Em 2013 assistimos ao maior espetáculo judiciário-televisivo brasileiro. Estou me referindo, obviamente, ao julgamento do Mensalão petista. Muito já foi dito sobre este julgamento que desencadeou uma verdadeira onda de criminalização da política na imprensa. As consequencias do episódio a médio e longo prazo ainda não podem ser completamente mensuradas. Esta semana, porém, chegou ao meu conhecimento um traumático reflexo judiciário daquele julgamento.
Sob o influxo do julgamento do Mensalão, em 2013 o Ministério Público de São Paulo ajuizou uma Ação Civil Pública de Improbidade Administrativa contra duas empresas, os sócios da mesma, um servidor público, um jornalista e o espólio do ex-prefeito de uma cidade da grande São Paulo. Fui contratado por alguns dos réus para defendê-los em Juízo. O caso é complexo, mas procurarei ser o mais didático possível.
O MP acusou os réus de, no curso dos anos de 2009 e 2010, terem conspirado para produzir prejuízo àquele município mediante a contratação parcelada e sem licitação de serviços de publicidade. Da ausência de licitação o Promotor inferiu o prejuízo econômico causado ao erário público e requereu a condenação dos réus à, solidariamente, devolver ao município 37 mil reais (valor total dos contratos de prestação de serviços) e multa de 2 vezes este valor. O autor da ação também pretende que os réus percam seus direitos políticos, sejam exonerados dos cargos públicos que ocupam e fiquem impossibilitados de celebrar contratos futuros com a administração pública. À ação foi dado o valor de 3,7 milhões de reais.
A primeira coisa que fiz após ser contratado foi consultar o website do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo. Lá descobri que as contas do ex-prefeito mencionado na ação foram rejeitadas pelo TCE nos anos de 2008, 2009 e 2010. Vários foram os motivos que levaram o órgão fiscalizador a proferir as decisões. Um deles foi justamente o ex-prefeito ter deixado de fazer licitações para contratar serviços de publicidade, realizar shows, comprar materiais elétricos e realizar obras de pavimentação.
Uma primeira conclusão pode ser extraída das decisões proferidas pelo TCE. Apesar de irregular, a aquisição parcelada e sem licitação de bens e serviços era regra naquele município. Somente o ex-prefeito poderia dizer em Juízo o que o levou a ignorar sua obrigação de realizar licitações, mas infelizmente ele está morto e não poderá prestar depoimento.
As empresas que o MP indicou como responsáveis de praticar fraudes e causar prejuízos à administração municipal realmente prestaram serviços àquela Prefeitura. Os preços cobrados por meus clientes foram compatíveis com os de mercado praticados na oportunidade. Na verdade os valores pagos pelo município foram inferiores aos preços cobrados por outros jornais locais e aos praticados pelos grandes jornais paulistas. No curso do processo os concorrentes dos meus clientes poderão ser oficiados para fornecer ao Juízo as Tabelas de Preços que praticaram nos anos de 2009 e 2010.
Em sua inicial o Promotor de Justiça não acusou meus clientes de terem cobrado preços exorbitantes, não afirmou que eles deixaram de prestar os serviços contratados e pagos, nem tampouco levantou qualquer suspeita de que as empresas foram contratadas porque pagaram suborno. O único fundamento jurídico que o Ministério Público alegou para pedir a condenação dos réus foi o suposto conluio que teria provocado o irregular parcelamento dos serviços para dispensa de licitação. A não realização de licitações naquela cidade, como já vimos, era a regra consoante as decisões proferidas pelo TCE que foram juntadas aos autos.
O que mais me chamou a atenção no processo em questão foi tom empregado pelo MP para descrever os fatos daquele minúsculo episódio referente à irregularidades administrativas que, segundo o autor da ação, deveriam acarretar a devolução de 37 mil reais aos cofres públicos. Ao ler a inicial percebi que o Promotor encarregado do caso o tratou retoricamente como se ele fosse similar ao Mensalão julgado pelo STF.
A evidência mais palpável desta relação entre os dois episódios (aquele que foi julgado pelo STF em 2013 sob os holofotes da mídia e o que resultou na propositura de ação contra meus clientes) foi o fundamento que o Promotor deu para tentar responsabilizar um dos meus clientes. Ele não é sócio das empresas envolvidas naquele micro-escândalo municipal incapaz de atrair a atenção da grande imprensa. Mesmo assim, o Promotor sustentou que ele é responsável pelo dano causado ao erário público por duas razões: 1) ele é parente dos sócios das minúsculas empresas de comunicação e foi encarregado de retirar alguns cheques nominais às mesmas na Prefeitura; 2) ele é amigo da viúva do ex-prefeito da cidade e isto evidenciaria sua participação no esquema montado para fraudar a municipalidade. Para mim que acompanhei atentamente o Mensalão é impossível não ver os ecos do mesmo no caso que chegou ao meu conhecimento.
Desde tempos imemoriais a amizade é considerada tanto uma virtude privada quanto um dos fundamentos da existência das Repúblicas:
"O homem detesta a solidão e por natureza vai em direção ao próximo; nele também há um impulso que o leva a procurar a amizade". Sêneca, As Relações Humanas
"...a primeira causa desta agregação de uns homens a outros é menos sua debilidade do que um certo instinto de sociabilidade a todos inato; a espécie humana não nasceu para o isolamento e para a vida errante, mas com uma disposição que, mesmo na abundancia de todos os bens, a leva a procurar o apoio comum." Marco Túlio Cícero, in Da República, Livro Primeiro.
A ação que estou a comentar, movida contra um dos meus clientes porque ele é amigo da viúva do ex-prefeito, foi proposta em 2013. Portanto, durante o julgamento do Mensalão. A que ponto chegamos... Agora até a amizade se tornou fonte de suspeita e fundamento de responsabilização judiciária.
Após uma análise cuidadosa notei vários problemas técnicos na ação proposta pelo MP contra meus clientes. Não vou entrar em detalhes, mas dentre os equívocos cometidos pelo Promotor destacarei aqui os mais evidentes:
1- as pessoas jurídicas processadas não podem perder direitos políticos que não tem;
2- nenhuma das pessoas físicas que me contrataram (sócios das empresas de comunicação e o amigo da ex-viúva do prefeito) tem cargos públicos que possam perder;
3- um dos réus sequer é sócio das empresas que prestaram serviços ao município;
4- a Lei brasileira não proíbe a amizade nem a considera crime;
5- o valor da ação não poderia ser 3,7 milhões de reais, pois o valor econômico do dano que se pretende reparar é igual a 3 x 37 mil reais (total do dano + multa igual a 2 vezes o mesmo);
6- os sócios das empresas processadas só podem ser responsabilizados caso as mesmas não consigam arcar com a condenação;
7- cada um dos sócios somente responde proporcionalmente à sua respectiva participação acionária e não pelo total do suposto dano cobrado pelo Ministério Público;
8- o Promotor não alegou ou demonstrou que os serviços pagos não foram prestados, que ocorreu superfaturamento dos preços ou pagamento de propinas ao ex-prefeito ou servidores municipais;
9- as pessoas físicas e jurídicas processadas pelo MP não estão sujeitas às regras administrativas que vinculam a ação das autoridades e servidores municipais (somente o prefeito e seus subordinados poderiam ser processados por improbidade administrativa na forma da LIA).
Ao pesquisar a jurisprudência sobre assunto, topei com a seguinte decisão da lavra do Ministro Luiz Fux proferida quando ele estava no Superior Tribunal de Justiça:
“... o elemento subjetivo é essencial à caracterização da improbidade administrativa, tendo em vista a natureza de sanção inerente à LIA. Ademais, o ato de improbidade exige, para sua configuração, necessariamente, o efetivo prejuízo ao erário (art. 10, caput, da LIA), diante da impossibilidade de condenação ao ressarcimento de dano hipotético ou presumido.” (REsp 1.038.777, Relator Ministro Luiz Fux, j. 3/02/2011, 1ª T – transcrito em Principais Julgamento do STF, Editora JusPodivm, edição 2012, pág. 55/56)
A decisão acima transcrita foi considerada importante o bastante para ser debatida na imprensa especializada: http://www.conjur.com.br/2011-fev-07/stj-afasta-punicao-aplicada-ex-prefeito-improbidade-administrativa
Esta decisão proferida por Luiz Fux é bem diferente daquela que ele mesmo proferiu algum tempo depois no caso do Mensalão no STF. Quando estava no STJ, Fux entendeu, corretamente, que a condenação por improbidade administrativa depende da existência de prova do dano. Ele disse textualmente que há “impossibilidade de condenação ao ressarcimento de dano hipotético ou presumido.” Ao julgar o Mensalão petista, entretanto, Luiz Fux protagonizou um dos piores momentos da história judiciária brasileira na frente das câmeras de TV. Isto ocorreu quando ele condenou José Dirceu porque o Ministro da Casa Civil de Lula “não fez prova de sua inocência”. Qual destas duas decisões deve prevalecer?
Como advogado é óbvio que exigirei ao Judiciário que julgue meus clientes de maneira técnica e, portanto, de acordo com a decisão que Luiz Fux proferiu quando estava no STJ. Mesmo assim estou preocupado.
Em razão do clima de linchamento judiciário produzido pelo julgamento Mensalão e sua exagerada exploração midiática, o Juiz da causa pode muito bem fazer o mesmo que o Promotor fez ao propor a ação (extrair de uma mera irregularidade administrativa cometida pelo ex-prefeito o suposto dano acarretado ao erário público por meus clientes). A esta altura, nenhum advogado experiente rejeitaria imediatamente a possibilidade de um Juiz, sob influência do infeliz precedente criado por Fux no STF, julgar procedente uma ação de improbidade administrativa porque os réus não provaram sua inocência. Mas nem tudo está perdido.
Em caso análogo àquele em que estou defendendo os réus o TJSP proferiu a seguinte decisão:
“RESSARCIMENTO AO ERÁRIO C.C. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA Ação movida contra Prefeito (falecido no curso da demanda) e participantes de licitação. Ausência de dano ao erário e de enriquecimento ilícito, inviável aplicação de pena ao espólio do agente público por inexistir o dever de ressarcimento. 1. Pretensão de aplicar a LIA aos licitantes, sob o fundamento de que agiram em conluio para obter vantagem indevida (art. 3º da Lei nº 8.429/92). INVIABILIADE. Pessoas estranhas aos quadros da administração que não se sujeitam às sanções da Lei nº 8.429/92 se não for reconhecida a prática de ato de improbidade por um agente público. Precedentes do STJ.2. Relações comerciais entre dois potenciais licitantes em razão das atividades empresariais, que não levam, necessária e inexoravelmente à conclusão de que podem ter fraudado o processo licitatório. 3. Existência de possível irregularidade administrativa que não chega ao estágio da ilegalidade e, muito menos, à caracterização de ato ímprobo. Serviço contratado e devidamente prestado. 4. Ônus da prova que incumbe ao autor da ação. 5. Sentença de improcedência. Recurso desprovido.” (TJSP, processo no. 0001226-12.2000.8.26.0270, Acórdão registrado em 18/02/2014 sob no. 2014.0000083178, Relator Desembargador Coimbra Schmidt, 7a. Câmara de Direito Público).
A decisão do TJSP acima transcrita foi proferida após o julgamento do Mensalão e adotou uma perspectiva semelhante àquela da decisão que Luiz Fux proferiu quando estava no STJ. Ao fazer a seguinte observação “Ônus da prova que incumbe ao autor da ação” o TJSP rejeitou o precedente terrível criado por Fux ao condenar José Dirceu (que também foi acusado de improbidade administrativa) porque ele não provou sua inocência. Esta decisão do TJSP demonstra que, ao menos na segunda instância paulista, o espetaculoso julgamento do Mensalão ainda não começou a provocar grandes estragos no campo jurídico. Há esperança para meus clientes.
O Acórdão acima transcrito também sugere outra questão interessante. Vários dos problemas técnicos que apontei na ação proposta pelo MP contra meus clientes foram resolvidos pelo TJSP naquela outra ação: ausência de dano ao erário público; inviabilidade de aplicação da LIA a pessoas que não integram a administração pública; irregularidades administrativas que não acarretam a responsabilização de terceiros que contrataram com a administração; necessidade de prova efetiva do dano a cargo do autor da ação. A semelhança entre os equívocos cometidos pelos dois Promotores me fez conjecturar se ambos usaram o mesmo modelo de petição.
A pesquisa no Google para a expressão “modelo de ação civil pública por improbidade administrativa” resultou em 286.000 referências em 21/02/2014. Consultei algumas destas e constatei que há uma grande diversidade de modelos de petições iniciais de ações propostas pelo MP em razão de improbidade administrativa. Não consultei cada uma das 286.000 referências, mesmo assim a amostragem me fez tirar algumas conclusões.
A primeira e mais evidente é que existe bastante informação prática sobre improbidade administrativa na internet à disposição de todos, inclusive dos Promotores interessados. A segunda é que a circulação destas informações pode estar produzindo distorções na atuação do MP. Os Promotores que tem acesso à internet (a esmagadora maioria, suponho) podem estar sendo estimulados a comparar os casos que chegam ao seu conhecimento aos modelos de ações existentes na internet. Além disto, a intensa circulação de informação acessível pode induzir um Promotor a reproduzir os erros técnicos cometidos por outro. Isto explica de maneira satisfatória a semelhança entre os erros cometidos pelo Promotor que processou meus clientes e aquele que iniciou a ação julgada improcedente pelo TJSP (cujo Acórdão foi reproduzido acima).
Sou advogado há mais de 22 anos e minha formação felizmente não me permite utilizar modelos. Tive bons professores que rejeitavam estas facilidades que conduzem inevitavelmente à reprodução de erros. Além disto, o aprofundamento do raciocínio científico e técnico do profissional somente ocorre quando ele mesmo começa meditar pessoalmente acerca das soluções a serem dadas a cada caso concreto que chega ao seu conhecimento. Por mais de uma década orientei estagiários no Centro de Assistência Jurídica dos Alunos da Faculdade de Direito de Osasco e sempre proibi terminantemente os neófitos de usarem modelos. Naquele tempo não muito distante, entretanto, não havia internet.
Imagino que milhares de ações semelhantes àquela em que estou advogando foram propostas ou julgadas no ano passado pelo Judiciário do país. Muitas destas podem ter sido copiadas, coladas e adaptadas a casos concretos por jovens Promotores fascinados pelo desejo de prestar um serviço público e induzidos a reproduzir os erros cometidos pelos seus colegas que postaram iniciais na internet. As soluções judiciárias destes pequenos escândalos municipais sem projeção jornalística nacional constituem um fenômeno importante. Seu estudo seria muito proveitoso, pois revelaria à nação em que medida os erros graves cometidos pelo STF durante o julgamento do Mensalão influenciaram ou não o imaginário jurídico dos Promotores e Juízes brasileiros.