aspectos: (i) forma (regularidade processual); (ii) mérito (essência da decisão, direito discutido). Nas decisões administrativas, pode o Judiciário rever tanto a forma quanto o mérito da decisão para reformar o que foi decidido em sede administrativa. Logo, no que diz respeito a esse mérito, isto é, o mérito de um pleito administrativo (o direito do interessado), o Judiciário pode reapreciar. Nesse ponto, o Judiciário não entra no mérito administrativo (conveniência e oportunidade), mas entra no mérito da decisão administrativa (direito pleiteado, essência do ato). Ocorre que, exatamente nesse ponto, reside uma diferença crucial entre a revisão dos atos da Administração, e a revisão das decisões do Tribunal de Contas, embora ambas tenham natureza administrativa. O controle jurisdicional é diferente em cada caso.

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Ao contrário do que ocorre como regra nas decisões administrativas, no que diz respeito às decisões das Cortes de Contas o seu mérito é insuscetível de discussão. Compete ao Judiciário apenas verificar se foi observado o devido processo legal e se não houve violação de direito individual. O Poder Judiciário não pode entrar no mérito (conteúdo) da decisão do Tribunal de Contas e, por exemplo, julgar regulares contas que foram tidas por irregulares pela Corte de Contas, ou o inverso. Não há reforma ou revisão pelo Judiciário do mérito da decisão do Tribunal de Contas, o que pode haver é anulação por ilegalidade ou desrespeito ao devido processo legal. Logo, o Judiciário não apreciará o mérito, mas a legalidade e a formalidade das decisões dos Tribunais de Contas.

É que, apesar de ter natureza administrativa, o Tribunal de Contas é o órgão ao qual foi outorgado competência constitucional para julgar as contas, aplicar sanções, verificar legalidade da concessão de aposentadorias, reformas e pensões, dentre outras inúmeras competências listadas no art. 71 da CF/88. Para estas competências, o Tribunal de Contas é o órgão tecnicamente competente, não cabendo revisão do mérito da decisão pelo Judiciário. Se a decisão se divide em forma (regularidade processual) e mérito (direito pleiteado), apenas o primeiro, no que tange às decisões das Cortes de Contas, pode ser revisto pelo Judiciário. Por isso é que uma decisão da Corte de Contas pode até ser anulada, mas nunca reformada judicialmente. Isso ocorre porque, enquanto a decisão normal da Administração é um ato de natureza administrativa pura, a decisão do Tribunal de Contas, por sua vez, embora seja também administrativa e não tenha natureza judicante (não faz coisa julgada), possui um certo viés jurisdicional, porque a Corte julga as contas, daí a razão de se falar em jurisdição. Essa competência de julgar as contas é atribuída pela Constituição, nenhuma outra instância pode usurpar tal atribuição (art. 71, II, CF/88).

Portanto, somente o Tribunal de Contas é competente para entrar no mérito (análise técnica) de suas decisões, resolver sobre regularidade ou irregularidade de contas, seus desdobramentos decorrentes, bem como as outras matérias que lhe foram constitucionalmente outorgadas, não entrando nesta seara o Judiciário. Todo esse enfoque, obviamente, é importante quando se analisa a possibilidade ou não do Tribunal de Contas proceder à eventual controle de constitucionalidade no exercício de suas funções. Se nas decisões e atos administrativos puros da Administração cabe ao Judiciário revisar a forma (regularidade processual) e o mérito (essência da decisão), nas decisões dos Tribunais de Contas o Judiciário analisa somente o primeiro. Não pode o Judiciário entrar no mérito da decisão e exercer controle técnico acerca da matéria constitucionalmente sujeita ao crivo privativo da Corte de Contas. O mérito da decisão do Tribunal de Contas só pode ser reformado pelo próprio Tribunal, mais ninguém. Em síntese, o Poder Judiciário poderá apreciar somente o "error in procedendo", jamais o "error in judicando". O Tribunal de Contas, tal como o Poder Judiciário, julga na matéria de sua competência (embora no primeiro caso a decisão tenha natureza administrativa, ao contrário deste último, cuja decisão reveste-se de força jurisdicional), o mérito não pode ser revisto pelo Poder Judiciário, que só tem a força da revisibilidade das decisões do Tribunal de Contas em um plano meramente formal, como garantia ao devido processo legal e os direitos e garantias individuais. O mérito da decisão, nesse plano, é insindicável pelo Poder Judiciário.

4.4. Efeito Vinculatório das Decisões dos Tribunais de Contas para a Administração

Outro importante destaque nesta presente análise diz respeito ao caráter vinculatório das deliberações das Cortes de Contas em relação à Administração Pública. Indaga-se: os julgamentos do Tribunal de Contas vinculam a Administração ou esta pode rever tais atos? Em outros termos, pode um Tribunal proferir decisões não judicantes, de natureza administrativa, e ainda assim vincular o Executivo? De fato, as decisões das Cortes de Contas, dentro de suas atribuições constitucionais, possuem caráter impositivo e vinculante para a Administração. Não se pode colocar a decisão proferia pelo Tribunal de Contas no mesmo nível que uma decisão proferida por órgão integrante da Administração Pública. Embora ambos tenham natureza administrativa, não faria o menor sentido que a Administração pudesse anular os atos dos Tribunais de Contas, seja pelo principio da separação de Poderes, seja porque os atos controlados não têm a mesma força que os atos de controle, caso contrário o órgão controlado estaria revisando a instância fiscalizadora.

Podemos afirmar, então, que a decisão do Tribunal de Contas, se não se iguala à decisão jurisdicional, porque está sujeita também ao controle de legalidade pelo Poder Judiciário, também não se identifica com a função puramente administrativa. Ela se coloca a meio caminho entre uma e outra. Isto se deve ao fato de que os julgamentos dos Tribunais de Contas tem assento constitucional e se sobrepõem à decisão das autoridades administrativas. É órgão especificamente criado para tal mister, com competência outorgada pela Lei Maior para a fiscalização das contas públicas, cuja decisão, no que se refere à matéria de sua competência, vincula o restante da Administração, qualquer que seja o nível em que se insiram na hierarquia do aparelhamento estatal, mesmo no nível máximo da chefia do Poder Executivo. Desse modo, se, por um lado, as decisões dos Tribunais de Contas, iniludivelmente administrativas, são suscetíveis de apreciação pelo Judiciário, podendo vir a ser anuladas por este, por outro lado, o mesmo não pode fazer a Administração, posto que o Tribunal de Contas, órgão constitucionalmente estabelecido para vigiar a execução e a boa aplicação dos recursos públicos, é sobranceiro à própria Administração, que fica vinculada ao julgamento da Corte de Contas, não podendo invalidar seus atos.

Por tal motivo, alguns doutrinadores afirmam que as decisões dos Tribunais de Contas constituiriam-se na chamada coisa julgada administrativa (decisão tomada na via administrativa que não pode sofrer alteração nessa mesma instancia, embora possa sê-lo na via judicial). Ou seja, sob o prisma da imutabilidade da declaração contida na decisão das Cortes de Contas, seus julgamentos são irretratáveis pela Administração, somente podendo fazê-lo o próprio Tribunal de Contas. E, além disso, são insuscetíveis de rediscussão pelo Judiciário quanto ao conteúdo da declaração que emitem. Obviamente, não se reconhece a coisa julgada em sua plenitude, porque a decisão do Tribunal de Contas, mesmo não podendo ser revista pela Administração, não desafia ao Judiciário. De todo modo, embora o Tribunal de Contas seja um tribunal administrativo, cuja natureza jurídica das decisões não se reveste de caráter judicante e, consequentemente, sujeita-se ao controle de legalidade por parte do Judiciário, sua decisão vincula a Administração, isto é, seus julgamentos possuem natureza administrativa, porém, com efeito vinculatório para a Administração Pública.

“MANDADO DE SEGURANÇA. DECISÃO DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO. APOSENTADORIA. ILEGALIDADE. REGISTRO. NEGATIVA. AUTORIDADE COATORA. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. I - "A aposentadoria é ato administrativo sujeito ao controle do Tribunal de Contas, que detém competência constitucional para examinar a legalidade do ato e recusar o registro quando lhe faltar base legal" (RE nº 197227-1/ES, Pleno, Rel. Ministro ILMAR GALVÃO, DJ de 07/02/97). II – O Tribunal de Contas da União é parte legítima para figurar no pólo passivo do mandado de segurança, quando a decisão impugnada revestir-se de caráter impositivo. Precedentes do Colendo Supremo Tribunal Federal. III – A decisão do Tribunal de Contas que, dentro de suas atribuições constitucionais (art. 71, III, CF), julga ilegal a concessão de aposentadoria, negando-lhe o registro, possui caráter impositivo e vinculante para a Administração. IV – Não detendo a autoridade federal impetrada poderes para reformar decisão emanada do TCU, não é parte legítima para figurar no pólo passivo da ação mandamental que se volta contra aquela decisão. Recurso não conhecido.” (REsp 464633/SE, Ministro FELIX FISCHER, T5 - QUINTA TURMA, DJ 31/03/2003).

4.5. Controle de Constitucionalidade e Tribunal de Contas

Diante de tudo o que foi exposto, podemos concluir que os Tribunais de Contas colocam-se em posição de relevo no ordenamento pátrio: possuem competência constitucional privativa no julgamento de contas; suas decisões revestem-se de caráter impositivo e vinculante para a Administração; seus membros são equiparáveis em prerrogativas aos membros do judiciário; o conteúdo de seus julgamentos não pode ser alterado pelo pelo Judiciário, mas somente anulado, dentre outras características tão marcantes que conferem às Cortes de Contas um status de relevo. Dentro desse peculiar contexto de controle e a atual e crescente importância dentro do ordenamento pátrio dos Tribunais de Contas, sobretudo com atuação não limitada aos critérios de legalidade, mas também adentrando na legitimidade, economicidade e eficiência dos atos de gestão, indaga-se: no exercício da função constitucional de controle e julgamento de contas pelos Tribunais de Contas, deparando-se estes com eventual inconstitucionalidade de lei no caso concreto, seria possível o exercício do controle de constitucionalidade pelas Cortes de Contas?

Nesse ponto, reconhecemos que o Supremo Tribunal Federal autoriza expressamente essa possibilidade, através da sua Súmula n° 347, atualmente em vigor, cujo teor é cristalino:

“O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público”.

Dessa forma, a princípio, no exercício do controle externo da Administração, pode o Tribunal de Contas exercer aferição de constitucionalidade. Obviamente, trata-se de declaração de inconstitucionalidade de uma lei ou ato normativo "in concreto", jamais em abstrato, caso contrário estaria havendo usurpação da competência do próprio Supreo Tribunal Federal. Contudo, há que se ressalvar que o tema atualmente tem gerado certa polêmica, sobretudo porque o STF, em várias decisões monocráticas em sede de liminar, vem suscitando a necessidade de revisão da referida Súmula, porque exarada em momento anterior à CF/88. Nesse sentido, a Corte Maior conferiu interpretação conforme a essa Súmula para dizer que o Tribunal de Contas só pode declarar a inconstitucionalidade no caso específico de ato do poder público, e não de uma lei em abstrato, caso contrário estaria havendo usurpação de competência do próprio STF, conferido por mandamento constitucional. Ou seja, enquanto a Súmula n°. 347 do STF (ainda em vigor) diz que o Tribunal de Contas pode exercer controle de constitucionalidade de “lei ou ato normativo” do poder público, a jurisprudência da Corte caminha no sentido de restringir essa possibilidade apenas para aferição de constitucionalidade de “atos” do poder público. Isto é, seria possível o controle de constitucionalidade pelas Cortes de Contas, mas somente controle de ato ou contrato administrativo no exercício da fiscalização, e não controle da lei em abstrato. Essa é a tendência atual da jurisprudência do STF, embora inalterado o teor da sua Súmula n°. 347.

Nesse sentido, o escopo de atuação do Tribunal de Contas, para fins de controle de constitucionalidade, ficaria adstrito à análise dos atos e contratos emanados pela Administração, e não à lei que se aplica ao caso. Hoje, parece não mais se admitir como legítimo o afastamento da aplicação de lei, por parte de órgãos não-jurisdicionais, que ainda não foi considerada inconstitucional pelo Judiciário. Logo, o Tribunal de Contas poderia declarar a inconstitucionalidade de atos do poder público, mas não assim fazê-lo em relação a uma lei. As vozes nesse sentido ainda não estão uníssonas, havendo relevantes posicionamentos, sobretudo na doutrina, nos dois sentidos, mas essa é o caminho verificado nos dias atuais no âmbito da Corte Suprema. A respeito, veja-se o voto singular do Min. Gilmar Mendes em decisão monocrática no MS 25.888, que discutia a declaração de inconstitucionalidade do TCU no procedimento simplificado de licitação da Petrobrás:

“Assim, a declaração de inconstitucionalidade, pelo Tribunal de Contas da União, do art. 67 da Lei n° 9.478/97, e do Decreto n° 2.745/98, obrigando a Petrobrás, consequentemente, a cumprir as exigências da Lei n° 8.666/93, parece estar em confronto com normas constitucionais, mormente as que traduzem o princípio da legalidade, as que delimitam as competências do TCU (art. 71), assim como aquelas que conformam o regime de exploração da atividade econômica do petróleo (art. 177). Não me impressiona o teor da Súmula nº 347 desta Corte, segundo o qual ‘o Tribunal de Contas, o exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público’. A referida regra sumular foi aprovada na Sessão Plenária de 13.12.1963, num contexto constitucional totalmente diferente do atual. Até o advento da Emenda Constitucional n° 16, de 1965, que introduziu em nosso sistema o controle abstrato de normas, admitia-se como legítima a recusa, por parte de órgãos não-jurisdicionais, à aplicação da lei considerada inconstitucional. No entanto, é preciso levar em conta que o texto constitucional de 1988 introduziu uma mudança radical no nosso sistema de controle de constitucionalidade. Em escritos doutrinários, tenho enfatizado que a ampla legitimação conferida ao controle abstrato, com a inevitável possibilidade de se submeter qualquer questão constitucional ao Supremo Tribunal Federal, operou uma mudança substancial no modelo de controle de constitucionalidade até então vigente no Brasil. Parece quase intuitivo que, ao ampliar, de forma significativa, o círculo de entes e órgãos legitimados a provocar o Supremo Tribunal Federal, no processo de controle abstrato de normas, acabou o constituinte por restringir, de maneira radical, a amplitude do controle difuso de constitucionalidade. A amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal mediante ação direta de inconstitucionalidade. Assim, o processo de controle abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função: atua tanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas. Assim, a própria evolução do sistema de controle de constitucionalidade no Brasil, verificada desde então, está a demonstrar a necessidade de se reavaliar a subsistência da Súmula 347 em face da ordem constitucional instaurada com a Constituição de 1988″. (STF, MS 25.888 MC / DF, Decisão do Ministro Relator – Monocrática, Rel . Min. Gilmar Mendes, DJ 29/03/2006.)

Portanto, em suma: a Súmula 347 do STF, atualmente em vigor, confere o poder para o Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do poder público, contudo, de acordo com a tendência da jurisprudência do STF, o Tribunal de Contas pode reconhecer a inconstitucionalidade de um ato do poder público no caso concreto, mas não a inconstitucionalidade de uma lei, embora não seja esta a redação expressa da Súmula n°. 347 do STF. Enquanto o referido verbete sumular diz que o Tribunal de Contas pode exercer controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo (e seu texto continua em vigor, não foi revogado ou alterado), a jurisprudência do STF caminha no sentido de restringir essa possibilidade apenas para aferição de constitucionalidade de atos do poder público (e não de lei) pelo Tribunal de Contas. A matéria ainda não está pacificada, mas esse é o caminho pelo qual percorre a jurisprudência atual da Corte Suprema.


5. CONCLUSÃO

Diante do exposto, buscou-se examinar suscintamente o instituto do controle constitucionalidade, especificamente com relação aos momentos e órgãos de realização desse controle, bem como o atual entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca da possibilidade ou não do exercício dessa função pelos Tribunais de Contas. Embora no Brasil o controle de constitucionalidade seja, via de regra, jurisdicional (teoria da revisão judicial dos atos legislativos), não somente o Poder Judiciário pode exercê-lo. Nesse enfoque, cabe ao Legislativo e Executivo, por mandamento constitucional, a possibilidade de controle, excepcionalemente. Dentro desse contexto, o Supremo Tribunal Federal autoriza expressamente a possibilidade de controle de constitucionalidade pelos Tribunais de Contas, à luz da Súmula n° 347, atualmente em vigor. Contudo, tal posicionamento vem sendo reformado pela Corte Maior. Hoje, a jurisprudência do Supremo caminha no sentido de restringir a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade pelos Tribunais de Contas, apontando para uma futura revisão da Súmula n° 347 do STF.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira Filho. Curso de Direito Constitucional. 37ª ed. Saraiva, 2011.

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TORRES, Ricardo Lobo. Curso de Direito Financeiro e Tributário. 18ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2011.

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Sobre o autor
Francisco Gilney Bezerra de Carvalho Ferreira

Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Público pela Faculdade Projeção e MBA em Gestão Pública pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e Engenharia Civil pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Procurador Federal em exercício pela Advocacia-Geral da União (AGU) e Professor do Curso de Graduação em Direito da Faculdade Luciano Feijão (FLF-Sobral/CE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERREIRA, Francisco Gilney Bezerra Carvalho. Do exercicio do controle de constitucionalidade pelas cortes de contas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3889, 23 fev. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/26723. Acesso em: 24 abr. 2024.

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