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Ações afirmativas à luz da Constituição Federal de 1988

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A Constituição encontra-se inundada de preceitos que autorizam a promoção de ações afirmativas nas mais diversas áreas.

Resumo: O presente trabalho estuda as ações afirmativas tendo como base a Constituição Federal de 1988. São analisados os preceitos da Carta Magna que abrem espaço para promoção de medidas com natureza afirmativa por parte do Estado. Inicialmente, realiza-se um histórico das ações afirmativas, em um primeiro momento, sob o aspecto global e, posteriormente, focando a experiência dos Estados Unidos. Em seguida, são apresentados aspectos gerais sob o instituto das ações afirmativas, destacando a sua natureza jurídica, conceito, objetivos e espécies, todos sob diversos ângulos. Enfim, realiza-se o estudo da ações afirmativas através do texto constitucional, destacando as previsões que autorizam uma atuação afirmativa, ou seja, intervencionista, do Estado no sentido de romper desigualdades evidentes. Conclui-se, portanto que a Lei Maior brasileira consagra o princípio da igualdade sob o aspecto material e encontra-se inundada de preceitos que autorizam a promoção de ações afirmativas nas mais diversas áreas.

Palavras-chave: Ações afirmativas, Princípio da Igualdade, Constituição Federal.

Sumário: 1. INTRODUÇÃO. 2. OBJETIVO. 3. METODOLOGIA. 4. REFERENCIAL TEÓRICO. 5. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO. 5.1.Histórico das ações afirmativas. 5.1.1. Ações afirmativas: surgimento nos Estados Unidos. 5.2. Noções gerais sobre ações afirmativas: conceito, natureza jurídica, objetivos e espécies.5.3. A Constituição Federal de 1988 e o desenvolvimento de ações afirmativas.6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. 7. REFERÊNCIAS


1.INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1988 segue o ideal das Constituições do México (1917) e de Weimar (1919) e consagra por vez o Estado Social, agora sob nova ótica do Estado Social Democrático de Direito.

Assim, já no seu art. 1º afirma que “a República Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]”. Por sua vez, no seu art. 3º, incisos I, III e IV, elenca entre os objetivos fundamentais da república: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e diminuir as desigualdades regionais e sociais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Nesse prisma, a novel constituição alberga o ideal do estado social intervencionista, na medida em que não se limita em trazer previsões declarando serem todos iguais perante a lei e proibindo o tratamento desigual, mas, além disso, determina uma atuação positiva do Estado no sentido de modificar uma realidade desigual preexistente. Assim, ao mesmo tempo em que prevê que todos são iguais perante a lei, compreende a realidade desigual em que está submersa e determina que o próprio poder público atue no sentido de reverter essa situação ou pelo menos atenuá-la.

Nesse contexto, surgem as ações afirmativas, denominação atribuída às medidas que visam, de algum modo, intervir nas relações sociais para quebrar a ordem vigente na sociedade e facilitar o acesso a bens jurídicos que se mostram inacessíveis ou de acesso muito dificultoso para certo grupo social, surgindo também como instrumento reparador em razão de um contexto histórico de desigualdade.

Esse instituto jurídico passou a ser bastante lembrado em razão das cotas raciais para o ingresso nas universidades públicas. Tanto é verdade que muitos ainda os confundem, compreendendo, erroneamente, serem a mesma coisa, quando, na verdade, as ações afirmativas constituem o gênero do qual faz parte o programa de cotas para as universidades. 

Em razão disso, o estudo das ações afirmativas ficou muito voltado para o sistema de cotas e na discussão a respeito da existência de desigualdade racial no país, sendo deixado de lado todo um sistema que, sem se voltar para a questão de raça, prevê uma atuação afirmativa do poder público para reparar discriminações recorrentes em diversas outras áreas.

Assim, não se pode esquecer que a promoção da igualdade material no Brasil e, por conseguinte, a observância do Estado Social Democrático de Direito abraçado por nossa Carta Magna, devem ir além do acesso ao ensino superior e se voltarem para diversos outros setores aonde ainda existe discriminação e desigualdade no acesso a bens jurídicos, conforme determina o próprio texto constitucional.

 Diante desse quadro, esse trabalho busca responder os seguintes questionamentos: Quais previsões nos permitem concluir que a Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade no seu caráter material? O texto constitucional prevê expressamente alguma espécie de ação afirmativa? O texto constitucional abre espaço para o desenvolvimento de ações afirmativas em quais áreas?

Em relação aos aspectos metodológicos, a presente pesquisa é do tipo bibliográfica, pois se utiliza da literatura já publicada. Quanto à utilização dos resultados, é pura, visto que objetiva apenas ampliar o conhecimento, sem transformação da realidade. Segundo a abordagem, é qualitativa, à medida aprofunda a compreensão das ações e relações humanas e as condições e freqüências de determinadas situações sociais. Quanto aos objetivos, a pesquisa é descritiva, pois busca descrever, explicar, classificar, esclarecer e interpretar o fenômeno observado, e exploratória, já que objetiva aprimorar as idéias através de informações sobre o tema em foco.

O primeiro capítulo exibe um histórico acerca do instituto das ações afirmativas, destacando, inicialmente, o surgimento de medidas com caráter afirmativo no pós 2º guerra mundial, seguindo para a experiência dos Estados Unidos com o tema.

Já no segundo capítulo, faz-se uma análise técnica das ações afirmativas, verificando o conceito dessa expressão, a natureza jurídica do instituto, bem como as espécies e objetivos existentes.

O último capítulo estuda as ações afirmativas com base no texto constitucional. Nesse sentido, destaca as previsões constitucionais que preveem um tratamento favorecido para determinados entes sociais, assim como normas legais que tratam de mecanismos dessa natureza. Assim, o presente trabalho faz um panorama acerca do instituto das ações afirmativas, utilizando-se como base o texto constitucional.


2. OBJETIVO

O presente trabalho tem como objetivo geral estudar o instituto das ações afirmativas em contraponto ao texto constitucional de 1988. Nesse diapasão, como objetivos específicos, busca compreender a posição da carta magna vigente quanto ao instituto das ações afirmativas; verificar a existência de ações afirmativas no texto constitucional; assim como, estudar a promoção de ações afirmativas pelo estado brasileiro, inclusive o seu histórico de aplicação no Brasil.


3. METODOLOGIA

Com relação aos aspectos metodológicos, a presente pesquisa será do tipo bibliográfica, baseando-se no exame de livros, revistas, periódicos e publicações diversas na imprensa escrita especializada.

Quanto à tipologia da pesquisa, esta será, segundo a utilização dos resultados, pura, haja vista ser realizada apenas com o intuito de aumentar o conhecimento, sem transformação da realidade. Segundo a abordagem, será qualitativa, com a observação e compreensão dos fenômenos sociais envoltos no tema analisado.

No que tange aos objetivos, a pesquisa será descritiva, porque vai descrever fenômenos, investigar a freqüência com que um fato ocorre, sua natureza e características, além de classificar, explicar e interpretar os fatos, sem interferência do pesquisador, e exploratória, procurando aprimorar idéias, ajudando na formulação de hipóteses para pesquisas posteriores e buscando maiores informações sobre o tema estudado.


4. REFERENCIAL TEÓRICO

A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos tem o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito, sem que se esqueça, porém, como ressalvado por Fábio Konder Comparato, que as chamadas liberdades materiais tem por objetivo a igualdade de condições sociais, meta a ser alcançada, não só por meio de leis, mas também pela aplicação de políticas ou programas de ação estatal.

Como elucida Alexandre de Moraes (2002, p. 64), a Lei Maior brasileira adotou o princípio da igualdade sob um prisma diferenciado, permitindo uma produção normativa especial, ou seja, uma diferenciação institucional, em benefício de certos setores, desde que ligada a uma finalidade albergada pelo ordenamento.

Nesse sentido, Celso Antonio Bandeira de Mello (1998, p. 18) compreende que “por via do princípio da igualdade, o que a ordem jurídica pretende firmar é a impossibilidade de desequiparações fortuitas ou injustificadas”. Sendo assim, considera viável e legal o tratamento desigual por parte do estado, favorecendo certos grupos, desde que existente um motivo plausível para tanto.

Dessa concepção do princípio da igualdade e do ideal do estado social, surgiram medidas diferenciadoras voltadas a garantir a igualdade no seu aspecto mais real, através do tratamento igual para os iguais e desigual para os desiguais. Tais medidas são chamadas de ações afirmativas e já se encontram impregnadas no ordenamento pátrio.

No que tange às ações afirmativas, segundo Joaquim Barbosa Gomes (2001a, p. 40), elas podem ser conceituadas como sendo:

[...] um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate da discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e o emprego.  [...].

Por mais que o conceito apresentado discorra que as ações afirmativas consistem em políticas públicas ou privadas voltadas ao combate da discriminação racial, de gênero ou de origem nacional, o seu teor, assim como o pensamento de muitos outros doutrinadores, encontra-se impregnado com a questão do preconceito e da desigualdade apenas racial e, portanto, muito envolvido ainda com as cotas em universidades, já objeto de discussão em todo o país.

Assim, cumpre entender que esse instituto vai além da mera reserva de vagas para negros, pardos ou índios em universidades públicas, constituindo verdadeiro instrumento para efetivação da igualdade esculpida na nossa lei maior. 

Dessa forma, além dessas ações positivas não se limitarem ao sistema de cotas, muito antes da Constituição Federal de 1988, já existiam leis no Brasil prevendo mecanismos com natureza semelhante a sua, desequiparando indivíduos supostamente iguais para promover o princípio da igualdade.

A Constituição de 1988, em total consonância com o estado social democrático de direito a que adere, contem uma série de tipos legais determinando uma atuação mais ativa do poder público no sentido de modificar a realidade social em que foi desenvolvida. Ademais, contem artigos prevendo a necessidade de tratamento desigual e privilegiado para alguns sujeitos, o que, portanto, poderia se traduzir em autorização constitucional específica para o desenvolvimento de ações afirmativas no Brasil.

A questão consiste em identificar especificamente quais previsões constitucionais fundamentariam a inserção desse instituto no ordenamento pátrio e qual o limite de sua aplicação segundo o texto constitucional. Pedro Lenza (2010, p. 752) compreende bem essa problemática ao afirmar que “a grande dificuldade consiste em saber até que ponto a desigualdade não gera inconstitucionalidade”.


5. DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

5.1. HISTÓRICO DAS AÇÕES AFIRMATIVAS

Com o fim da segunda grande guerra mundial, período no qual surgiram diversas normas internacionais tratando dos direitos humanos, a exemplo da Declaração Universal de Direitos Humanos em 1948, passou-se a questionar a efetivação dos direitos fundamentais e a posição inerte do Estado diante de uma sociedade cheia de disparidades que vinham se acentuando com o decorrer dos anos.

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Nesse contexto, surgiram em ordenamentos jurídicos, como no da Inglaterra e Índia, medidas legais voltadas a garantir a harmonia nas relações sociais marcadas até então pelo desequilíbrio, favorecendo o acesso de grupos marginalizados a bens jurídicos fundamentais, tendo sido nos Estados Unidos que atividades com essa natureza tomaram monta e passaram a influenciar o Brasil. Ângela Barros Leal (2005, p. 9-10) traduz esse período:

Leis trabalhistas da Inglaterra, datadas de 1935, buscavam equidade para os significativos contingentes de filhos de suas ex-colônias, sediados no Reino. A Índia, uma dessas antigas colônias, engessada por uma ordem ancestral de castas, buscou, nos anos 40, formas para corrigir os pesos da balança, permitindo aos párias o vislumbre de um futuro mais justo. Iniciavam a prática incipiente de uma atuação à qual, nos países europeus, se deu o nome preferencial de ‘discriminação inversa’ (SILVA, 2000, p. 15). Todavia, e atribuindo-se possivelmente motivos políticos e econômicos, o exemplo que se impôs para o Brasil parece ter sido aquele procedente dos Estados Unidos.

Sob a denominação de ações afirmativas, essas medidas foram surgindo e desenvolvendo-se no ordenamento pátrio, atingindo maior notoriedade através do programa de cotas em universidades públicas, quando, enfim, passaram a ser objeto de maior discussão e estudo[1].

Nesse diapasão, considerando que as ações afirmativas constituem o gênero do qual a reserva de vagas em universidades (sistema de cotas) decorre, para o regular estudo sobre a sua inserção no sistema normativo brasileiro, é latente a análise acerca do histórico e das peculiaridades que permeiam esse instituto jurídico, assim como demonstrado nos tópicos seguintes.

5.1.1 Ações Afirmativas: surgimento nos Estados Unidos

No século passado, em meados da década de 60, inseridos em um contexto social e político voltado para efetivação do Princípio da Igualdade, começaram a surgir nos Estados Unidos mecanismos estatais e privados voltados à concretização da igualdade material entre os indivíduos.

Emergia o pensamento de que a igualdade no aspecto meramente formal estaria a perpetuar situações de desigualdade históricas, não sendo suficiente para assegurar a nova forma em que o princípio da igualdade era concebido.

As previsões de cunho proibitivo, que se limitavam em vedar o tratamento desigual entre os indivíduos, e os textos legais meramente declaratórios, proclamando a igualdade de todos perante a lei, mostravam-se ineficientes em relação às demandas sociais que nasciam junto com o “Estado moderno”.

Nessa época, apesar de todos os Estados, pós 2ª Guerra Mundial, já terem positivado nas suas Constituições o princípio da igualdade como um dos seus preceitos fundamentais, nenhum deles tinha promovido efetivamente o seu conteúdo. O Direito Constitucional, no entanto, já não se limitava a concepção formal desse princípio, uma vez que na sociedade eram cada vez mais patentes situações de desequilíbrio que mereciam imediata atenção estatal. Sendo assim, percebeu-se que negar a discriminação, como se tinha feito até então, não surtia o efeito necessário, sendo premente garantir a efetiva igualdade. (ROCHA, p. 284)

Tal pensamento é resultado das premissas que surgiram junto com o Estado Social[2], que além de prever os direitos sociais, tais como educação, saúde e trabalho, todos visando o bem estar geral, trouxe uma mudança na maneira do Estado atuar frente à sociedade.

Ada Pelegrini Grinover (2008, p. 10) bem relata esse momento de transição, destacando a mudança no trato do Estado com a realidade social, vejamos:

A transição entre Estado Liberal e Estado Social promove alteração substancial na concepção do Estado e de suas finalidades. Nesse quadro, o Estado existe para atender ao bem comum e, consequentemente, satisfazer direitos fundamentais e, em última análise, garantir a igualdade material entre os componentes do corpo social. Surge a segunda geração de direitos fundamentais – a dos direitos econômico-sociais -, complementar à dos direitos de liberdade. Agora, ao dever de abstenção do Estado substitui-se seu dever a um dare, facere, praestare, por intermédio de uma atuação positiva, que realmente permita a fruição dos direitos de liberdade da primeira geração, assim como dos novos direitos.

Como resultado do Estado Social, surgiram novos direitos e uma nova concepção quanto à aplicação daqueles já constantes nos ordenamentos. Quanto a essa nova concepção, mostrou-se evidente a necessidade do Estado atuar de forma mais ativa, promovendo faticamente as previsões normativas, deixando de ser mero expectador das situações de exclusão evidentes no cotidiano social.

Nesse mesmo sentido, Joaquim Barbosa Gomes (2001a, p. 4-6) relaciona o surgimento da nova concepção do princípio da igualdade com o do Estado Social, ressaltando a nova postura a ser seguida pelo Poder Público:

Produto do Estado Social de Direito, a igualdade substancial ou material propugna redobrada atenção por parte dos aplicadores da norma jurídica à variedade das situações individuais, de modo a impedir que o dogma liberal da igualdade formal impeça ou dificulte a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas.

(...)

Assim, nessa nova postura o Estado abandona a sua tradicional posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente na busca da concretização da igualdade positivada nos textos constitucionais.

O princípio da igualdade passou a ser visto como um instrumento voltado à diminuição das desigualdades reais, deixando para trás aquela percepção formal de que todos devem ser tratados de forma exatamente igual pela lei e que qualquer diferenciação atentaria à sua finalidade.

Ademais, passou-se a permitir a desequiparação de alguns em razão de uma peculiar situação de desequilíbrio, visando a igualdade de oportunidades e de direitos entre todos. Nessas circunstâncias, surgiram políticas de promoção e inclusão de minorias sobre as quais se convencionou chamar de ações afirmativas ou ações positivas.

A expressão ações afirmativas foi pela primeira vez utilizada nos Estados Unidos.  Segundo Ângela Barros Leal (2005, p. 10) coube ao presidente norte americano Jonh Kennedy editar a norma executiva (Decreto nº 10.952) do qual surgiu a denominação ações afirmativas até hoje utilizada. Segundo Joaquim Barbosa Gomes (2001a, p. 54), também nos Estados Unidos “nasceu a mais antiga – e talvez a mais eficaz – modalidade de ação afirmativa: a que foi instituída pelo famoso Decreto Executivo (Executive Order) nº 11.246/65, do Presidente Lindon Johnson”.

O referido Decreto nº 11.246/65 estabelecia de forma indireta o favorecimento de minorias. Nesse caso, o governo dos Estados Unidos utilizou-se do seu poder de barganha, passando a dar preferência no repasse de verbas e na assinatura de contratos às instituições privadas que incluíssem nos seus quadros políticas de inclusão das minorias.

Desde então, como esclarece Carmen Lúcia Antunes Rocha (1996, p. 285), a expressão ação afirmativa passou a significar “a exigência de favorecimento de algumas minorias socialmente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser superados [...]”.

Nestes termos, as ações afirmativas surgiram em um momento de transição de pensamento sobre a real função estatal frente aos anseios sociais, constituindo uma ferramenta para colocar em prática a igualdade material, evitando o continuísmo social que se reveste na perpetuação de desigualdades históricas.

Nos Estados Unidos da América, essas ações positivas surgiram inicialmente como uma maneira de amenizar a marginalização da parcela negra da população, já que a histórica tensão racial naquele país teve como resultado a perpetuação da exclusão dos negros no acesso a bens jurídicos fundamentais. Em momento posterior, essas medidas foram estendidas a outros segmentos sociais, como as mulheres e os deficientes, que também se mostravam marginalizados no gozo de determinados bens e direitos.

Nesse sentido, Joaquim Barbosa Gomes (2001b, p. 04), destaca:

O país pioneiro na adoção de políticas sociais denominadas <<ações afirmativas>> foram, como é sabido, os Estados Unidos da América. Tais políticas foram concebidas inicialmente como mecanismos tendentes a solucionar aquilo que um célebre autor escandinavo qualificou de <<o dilema americano>>: a marginalização social e econômica do negro na sociedade americana. Posteriormente, elas foram estendidas às mulheres, a outras minorias étnicas e nacionais, aos índios e aos deficientes físicos.

Gilmar Mendes, (2009, p. 11) em decisão sobre o pedido de medida cautelar na ADPF 186[3], esclarece o contexto histórico no qual surgiram as ações afirmativas nos Estados Unidos, destacando que nesse país, ao contrário do Brasil, houve um processo de discriminação institucionalizado, em que o próprio Estado utilizava a raça como critério negativo para definir o acesso a determinados bens jurídicos. Destacando, inclusive, que os negros por algum período foram proibidos de freqüentar os mesmos locais que a parcela branca da população, o que por conseqüência gerou um denso processo de exclusão. Vejamos:

Nos Estados Unidos, por exemplo, existiu um sistema institucionalizado de discriminação racial estimulado pela sociedade e pelo próprio Estado, pelos seus Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, em seus diferentes níveis. A segregação entre negros e brancos foi amplamente implementada pelo denominado sistema Jim Crow e legitimada durante várias décadas pela doutrina do “separados mas iguais” (separate but equal), criada pela famosa decisão da Suprema Corte no caso Plessy vs. Ferguson (163 U.S 537 1896). Com sabe nesse sistema legal segregacionista, os negros foram proibidos de freqüentar as mesmas escolas que os brancos, comer nos mesmos restaurantes e lanchonetes, morar em determinados bairros, serem proprietários ou locatários de imóveis pertencentes a brancos, utilizar os mesmos transportes públicos, teatros, banheiros, etc., casar com brancos, votar e serem votados e, enfim, de serem cidadãos dos Estados Unidos da América. Foi nesse específico contexto de cruel discriminação contra os negros que surgiram as ações afirmativas como uma espécie de mecanismos emergencial de inclusão e integração social dos grupos minoritários e de solução para os conflitos sociais que se alastravam por todo o país na década de 60.

A priori, as ações positivas foram desenvolvidas no intuito de encorajar atitudes espontâneas de inclusão, o que acabou não surtindo tanto efeito, avançando para imposição de cotas no acesso ao mercado de trabalho e ao ensino superior.

Por sua vez, as ações afirmativas desenvolveram-se tanto no ordenamento dos Estados Unidos como no de outros países, fortalecendo-se com a atual concepção do Estado Social Democrático de Direito, onde se busca além do aspecto material da dignidade do homem, a participação deste nas decisões pertinentes à sociedade. (SANTOS, p. 16).

Nesse diapasão, entende-se que as ações positivas consistem em um dos principais, se não o principal instrumento do Direito Constitucional a contar do século XX voltado a dirimir as desigualdades presentes na sociedade (GOMESa, p. 08).

5.2. Noções gerais sobre ações afirmativas: conceito, natureza jurídica, objetivos e espécies

As ações positivas foram se desenvolvendo e tiveram o seu conceito aprimorado, adequando-se com o decorrer do tempo ao contexto social. Dessa forma, há que se considerar que a sua atual definição, embora permaneça com boa parte dos seus ideais primários, já não é mais aquela originalmente concebida.

Conforme exposto, esse instituto foi criado nos Estados Unidos como uma política de encorajamento e não de promoção plena da igualdade. O Estado, por meio de incentivos, levava os entes públicos e privados a considerarem na contratação de pessoas questões como a raça, cor e gênero.

Tais medidas não continham caráter obrigatório. Ninguém era compelido a levar em consideração esses fatores, ficando a critério de cada um instituir na sua empresa ou no ente sob o seu comando mecanismos de inclusão das minorias.

Essa liberalidade acabou comprometendo a finalidade maior das ações afirmativas, pois ainda tinham aqueles que desconsideravam o encorajamento estatal, permanecendo com a mesma postura perante o problema da desigualdade. Nesse diapasão, o instituto foi evoluindo no sentido do estabelecimento de cotas fixas, através da reserva de um número determinado de vagas para segmentos considerados excluídos ou margem da sociedade.

Dessa maneira, o fim a que se propõem essas ações continuou sendo o mesmo, qual seja, o de promover a igualdade insculpida na lei, mas com o passar dos anos, esse instituto foi sofrendo modificações a fim de torná-lo atual e capaz de alcançar a sua finalidade.

Em decorrência dessa evolução, Joaquim Barbosa Gomes (2001a, p. 40) apresenta um conceito bem amplo das ações afirmativas, definindo-as da seguinte forma:

Atualmente, as ações afirmativas podem ser definidas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate da discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como educação e o emprego.  [...].

De acordo com esta definição, a expressão ações afirmativas engloba tanto medidas impositivas do Estado, assim como atividades voluntárias ou facultativas de inclusão criadas a critério de cada instituição, seja de forma espontânea ou baseada em incentivos estatais, mas sempre no sentido de provocar e fomentar a igualação material.

Dessa forma, as ações afirmativas, sejam quando promovidas pelo Poder Público ou quando realizadas pelo setor privado, caracterizam-se por visar o acesso a bens jurídicos inacessíveis ou de difícil acesso às minorias marginalizadas, no sentido de eliminar desequilíbrios evidentes na sociedade.

Já para Cashmore (2000, p. 31) ação afirmativa é “uma política pública voltada para reverter as tendências históricas que conferiram às minorias e às mulheres uma posição de desvantagem, principalmente nas áreas de educação e emprego. [...]”

Paola Capellin (1996, p. 13), voltando-se para a realidade feminina, considera que “ações afirmativas são uma estratégia de política social voltada para alcançar a igualdade entre homens e mulheres nas diferentes instâncias: no mercado de trabalho, na política, etc.”

O caráter de política pública compensatória mostra-se evidente em todos os conceitos apresentados, assim como a incidência desse instituto nas áreas de emprego e educação e em benefício das mulheres e dos grupos marginalizados em decorrência da sua raça e cor.

A ação afirmativa caracteriza-se pela sua natureza distributiva e compensatória. Distributiva porque surge da necessidade de equalizar a distribuição ou o acesso de determinado bem jurídico entre todos os entes da sociedade. Compensatória porque visa privilegiar grupos que por fatores históricos de discriminação e exclusão social, foram afetados consideravelmente nos seus direitos, merecendo uma atenção diferenciada.

Ressaltando a natureza compensatória das ações positivas, Luciana de Oliveira Leal (...., p. 02), ao tratar dos seus objetivos, destaca que:

[...] Sua finalidade primordial, mais do que prevenir, proibir e punir atos discriminatórios, é gerar condições para que as conseqüências sociais concretas da discriminação passada ou presente sejam progressivamente amenizadas, até que se alcance o objetivo maior de promoção da efetiva igualdade.

 Joaquim Barbosa Gomes (2001a, p. 47), agora no estudo acerca dos objetivos das ações positivas, deixa bem claro a natureza compensatória do instituto:

Como se vê, a ação afirmativa tem como objetivo não apenas coibir a discriminação do presente, mas sobretudo eliminar os <<lingering effects>>, ie, os efeitos persistentes (psicológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado, que tendem a se perpetuar. Esses efeitos se revelam na chamada <<discriminação estrutural>>, espelhada nas abismais desigualdades sociais entre os grupos dominantes e grupos marginalizados.

Outro ponto que merece destaque trata da natureza positiva dessas medidas. De fato, aquele que institui um mecanismo de ação afirmativa age de maneira ativa, pois ao favorecer certos indivíduos em detrimento de outros, quebra um ciclo vigente, rompendo barreiras que se mostravam intransponíveis. Não haveria como ser de outra forma, já que a ação afirmativa surgiu justamente da necessidade de promover mudanças, eliminando desigualdades acumuladas.

Quanto aos objetivos das ações afirmativas, estes se encontram insculpidos no próprio conceito apresentado e estão bastante envolvidos com a natureza dessas políticas.

As ações afirmativas visam de forma imediata promover o acesso de segmentos marginalizados aos bens jurídicos fundamentais que não tenham o adequado acesso. Ademais, objetivam promover a igualdade de oportunidades perante a sociedade, o que significa a eliminação dos desequilíbrios e, por conseguinte, a efetivação do princípio da igualdade material.

Também teriam como finalidade a erradicação da discriminação causadora do processo de marginalização. Tal conclusão decorre da premissa de que o convívio de indivíduos de diferentes realidades, em ambientes considerados até então homogêneos, produziria a sensação de justiça social Essa convivência múltipla demonstraria que na realidade somos todos iguais e que são irrelevantes as classificações que nos foram historicamente impostas, quebrando o ciclo causador do processo discriminatório.

Dessa forma, além de apresentar um objetivo imediato, a ação afirmativa tem igualmente por finalidade romper com a estrutura responsável pela segregação que lhe ensejou, mostrando-se além de uma mera medida emergencial.

Ronald Dworkin (2000, p. 439), no estudo do famoso caso Bakke[4], analisando os objetivos do processo de inclusão desenvolvido à época pela Universidade da Califórnia, considera que as ações afirmativas visam muito além da mudança nos dados estatísticos. Dessa forma, teriam como finalidade uma mudança de raciocínio acerca da igualdade de oportunidades, no caso, entre brancos e negros, ao passo que o aumento do número de negros graduados e, por conseguinte, em cargos de maior prestígio, diminuiria por si só a tensão racial, aumentando a auto-estima e o sentimento de capacidade dessa minoria. Nesse sentido, entende o seguinte:

[...] Os programas de ação afirmativa usam critérios racialmente explícitos porque o seu objetivo imediato é aumentar o número de membros de certas raças nessas profissões. Mas almejam a longo prazo reduzir o grau em que a sociedade norte-americana, como um todo é racialmente consciente.

Os programas baseiam-se em dois juízos. O primeiro diz respeito à teoria social: que os Estados Unidos permanecerão impregnados de divisões raciais enquanto as carreiras mais lucrativas, gratificantes e importantes continuarem a ser prerrogativa de membros da raça branca, ao passo que outros se vêem sistematicamente excluídos de uma elite profissional e social.  O segundo é um cálculo de estratégia: que aumentar o número de negros nas várias profissões irá, a longo prazo, reduzir o sentimento de frustração , injustiça e constrangimento racial na comunidade negra, até que os negros passem a pensar em si mesmos como indivíduos capazes de ter sucesso, como os outros, por meio da talento e da iniciativa. Nesse ponto futuro, as conseqüências, quaisquer que venham a ser elas, dos programas de admissão não raciais, poderão ser aceitas sem nenhuma impressão de barreiras ou injustiça raciais.

 Embora baseada na experiência americana, tal análise mostra-se plenamente coerente com os objetivos genéricos das ações afirmativas. Ao passo que, identifica a existência de objetivos imediatos e mediatos dessas políticas, ambos voltados para a transformação de um status quo desigual.

Essas políticas, também chamadas de discriminações positivas, possuem caráter temporário. A sua incidência deve perdurar por um período determinado até que a evidente situação de desequilíbrio seja modificada, sob pena de se tornar uma situação de privilégio desmedido ao invés de inclusiva.

Ademais, verificada a ineficiência de uma dessas medidas, é necessária a sua imediata mudança, a fim de que seja alcançado o fim a que se propõe. Como destaca José Carlos Evangelista de Araújo (2009, p. 30) “tais políticas devem ser monitoradas, de forma que, se não lograrem em um tempo razoável os objetivos que justificaram sua implementação, devem ser substituídas por outras que se mostrem mais adequadas”.

5.3. A Constituição Federal de 1988 e o desenvolvimento de ações afirmativas

Enquanto a Constituição Federal, através do seu art. 5º, caput consagra o princípio da igualdade formal, declarando que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (...)”, contem artigos prevendo a necessidade de tratamento desigual e privilegiado para alguns entes ou indivíduos, do que se pode concluir que a Carta Magna vigente não se limitou em prever a igualdade no aspecto formal, compreendendo esse princípio sob o caráter da isonomia, em que os diferentes devem ser tratados de forma diferente, na medida da sua diferença.

Assim, os Constituintes originários e derivados, pautados na nova perspectiva do Estado Democrático de Direito, são responsáveis por inserir na Lei Maior brasileira tipos legais voltados para concretização da igualdade material.

Como exemplo dessas previsões temos o art. 5º, XXVI, que prevê o tratamento diferenciado para a pequena propriedade rural; o art. 7º, XX, que prevê a necessidade de proteção do mercado de trabalho da mulher; os arts. 37, VIII e 227, §1º, II, que prevêem respectivamente a reserva de vagas em concursos públicos para deficientes físicos e o tratamento diferenciado para essa parcela da população e os art. 146, III, d, e 170, IX, que versam sobre o tratamento diferenciado para as pequenas e micro empresas.[5]

A permissão para um tratamento favorecido, em alguns casos, encontra-se de forma explícita e com sujeitos bem determinados, como no art. 179, que prevê por parte da União, Estados, Distrito Federal e Municípios tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte, no sentido de simplificação de suas responsabilidades. Em outros, é necessária certa interpretação para compreender que o dispositivo constitucional se traduz numa autorização para desequiparações positivas, a exemplo do pode ocorrer com os tributos com natureza extrafiscal.

O art. 195, §9º, com relação às contribuições sociais previstas no mesmo artigo, inciso I, expõe que estas poderão ter alíquotas diferenciadas em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão de obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho. Tal previsão nada mais é do que uma permissão para o legislador, a depender da condição do contribuinte, variar tal alíquota, incentivando determinado setor, medida com evidente caráter de ação afirmativa.

Considerando essas previsões já citadas, assim como os objetivos e fundamentos da república expressos nos arts. 1º e 3º da Lei Maior, conclui-se que o constituinte estabeleceu uma autorização para adoção das hoje denominadas ações afirmativas. Assim, a própria Constituição Federal de 1988, segundo o seu conjunto normativo, determinaria a promoção de medidas com essa natureza positiva, nos mais diversos setores sociais.

A Constituição, ao prever certas situações privilégio, em contramão à igualdade meramente formal, atua no sentido de ver concretizada a igualdade material, consistindo tais desequiparações como forma de tornar mais equânime as relações sociais.  

Por conseguinte, foi desenvolvida uma série de diplomas legais voltados a efetivar essas previsões constitucionais. A Lei Federal nº 9.799, de 26 de maio de 1999, por exemplo, inseriu na Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (1943) o art. 373-A, que contem determinações voltadas a resguardar e assegurar o acesso das mulheres ao mercado de trabalho. Aliás, a própria CLT possui um capítulo destinado unicamente para a proteção do trabalho da mulher, o que demonstra a importância adquira pelo tema no Brasil, sobretudo a partir da nova ordem jurídico-constitucional.

As Leis nº 7.853/89, 8.213/91 e 10.098/2000 tratam da inclusão dos deficientes físicos nos mais diversos setores da sociedade. Esse grupo também é beneficiado pela Lei nº 8.112/90, norma responsável pelo Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Civis da União, cujo §2º do seu art. 5º, determina a reserva de vagas, no percentual máximo de 20% (vinte por cento), para os deficientes nos concursos públicos responsáveis pelo provimento de cargos na administração federal.[6]

 Já a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006, instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de pequeno porte e criou medidas de favorecimento voltadas ao fomento dessas pessoas jurídicas. Essa norma, assim como o artigo da Constituição que autoriza o tratamento diferenciado para essas empresas, leva em consideração o poder econômico dos grandes empresários e a dificuldade de concorrência enfrentada pelas pessoas jurídicas de menor porte.

Por oportuno, cumpre destacar as Leis nº 9.100/95 e 9.504/97 que fixam em 30% (trinta por cento) o número mínimo de mulheres candidatas nas eleições, compelindo os partidos políticos a apresentarem pelo menos 30% dos seus candidatos do sexo feminino.

Existem ainda dispositivos legais esparsos no ordenamento pátrio determinando a reserva de vagas em estacionamentos para motoristas com deficiência de locomoção. Da mesma forma, existem normas prevendo a existência de caixas preferenciais em supermercados e bancos para gestantes e pessoas idosas, assim como a reserva de vagas em ônibus para idosos.

Todas essas normas visam facilitar o acesso de minorias a bens cuja fruição lhes foi negado historicamente, ou que, por alguma desvantagem, não lhes são acessíveis como às demais pessoas, o que por sua vez caracteriza-se como uma discriminação positiva.

As referidas normas demonstram não ser de hoje a inserção de ações afirmativas no ordenamento pátrio, sobretudo após o estabelecimento da nova ordem constitucional. De fato, a realização de discriminação positiva pelo Estado não é novidade no nosso ordenamento, sendo inclusive anterior ao texto constitucional vigente.

Embora o efetivo estudo no Brasil acerca das ações afirmativas tenha se dado com a discussão acerca da implementação das cotas no processo seletivo das universidades públicas, a existência de algumas normas demonstram que o Poder Público há algum tempo se preocupa com a criação de textos legais voltadas a garantir da igualdade de oportunidades entre os brasileiros.

A esse respeito, Eugenia Portela Siqueira Marques e Suzanir Fernanda Maia (2006, p. 50), esclarecem:

Cabe ressaltar que, embora a teoria das ações afirmativas passou a ser recentemente reconhecida no Brasil, a sua prática não é de toda estranha à esfera administrativa pública brasileira, a exemplo da chamada Lei do Boi, isto é, a Lei 5.465/68, cujo artigo 1º era assim redigido: ‘Os estabelecimentos de ensino médio agrícola e as escolas superiores de Agricultura e Veterinária, mantidos pela União, reservarão anualmente, de preferência, 50% (cinquenta por cento) de suas vagas a candidatos ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam com suas famílias na zona rural, e 30% (trinta por cento) a agricultores ou filhos destes, proprietários ou não de terras, que residam em cidades ou vilas que não possuam estabelecimentos de ensino médio’.

Portanto, muito antes da Constituição Federal de 1988, já existiam leis no Brasil prevendo mecanismos com natureza de ação afirmativa, desequiparando indivíduos supostamente iguais para promover o princípio da igualdade. Exemplo dessa prática é a chamada Lei do Boi, sob o nº 5.465/68, que reservava certo número de vagas para alunos da zona rural cursarem o ensino médio e superior em instituições com o ensino voltado para a agricultura.

Diante dessas considerações, não há como negar que o Direito nacional, sobretudo com a Carta Magna vigente, incorporou e reconheceu o instituto das ações afirmativas, já contemplando inclusive algumas modalidades, que se encontram em pleno vigor.

Cumpre salientar que essas condutas de natureza positiva no Estado brasileiro, apesar da sua importância sobre o contexto social, não são objeto de grandes discussões jurídicas. Essa realidade deve ser resultado da pontualidade dos temas tratados, já que são bem específicos, e também pela consciência geral de que os seus beneficiários realmente encontram-se em condição de inferioridade, precisando de tratamento afirmativo do Estado.

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Sobre o autor
José Carlos Machado de Brito Filho

Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp (2012). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR (2010.1). Advogado - OAB/CE 23.653. Procurador do Município de Maracanaú-CE.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BRITO FILHO, José Carlos Machado. Ações afirmativas à luz da Constituição Federal de 1988. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 19, n. 3915, 21 mar. 2014. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/27001. Acesso em: 14 nov. 2024.

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